APOCATÁSTASE: a idéia de revolução em Guimarães Rosa.



Terezinha Scher Pereira

UFJF - Universidade Federal de Juiz de Fora


Resumo
A obra de Guimarães Rosa em vários aspectos responde ao clima sócio-cultural do Brasil nos anos 50 e 60, por explorar, como nenhum outro autor havia feito, as possibilidades do confronto entre tradição e mudança. É o que se vê no conto "Darandina" de Primeiras estórias de 1961.

Abstract
In several aspects, the works of Guimarães Rosa are an answer to the sociocultural climate of the Brazilian fifities and sixties, by exploiting in a way quite different from other authors the possibilities of confrontation between tradition and changing. It is what can be seen in the short-story "Darandina", from the 1961 book Primeiras estórias


Ações? O que eu vi, sempre,
é que toda ação principia mesmo
é por uma palavra pensada.

Guimarães Rosa


Assim como Euclides da Cunha, também Guimarães Rosa procura fornecer com a representação do sertão um retrato do Brasil. O choque entre cultura citadina e cultura sertaneja é tematizado. O escritor procura novos procedimentos de meditação. Vale dizer: ele está em busca de uma nova escrita da história.

Willi Bolle

 

No conto "Darandina" (Primeiras estórias, 1962), percebemos um movimento nos diversos níveis de estruturação discursiva. Este movimento, que perpassa a composição formal do conto, é sempre no sentido de fazer surgir a novidade dentro da norma. E, a propósito, podemos dizer que se trata de um movimento lúdico e, ao mesmo tempo, revolucionário.

No nível morfo-fonológico do conto, há os jogos com sons e fonemas, e os inconfundíveis processos roseanos de aglutinação, afixação que culminam nas palavras-valise, como em Lewis Carrol. No nível sintático, os recursos à condensação e à síntese são para produzir economia significativa. E, finalmente, no nível semântico, a mesma técnica de fazer, pela exposição intensiva de conceitos consensuais, surgir a idéia inusitada dentro do previsível.

O argumento de "Darandina" tem como centro a irrupção da loucura em uma pessoa comum que, por isso, consegue realizar uma façanha que espanta a todos os viventes e espectadores de um dia comum: escalar, sem dificuldade alguma, uma palmeira e se instalar no seu topo, resistindo a todas as tentativas que se fizeram para arrancá-la de lá. As conseqüências desse fato inusitado são as mais diversas, mas o principal é que se chega à conclusão de que faltam conceitos para explicá-lo.

O que se tem, a partir desse ponto, é uma batalha verbal que traduz um estranho diálogo entre as forças de ordenação social ( a lei, a ciência, o poder instituído, etc.) e o aparentemente desconexo filosofar do vitorioso escalador que, do seu cume, informa novos conceitos/ idéias como: "Viver é impossível" ou "O amor é uma estupefação".

Em meio ao impasse produzido pela cena nova e deslumbrante ( o homem no topo da palmeira brilha e fere como o sol ao meio-dia), o narrador expõe suas dúvidas, desconfiando que o mundo se deixa abalar não tanto por conteúdos renovados, mas pela maneira como estes conteúdos se estruturam na sua apresentação.

O narrador reflete, intuímos, que a maneira que temos de apreensão do mundo, a maneira mais segura, digamos assim, é estabelecendo conceitos. Assim dizemos: "isto é uma árvore". Assim classificamos: "isto é uma palmeira". Essas definições, diferenciações vão nos garantindo contra o caos, que dominamos através da linguagem. Mas algo acontece, e uma palmeira já não é mais uma palmeira e já não se diferencia das outras árvores, aquelas nas quais se pode subir... O narrador, então, transfere para a linguagem, para o sistema de conceituação, a dúvida que o abala: "Uma palmeira é uma palmeira ou uma palmeira ou uma palmeira?"(ROSA, J.G. 1994, p. 483)

A pergunta desdobra-se em duas partes. A primeira, sem a interrogação, pode ser lida como o antigo conceito, inequívoco, tautológico em sua certeza inabalada: "uma palmeira é uma palmeira." Uma vez abalada em sua mesmice reiterativa, a definição abre-se para sua segunda parte, com a dúvida que o conectivo de alternação possibilita: "ou uma palmeira", e não conclui: "ou uma palmeira?" Assim estamos diante de uma dúvida ontológica que, tendo sido expressa na linguagem, abre a perspectiva para outras questões de ordem cultural e contextual.



2. Willi Bolle, em um texto sobre Grande sertão: veredas afirma que esta obra pode ser compreendida como um retrato do Brasil no século XX. Baseando-se na conceituação de alegoria de Walter Benjamin, a partir da etimologia (alegoria é o discurso através do Outro), Bolle propõe a leitura da obra principal de Rosa a partir do enfoque da historiografia alegórica, que consiste, em suas palavras, "no estudo de uma época ou de um espaço diferente, para o historiador esclarecer aspectos de seu próprio espaço-tempo." (BOLLE, W. 1995, p.82). Lembrando que Benjamin usou essa metodologia quando investigou a história social de Paris no Segundo Império, visando à compreensão do processo de passagem da República de Weimar para o Terceiro Reich, Willi Bolle quer ler Guimarães Rosa por meio da compreensão do potencial dialético/utópico da alegoria.

Fazendo uso dessa sugestão, vamos ler o conto em questão, procurando identificar nele os rastros históricos e contextuais que informam sobre o espaço-tempo ali referido e que ainda importam no nosso presente.

Nos anos 50 e 60, época de grande parte da produção roseana, é comum a propagação de um discurso político reformista nos meios intelectuais do país. Esse discurso, às vezes, assume um tom revolucionário, como o das propostas vanguardistas da época, que vão do Concretismo às obras do CPCs.

A realidade brasileira é tão complexa nos anos 50 e 60 que se pode ler em editorial de uma revista de 1971 (quando a ebulição e a discussão já tinham sido interrompidas pela ditadura), uma descrição da perplexidade dos intelectuais brasileiros diante dos problemas que as mudanças e o desejo de atualização provocaram. O artigo é "esquerdizante", para usar um jargão comum à época, mas disfarçado, como convinha naqueles tempos repressivos; no entanto seu autor não culpa apenas o AI-5 pela crise na produção cultural. Ele atribui a responsabilidade por essa crise às dificuldades de entendimento do panorama de mudanças culturais, que passavam, principalmente, pela intensificação midiática, mal compreendida pelos produtores culturais. Veja-se a seguinte passagem:

Quase sempre sem levar em consideração que, nos últimos sete anos [refere-se ao início dos anos 60] o Brasil se afirmou através da franca adoção do modelo capitalista de desenvolvimento e que esse modelo determina formas peculiares de cultura, o nosso processo cultural, ainda se desenvolve hibridamente: não se libertou completamente dos resquícios artesanais das épocas anteriores e vai incorporando características de uma cultura típica de países industrializados, (...)

Coincidindo com a elevação de vida das camadas médias da população urbana, nota-se a emergência de uma "cultura industrial" (cada vez mais condicionada pelas leis de produção) (...).Além dos obstáculos opostos pela complexa realidade brasileira " onde ao lado das ilhas de consumo coexistem o analfabetismo em massa, o baixo índice de escolarização, o baixo poder aquisitivo " há a resistência daqueles que, apegados a padrões estéticos e formas de produção passada, combatem o novo processo em nome da qualidade, que seria incompatível com esse tipo de cultura, e em nome da liberdade de criação que estaria subordinada à demanda do mercado. (...) Identificando produção em série com má qualidade, assustados com a penetração crescente dos meios de comunicação, desafiados pelas novas contingências estéticas, eles tenderiam a confirmar o que o diretor de teatro José Celso Martinez já constatou: "Nada se faz livremente no Brasil e não é só por causa da censura." (Revista Visão - jul/1971- p.52/58)


Como se pode ver por estas palavras, o Brasil dos anos 60/70 é um país em mudança, e os intelectuais e produtores artísticos não estão inteiramente aptos a entender essas mudanças. É nesse clima, em que se joga muito com as palavras tradição, mudança e revolução que Guimarães Rosa surge com Grande sertão: veredas, que provocou uma ruidosa acolhida pela crítica. Mais tarde, aparece o livro Primeiras estórias (1961), ao qual pertence o conto "Darandina", objeto de nosso interesse neste estudo.

3. Em "Darandina", como já foi dito, todo o processo de estruturação narrativa se dá em torno da idéia de movimento. É notável que o principal tema-problema aí seja o deslocamento de centros fixos. O conto fornece uma palavra-conceito em torno da qual teceremos nossa interpretação. Trata-se da palavra de origem grega: apocatástase, usada na forma adjetiva para se referir, no final do conto, à descida do homem da palmeira, aparentemente de posse outra vez da razão:

"Rebaixavam-no, com tábuas, cordas e peças, e, com seus outros meios apocatásticos." (ROSA, J.G. 1994, p. 132)


Podemos dizer que a palavra apocatástase possui três significados, cada qual relacionado a uma área diversa do saber, se conjugarmos a definição do Novo Dicionário de Aurélio Buarque de Holanda com a do de Caldas Aulete.

O primeiro significado refere-se, no campo da astronomia, à revolução periódica de um astro, em direção ao seu ponto de origem. O segundo, extraído da teologia, refere-se a uma teoria (Origenismo), que preconiza uma restauração pós-juízo final de todos os espíritos, inclusive o do demônio. O terceiro significado vem da área médica, e significa a recuperação da saúde, após breve enfermidade.

Em "Darandina" está claro que o sentido imediatamente referido é o terceiro, isto é o termo é usado para indicar que o doente (o homem da palmeira) volta ao uso da razão. No entanto, não devemos perder de vista os outros dois sentidos, principalmente, o ligado à astronomia, pois o homem da palmeira, fica várias horas "no céu" , como um astro, para o qual todos se voltam.

A pergunta que se faz é: este homem tornado astro não estaria, por meio de um ímpeto revolucionário (o movimento que o faz sair do chão e ascender) retomando seu lado não racional, livre e lúdico? A instalação na palmeira tem aspecto de revolução, o carnaval se instala de imediato, com suas inversões: as altas autoridades, (da política, da medicina psiquiátrica, os ligados aos costumes e às tradições) nada podiam fazer contra aquela irrupção da desordem. Observe-se, no exemplo, a luta entre os poderes rebaixados e o homem saído do nada, já agora elevado ao novo e, conforme veremos, provisório poder:


Com o que " e tanta folia " em meio ao acrisolado calor, suavam e zangavam-se as autoridades. Não podendo com o desordeiro, tão subversor e anônimo? Que havia que iterar, decidiram, confabulados: arcar com os cornos do caso. Tudo se pôs em movimento, troada a ordem outra vez, breve e bélica, à fanfarra " para o cometimento dos bombeiros.(...) Naquela porção de silêncios, avançavam os bombeiros, bravos? Solerte, o homem, ao último ponto, sacudiu-se, se balançava, eis: misantropoide gracioso, em artificioso equilíbrio, mas em seu eixo extraordinário. Disparatou mais: - " Minha natureza não pode dar saltos?..." " e, à pompa, ele primava. ( ROSA, J.G. 1994, p. 490)

Neste sentido, o primeiro significado de apocatástase, o religioso, pode ser invocado, isto é, o sentido que se refere à restauração de todos os espíritos, incluindo os do mal, também pode ser apreendido, já que o homem é , nesse momento, vitorioso, pois está resgatado no empíreo/paraíso. Dessa maneira, ele constitui-se em um desafio demoníaco para as autoridades constituídas, que anseiam por explicar ou dominar aquele acontecimento. O povo e o narrador demonstram simpatia pelo acontecimento inusitado. " E, pronto, refez-se no mundo o mito.." diz o narrador a propósito.

O terceiro significado, ligado à medicina, indica o fim do conto e do episódio, já que afinal o homem recupera a razão e se deixa capturar. A partir dessa restauração da ordem, vamos refletir sobre o sentido da idéia de revolução nesse conto.

4. No acepção marxista, a idéia de revolução se indissocia da transformação ampla e radical da sociedade (com as condições históricas para isso), "por oposição a qualquer reestruturação da velha sociedade por meio de reformas fragmentárias" (BOTTOMORE, T. 1988, p. 326). No contexto sócio-político do início dos anos 60 a que nos referimos anteriormente, a revolução está presente no imaginário artístico e literário e são muitos os artistas e intelectuais que têm esta perspectiva em seu horizonte. Em Guimarães Rosa, seja em "Darandina", seja em outras obras, percebemos que há uma opção por uma outra concepção de transformação. Sem dúvida, a obra de Rosa constrói a crítica do que se apresenta como o mundo atual, onde as escolhas trazem a infelicidade, frustram as utopias.

Para a compreensão dessa questão em Rosa, podemos recorrer a duas reflexões fundamentais de Walter Benjamin: o conceito de alegoria e a tese sobre a origem da linguagem humana e da linguagem em geral.

Wille Bolle já ressaltou em vários textos a possibilidade da leitura de Guimarães Rosa através do entendimento da alegoria. Pensamos que é possível captar, dessa categoria, o seu sentido de perda, de resíduo, de sinal de um Outro que, embora subalterno, ou talvez por isso mesmo, fala de alguma maneira. Associando essas inferências sobre alegoria a questões retiradas da teoria sobre a origem da linguagem, pretendemos vislumbrar a idéia de revolução presente na obra de Guimarães Rosa.

No ensaio sobre a origem da linguagem, esse texto quase teológico do jovem Benjamin, está dito que há originalmente, pelo menos três tipos de linguagem: a linguagem divina, criadora, a linguagem dos homens, denominadora e conhecedora (atribuída por Deus), e a linguagem das coisas, que é a palavra muda, na verdade, resíduo do Verbo criador. A língua da escultura e da pintura, por exemplo, se ligaria a essa linguagem das coisas. Estas artes seriam uma tradução da linguagem muda das coisas. A poesia traduziria a língua nomeadora dos homens. Toda língua superior seria assim uma tradução de outra, até que se pudesse chegar "na última luz, a palavra de Deus, que é a unidade de todo esse movimento linguístico" (BENJAMIN, W. 1961, p. 153).

A concepção de linguagem que trai esta ordem é a pragmática e burguesa, segundo a qual a linguagem está fundada na comunicabilidade. Veja-se a afirmativa:

Esta concepção é a concepção burguesa da língua, cuja inconsistência será demonstrada. Tal teoria diz que o meio da comunicação é a palavra, que seu objeto é a coisa e que seu destinatário é um homem. Isso se opõe à outra teoria que não distingue nenhum meio, nenhum objeto, nenhum destinatário da comunicação. É como se dissesse: no nome, o ser espiritual do homem se comunica com Deus. (BENJAMIN, W. 1961, p. 142)

Antes de voltarmos ao objetivo desse estudo, que é identificar a idéia de revolução na obra de Rosa, vejamos demonstrações do trabalho de linguagem em "Darandina".

Podemos dizer que a organização da narrativa, especialmente quando se trata da seleção vocabular, segue a orientação da melopéia poundiana. As paronomásias ("páramo/empíreo; infausto/fáustico" ), as aliterações ("o céu só safira"), os trocadilhos ("sua palma [palmeira] sua alma", e o uso de palavras-valise ( "paralàparacàparlar", "perséquito") e outros recursos mostram claramente a intenção do autor de explorar ludicamente a linguagem.

No entanto, o lúdico conseguido, se ligado aos contextos mais amplos da obra e da cultura, ganha novo sentido: é necessário despertar o mundo de sua estagnação, e isto é possível através do retorno ao concreto do signo, recuperado ficcionalmente. A palavra perséquito exemplifica o processo. Formada pela aglutinação de perseguição e séquito (palavras que possuem raízes etimologicamente homólogas, mas cujos significados se opõem modernamente), ela expressa o misto de admiração e rancor, ambiguamente presentes nas atitudes e sentimentos das pessoas que acompanhavam o fato inimitável. Em relação ao contexto, Rosa poderia estar representando as emoções variadas e contraditórias que se seguiram aos novos fatos históricos e culturais que se estabeleciam naqueles tempos de ebulição.

5. Para concluir, retomemos a idéia de revolução presente neste conto. O sentido religioso de apocatástase apontava para a inclusão do diferente, do que desafia a ordem ( do demoníaco). Os outros dois mostram, cada um a sua maneira, um retorno a um ponto anterior, de onde o movimento começara. A razão retorna ao doente e ele se cura; o astro "volta" a seu ponto de origem. O primeiro sentido deixa marcas na narração: o narrador não deixa de se sentir seduzido pela desordem inicial. Quanto ao segundo, a recuperação da razão, este fato, aparentemente conservador, não evita, no entanto, um novo conhecimento sobre a vida. O Doutor Bilolo já não é mais só certezas e máximas: "- A vida é constante, progressivo desconhecimento....definiu o Dr. Bilolo, sério, entendo que pela primeira vez. ", desconcerta-se o narrador. Quanto ao astro da terceira acepção de apocatástase, vemos que, da peripécia do homem tornado sol pela palmeira, resta esta, a palmeira: "Só restava imudada, irreal, a palmeira." Esta palmeira é a marca do mito, tal qual o entende Benjamin: o resto que, muda e imudada, fala de um tempo recuperado alegoricamente, porque a palavra foi despertada em seu sono.

A nós, parece-nos que esta é a concepção política da estética de Guimarães Rosa: sua revolução não se marca como ruptura ou catástrofe, mas como um lúcido retorno ao mito, o que pode significar um desejo de recuperar aquilo que está para sempre perdido, ou algo que, não tendo sido nunca possuído , no entanto, brilha ali.

Referências Bibliográficas


BENJAMIN, W. Sobre el problema de la filosofia futura y otros ensayos. Trad. Roberto J. Vernengo. Caracas: Monte Avila Editores C.A. , 1961.
BOLLE, W. Grande Sertão: Cidades. Revista USP (24): 80-93, São Paulo: 1995
BOTTOMORE, T. Dicionário do pensamento marxista. Org. Antônio Monteiro Guimarães. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1988
Revista Visão " jul/1971 " p.52/58
ROSA, J. G. Ficção completa, em dois volumes. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.


Terezinha Scher Pereira é professora de Literatura Comparada e de Literatura Brasileira da Universidade Federal de Juiz de Fora (MG). É co-autora do livro Fronteiras da literatura " discursos transculturais, Rio de Janeiro, Relume-Dumará, 1999.
E-mail:tscher@ichl.ufjf.br