O Monstro de Horácio
Eduardo Vieira Martins
(Universidade Estadual de Londrina)
Resumo
Este artigo pretende analisar as
crônicas publicadas por José de Alencar sob o título
de "Ao Correr da Pena". Num primeiro momento, procura-se compreender
a idéia que ele possuía desse gênero de composição.
A seguir, os artigos são tomados como uma espécie de
ensaio no qual o escritor testava temas e procedimentos estilísticos
que seriam posteriormente retomados e desenvolvidos em seus romances.
Resumé
Cet article a comme objectif l'annalyse des chroniques publiées
par José de Alencar sous le titre de "Ao Correr da Pena". Premièrement,
il s'agit de comprendre l'idée qu'il avait de ce genre de composition.
Ensuite, les articles sont vus comme une espèce d'essai où
l'ecrivain expérimentait les sujets et les procédés
stylistiques qui seraient reemployés et développés
dans ses romans.
Em 1854, a convite de Francisco Otaviano, um amigo dos tempos da Academia
de São Paulo, José de Alencar iniciou sua carreira na imprensa
como cronista do Correio Mercantil. Otaviano, que assinava o folhetim
do Jornal do Comércio, havia se transferido aquele ano para
o Correio, de propriedade de seu sogro, Muniz Barreto, no qual
iria se encarregar da seção política. No dia 6 de
agosto, convidou o antigo colega para substituí-lo, deixando a
esse, ao que tudo indica, a possibilidade de optar em que jornal preferia
ingressar. No dia 9, Alencar lhe escrevia:
Lembras-te do que conversamos domingo à
noite vindo de Botafogo, e especialmente de um projeto que me comunicaste,
o qual me diz respeito, se há de realizar em setembro? Se te
lembras, deves lembrar-te também do que disse na ocasião,
que a seguir uma carreira nova para mim, desejava começá-la
a teu lado e debaixo de tuas vistas, por que me sorri essa idéia
de continuarmos colegas e amigos, embora já lá vão
os tempos de S. Paulo. (ALENCAR: 1965, 41)
Num breve pós-escrito, o missivista explicitava
as opções de que dispunha:
Esqueceu-me dizer-te que qualquer das duas coisas
que se realize, Correio Mercantil ou Jornal do Comércio,
desejava que ficasse em segredo. De qualquer dos dois modos te vou
substituir, e por conseguinte prefiro que a dificuldade da posição
recaia sobre um nome ignorado absolutamente. (ALENCAR: 1965, 41)
O impasse terminou, como se sabe, com o ingresso de Alencar
no Correio, onde, entre 3 de setembro de 1854 e 8 de julho de 1855,
escreveu uma primeira série de crônicas publicada sob a rubrica
"Ao Correr da Pena". Irritado com a censura imposta ao seu último
artigo, no qual fazia críticas ao que lhe pareciam excessos do
mercado de ações, deixou o jornal. Ingressando no Diário
do Rio de Janeiro, retomou sua função de folhetinista,
escrevendo, entre 7 de outubro e 25 de novembro de 1855, sete artigos
estampados sob a mesma rubrica.
Ainda que possam ser tomados como sua estréia regular na imprensa,
esses escritos não foram os primeiros de sua autoria a serem publicados
em jornais. Nos tempos de estudante em São Paulo, Alencar fundou,
juntamente com alguns colegas, a revista Ensaios Literários,
na qual publicou três artigos, enfocando, respectivamente, o cultivo
da carnaúba, a história de Antônio Felipe Camarão
e, muito significativamente, o problema do estilo mais adequado para a
literatura brasileira. Apesar de pequena, essa colaboração
é de extrema importância, seja como documento revelador das
preferências e tendências do futuro romancista, seja como
sinal inequívoco da sua participação no movimento
cultural que agitava a Academia de São Paulo.
Além desses textos divulgados numa pequena revista acadêmica,
Alencar publicara, por influência do mesmo Francisco Otaviano, alguns
artigos esparsos em jornais da corte. Resumia-se a isso sua pequena experiência
de jornalista. Francisco de Assis Barbosa afirma que, por ocasião
do convite para ocupar o cargo de folhetinista do Correio Mercantil,
"ninguém, a não ser Otaviano, levava a sério o
filho do Senhor Alencar" (BARBOSA: s/d, 16). Como se pode perceber
pelo pós-escrito da carta que enviou ao amigo, o próprio
candidato a cronista sentia o peso da responsabilidade que teria sobre
os ombros, preferindo, a princípio, manter seu nome em sigilo.
Colaborava para aumentar a desconfiança em relação
a ele o fato de o folhetim dominical que iria assumir ser um espaço
altamente valorizado e de grande visibilidade.
Segundo João Roberto Faria, os folhetins eram artigos semanais
que misturavam comentários sobre artes e ciências com notícias
de fatos mundanos diversos. Eles
eram geralmente publicados aos domingos, no rodapé
da primeira página, e [...] vários assuntos acotevelavam-se
no mesmo espaço. Um espaço privilegiado, diga-se de
passagem, para o folhetinista se fazer conhecido. (FARIA: 1992,
304)
Adotado no nosso jornalismo por influência francesa
-- responsável ainda pelo nome que receberia por aqui: o termo
brasileiro é uma adaptação de feuilleton --,
foi Otaviano o primeiro a cultivar entre nós o folhetim caracterizado
pela leveza de estilo e variedade de assunto (FARIA: 1992, 304). Machado
de Assis, numa crônica de 1859, descreve esse tipo de artigo como
uma planta francesa[1] que os jornais locais tentavam, sem muito sucesso, aclimatar
a suas páginas; sua principal característica seria a combinação
de assuntos sérios e jocosos:
O folhetim [...] nasceu do jornal, o folhetinista
por conseqüência do jornalista. Esta íntima afinidade
é que desenha as saliências fisionômicas na moderna
criação.
O folhetinista é a fusão admirável do útil
e do fútil, o parto curioso e singular do sério, consorciado
com o frívolo. Estes dois elementos, arredados como pólos,
heterogêneos como água e fogo, casam-se perfeitamente
na organização do novo animal. (ASSIS: 1962, III,
959)
Mesmo com seu aspecto despretensioso de notas tomadas
ao acaso e lançadas ao papel sem maiores preocupações,
a facilidade desse tipo de escrito é apenas aparente: "Passam-se
séculos", diz Machado, "nas horas que o folhetinista gasta
à mesa a construir a sua obra" (ASSIS: 1962, III, 959). Magalhães
Jr. observa que Alencar parece ter sentido dificuldade de se adaptar ao
novo emprego. Teria sido esse o motivo pelo qual, inicialmente, os folhetins
não saíram com a regularidade prevista: o segundo rodapé
apareceu apenas quatorze dias depois do primeiro. Mais importante do que
a falha de uma semana é o fato de essa dificuldade ter sido abordada
pelo próprio autor em diversas crônicas que tematizam o trabalho
do folhetinista. Para nós, esses textos interessam à medida
que revelam a visão que Alencar tinha dessa modalidade de artigo.
No dia 24 de setembro de 1854 -- quando, a aceitar-se a hipótese
de Magalhães Jr., já tivera tempo de sentir a dificuldade
de sua função, deixando, inclusive, de enviar a colaboração
do dia 10 --, Alencar escreve o primeiro artigo em que aborda detidamente
a natureza do folhetim. Depois de narrar diversos fatos ocorridos num
mesmo domingo, interrompe o relato para dizer que esse dia movimentado
o inquietava, pois o fazia temer pela semana que se iniciava de forma
tão brilhante e da qual ele teria que fazer o resumo na sua crônica.
Amaldiçoa, então, "o inventor desse monstro de Horácio,
deste novo Proteu, que chamam -- folhetim", e comenta:
Obrigar um homem a percorrer todos os acontecimentos,
a passar do gracejo ao assunto sério, do riso e do prazer às
misérias e às chagas da sociedade; e isto com a mesma
graça e a mesma nonchalance com que uma senhora volta as páginas
douradas do seu álbum, com toda a finura e delicadeza com que
uma mocinha loureira dá sota e basto a três dúzias
de adoradores! Fazerem do escritor uma espécie de colibri a
esvoaçar em ziguezague, e a sugar, como o mel das flores, a
graça, o sal e o espírito que se deve necessariamente
descobrir no fato o mais comezinho!
Ainda isto não é tudo! Depois que o mísero
folhetinista por força de vontade conseguiu atingir a esse
último esforço da volubilidade, quando à custa
de magia e de encanto fez que a pena se lembrasse dos tempos em que
voava, deixa finalmente o pensamento lançar-se sobre o papel,
livre como o espaço. Cuida que é uma borboleta que quebrou
a crisálida para ostentar o brilho fascinador de suas cores;
mas engana-se: é apenas uma formiga que criou asas para perder-se.
(ALENCAR: 1960, IV,647-648. Daqui em diante, indicarei apenas
as páginas das citações, ficando entendido que
todas são feitas a partir dessa edição.)
Em que pese a ironia da passagem, o folhetim é
retoricamente apresentado como o "monstro de Horácio" e
seu autor como uma "espécie de colibri" ou "borboleta"
que passeia com leveza e rapidez por diferentes assuntos. A referência
à Arte poética coloca em questão o problema
da unidade temática desse gênero de escrita: ao caracterizá-lo
a partir da metáfora da figura horaciana construída de partes
de diferentes animais, Alencar apresenta a variedade de temas como o elemento
distintivo do folhetim. Tal variedade não passou despercebida a
Joaquim Nabuco, que, no entanto, a avaliava como defeito e não
como o traço caracterizante desse gênero amorfo:
À que ordem de produções pertencem
porém esses folhetins? A nenhuma. Não são artigos
de crítica, também não são artigos de
fantasia,
observava num dos textos em que discutia a produção
do autor de O guarani. Mais adiante, acrescentava:
Tudo se acha misturado nesses folhetins, a política
e os teatros, o Cassino e a praia de Santa Lusia, anúncios
de alfaiates e trocadilhos, mas tudo isso sem transições,
sem artes, um pot-pourri, em que nada falta, senão o
gosto. (NABUCO: 1978, 68-69)
Alencar, por sua vez, procurava compreender o folhetim
segundo suas características próprias e tentava encontrar
uma classificação para ele. Não podendo encaixá-lo
em nenhum dos gêneros previstos pela retórica, define-o segundo
o tema -- "todos os acontecimentos, [...] do gracejo ao assunto sério"
-- e o estilo -- a "nonchalance" e a "volubilidade" de quem
fala de tudo sem se empolgar com nada. Gênero misto, sua grande
dificuldade residiria exatamente na falta de regras que o regulassem:
Nada, isto não tem jeito! É preciso
acabar de uma vez com semelhante confusão, e estabelecer a
ordem nestas coisas. [...] O poeta glosa o mote, que lhe dão,
o músico fantasia sobre um tema favorito, o escritor adota
um título para seu livro ou o seu artigo. Somente o folhetim
é que há de sair fora da regra geral, e ser uma espécie
de panacéia, um tratado de omni scibili et possibili,
um dicionário espanhol que contenha todas as coisas e algumas
coisinhas mais? Enquanto o Instituto de França e a Academia
de Lisboa não concordarem numa exata definição
do folhetim, tenho para mim que a coisa é impossível.
(pp. 648-49)
A mistura folhetinesca é, antes de tudo, temática,
posto ser sua função cobrir da forma mais completa possível
os acontecimentos da semana: "não há remédio",
diz Alencar certo dia, "senão [...] voltar ao positivo da crônica,
desfiando fato por fato, dia por dia" (p. 684). Noutra passagem, observa
que o folhetim é o "livro da semana", cujo título
poderia ser:
LIVRO DA SEMANA
ou
HISTÓRIA CIRCUNSTANCIADA DO QUE SE PASSOU
DE MAIS IMPORTANTE
nesta
CIDADE DO RIO DE JANEIRO
desde
O DIA 11 DO CORRENTE MÊS, EM QUE SUBIU AOS
ARES COM GERAL ADMIRAÇÃO,
O BALÃO AEROSTÁTICO
ATÉ O DIA DE HOJE 18
compreendendo os acontecimentos mais notáveis
da semana, não só a respeito de
teatros e divertimentos,
como em relação à po-
lítica, às artes
e ciências
OBRA CURIOSÍSSIMA
em todos os sentidos
Escrita
no ano da graça de Nosso Senhor Jesus Cristo
de 1855
Por
UMA TESTEMUNHA OCULAR
RIO DE JANEIRO
MDCCCLV (pp. 842-43)
Ao tentar abarcar os mais diversos acontecimentos, o folhetim adquire
um aspecto jornalístico: ele é uma "revista" (termo
tantas vezes empregado pelo autor como sinônimo de "crônica")
que contém um "pequeno mundo de seis dias" (p. 804). Brito
Broca observa que
os folhetins giravam freqüentemente em torno
de três assuntos que polarizavam o interesse e a atenção
da sociedade brasileira do Segundo Reinado: o mundanismo (bailes,
festas, reuniões), a vida teatral (principalmente os espetáculos
líricos) e a política (a eterna torcida provocada pelo
revezamento dos partidos e a queda dos ministérios). (BROCA:
1960, 632)
Para dar uma idéia da variedade de temas que podiam
dividir o mesmo rodapé, basta lembrar que o artigo que maldizia
o criador do folhetim narrava a inauguração do Jockey
Club e do Instituto dos Cegos, além de dar as últimas
notícias trazidas pelo "paquete de Southampton": a guerra
da Criméia; considerações acerca do "governo
constitucional" motivadas pela notícia de distúrbios
violentos no Egito; a aposentadoria de um membro do governo espanhol
que desempenhava funções diplomáticas no Brasil;
reflexões sobre a "conversa divertida" que alguns indivíduos
insistem em manter conosco em locais e horários impróprios;
e, para arrematar, críticas ao desconforto dos teatros. Tudo
isso em pouco mais de cinco páginas (considerando-se a versão
em livro) .
O folhetim é descrito não só como o "monstro
de Horácio", mas também como "um novo Proteu"
(pp. 647-8), pois a mistura que opera não se restringe ao aspecto
temático, manifestando-se ainda nas diferentes formas que ele
pode assumir. Na maior parte das vezes, trata-se de um artigo em que
o autor relata em tom de conversa amena os acontecimentos da semana
ao leitor -- ou, melhor dizendo, "leitora", como Alencar costuma
se referir ao seu interlocutor. Já no primeiro folhetim, advertia
"que escritos ao correr da pena são para serem lidos ao correr
dos olhos" (p. 639), indicando assim o seu caráter de artigo
leve, destinado a informar distraindo. Como se viu, esse artigo caracterizava-se
por tratar de matérias díspares, o que era possível
de se obter saltando-se rapidamente de um assunto a outro através
de cortes mais ou menos abruptos. "Mas onde já ando eu?",
pergunta-se num deles,
Comecei num salão de baile, e parece-me
que estou nalgum corpo de guarda. Eis aí o risco de escrever
ao correr da pena.. Se eu tivesse um compasso e um
tira-linhas, não havia de suceder semelhante coisa.
Riscaria primeiramente o meu papel, escreveria o meu artigo letra
por letra, pensando maduramente sobre cada palavra, refletindo profundamente
na colocação dos pontos e vírgulas; depois
convocaria um conselho de sábios, e discutido o artigo em
conclusões magnas, entregá-lo-ia ao compositor, quando
se findassem os nove anos de correção que impõe
o preceito da Arte poética. (p. 693)
Por vezes, aos relatos dos fatos vinham juntar-se conselhos
ou até mesmo pedidos a suas leitoras. São inúmeras
também as citações de autores estrangeiros antigos
e contemporâneos.[2]
Ao lado dessa forma básica, outras faces de Proteu iam sendo
desenhadas. Assim, dois artigos são redigidos como cartas, o
de 1.º de outubro e o de 3 de novembro de 1854. Naquele, o autor
escreve para o editor dizendo-lhe que não enviará sua
"Revista costumada dos domingos" (p. 651) e, para justificar
sua falta, narra como foi sua semana. Ao final da carta, depois de datá-la
e assiná-la, sugere ingenuamente um "expediente" para
remediar a situação: "A liberdade do folhetinista é
ilimitada, a carta longa; portanto escreva em cima o nosso título
-- Ao correr da pena -- e mande para a composição"
(p. 657).
Algumas crônicas assumem a forma de pequenas narrativas, como,
por exemplo, a do dia 31 de dezembro de 1854, intitulada "Conto Fantástico".
Nela, o folhetinista relata seu encontro com "um homem já
idoso": trata-se do "Ano de 1854", que foi procurá-lo
para pedir-lhe benevolência na hora de redigir o artigo avaliando
o seu "reinado", prestes a se findar (pp. 709-10). O diálogo
que estabelece com o inesperado visitante possibilita que relembre e
comente os fatos mais importantes do ano. No rodapé do dia 3
de junho de 1855, compara a semana que passou a um livro cujas páginas
vai folheando e das quais ressalta alguns acontecimentos, e na de 18
de novembro desse ano, retomando a mesma imagem, afirma:
Desta vez estou de verve; vou escrever
um livro.
Se bem me lembro, já dei aos meus leitores um folhetim-romance,
um folhetim-comédia, um folhetim em viagem, um folhetim-álbum.
Faltava-me porém dar um folhetim-livro, e por isso quero
hoje realizar essa nova transformação do Proteu da
imprensa. (p. 842)
Depois de explicar que o folhetim "é o livro
da semana", "um dos volumes de uma obra intitulada O Ano de 1855"
(p. 842), apresenta as diferentes partes que o compõem: título,
dedicatória, prólogo, introdução, "índice
dos capítulos" e o texto propriamente dito. No índice,
enumera os fatos significativos da semana, dos quais, entretanto, não
desenvolve nenhum, pois não haveria leitores para tanto: "O
leitor passa os olhos rapidamente, folheia o livro, e apenas de espaço
a espaço encontra uma boa idéia, um trecho interessante"
(p. 845).
Mais características ainda são aquelas crônicas
que misturam diferentes formas. No seu artigo de estréia, por
exemplo, Alencar lançava mão de um pequeno "conto de
fadas" para explicar sua entrada no Correio Mercantil como
substituto de Francisco Otaviano (pp. 639-40) e, logo a seguir, passava
a dar as notícias internacionais "trazidas pelos dois últimos
paquetes" (p. 640). Na do dia 4 de novembro de 1855 inclui, ao lado
de considerações sobre o ponto de interrogação
e de um poema "A Emmy La Grua", uma das divas do canto lírico
de então, um pequeno conto alegórico sobre as "mocinhas
brasileiras" (pp. 836-7). No domingo seguinte, 11 de novembro, alterna
um "romance" com notícias sobre o teatro lírico.
Se no tocante aos temas e formas o folhetim apresentava-se como gênero
misto, quanto à linguagem caracterizava-se por adotar um estilo
baixo. No rodapé de 14 de janeiro de 1855, endereçando-se
às leitoras, Alencar afirma que "já deveis estar aborrecidas
da prosa chã e rasteira deste artigo" (p. 723). Parecia ser
ela, com efeito, a mais adequada ao tom de conversa amena que estabelece
com o interlocutor, além de prestar-se bem às rápidas
mudanças de assunto que se esperavam do escritor-colibri e funcionar
como fator de aproximação entre autor, leitor e assunto.
Em outra passagem, compara o folhetinista a "uma esponja que durante
a semana se embeba e sature de idéias, e que ao domingo se esprema
no papel, e deite uma chuva de bonitos pensamentos e lembranças
graciosas" (p. 829). A imagem, feliz como registro da diversidade
de assuntos de que a crônica devia tratar, também pode
ser lida como metáfora do seu estilo. O cronista deveria absorver
os fatos e espremê-los sobre o papel, registrando-os da forma
mais direta possível, sem ornamentos. Outro aspecto característico
do estilo alencariano nos folhetins é o uso -- ou mesmo o abuso
-- dos trocadilhos. Revelando um encantamento quase infantil do jovem
escritor com a linguagem, esse traço foi duramente criticado
por Joaquim Nabuco, para quem seus folhetins eram
uma verdadeira salada de que o calembourg
é a beterraba, e em que, segundo a regra, 'um avarento deitou
o vinagre, e um pródigo o azeite', só faltando quem
lhe deitasse o sal. (NABUCO: 1978, 68)
A par do aspecto puramente jornalístico, de registro
dos acontecimentos da semana, o folhetim, com sua liberdade temática
e formal, muitas vezes adentrava a província da literatura. Essa
passagem já era sugerida pelas diversas formas por ele assumidas,
como "romance", "conto de fadas" ou "fantástico".
Segundo Alencar, era comum criticar-se o folhetinista porque "inventou
em vez de contar, o que por conseguinte excedeu os limites da crônica"
(p. 648). Regina Lúcia Pontieri observa que um dos movimentos
característicos de Ao correr da pena "é a técnica
de, num só pulo, saltar do cotidiano mesquinho para os altos
píncaros do imaginário sem freios" (PONTIERI: 1988,
36). Daí a recorrência da comparação do folhetinista
com a crisálida. Ela representa "o cronista obrigado pelas
circunstâncias a falar das banalidades da vida da Corte -- que
rompe o casulo e lança a imaginação às alturas
da borboleta" (PONTIERI:1988, 36). Nessas passagens, a linguagem
se afasta da "prosa chã e rasteira" e se alça a
um estilo mais elevado. Descrições, especialmente da natureza,
mas também de pessoas, se repassam de um tom poético que
anuncia a dicção do futuro romancista.
Dessa maneira, simultaneamente ao interesse que despertam como gênero
literário particular ou testemunho das transformações
pelas quais passava o Rio de Janeiro de meados do século passado,
os textos de Ao correr da pena fornecem ao estudioso uma espécie
de amostra dos temas e procedimentos estilísticos que seriam
posteriormente retomados pelo romancista. José Maria Vaz Pinto
Coelho, no prefácio para a primeira edição das
crônicas em livro (1874), afirmava ser possível identificar
nelas o "escritor que tinha que ser qual o vemos" (Apud
FARIA: 1992, 302), inaugurando o caminho que seria trilhado por diversos
pesquisadores que buscaram nesses artigos elementos para discutir diferentes
aspectos da produção alencariana. Regina Lúcia
Pontieri, por exemplo, reconhece neles um prenúncio da importância
atribuída pelo romancista ao ato de olhar (PONTIERI: 1988); João
Roberto Faria (a cujo trabalho minucioso devemos a descoberta de crônicas
que haviam escapado à edição organizada por Francisco
de Assis Barbosa), encontrou num folhetim de 1856 o germe, por assim
dizer, da peça O Rio de Janeiro, verso e reverso (FARIA:
1987); e Valeria De Marco, comparando a descrição da serra
dos Órgãos feita numa crônica com a presente em
O guarani, pôde estabelecer alguns procedimentos empregados
pelo autor para recriar o passado heróico em que se desenvolve
a narrativa (MARCO: 1993).
É possível que o leitor já familiarizado com o
romance de Alencar seja tomado, vez ou outra, por uma sensação
de déjà vu ao percorrer seus folhetins. Além
dos pontos levantados por aqueles pesquisadores, uma rápida vista
de olhos por Ao correr da pena revela outros temas caros ao autor.
O casamento por interesse, fulcro da intriga de Senhora, é
discutido nos folhetins de 10 de junho (no qual a mulher chega a ser
comparada com uma "letra de câmbio") e de 28 de outubro
de 1855; a idéia de que o Natal é uma festa campestre,
desenvolvida numa cena de O tronco do ipê, está
nas crônicas de 24 de dezembro de 1854 e de 8 de janeiro do ano
seguinte; e a paixão pelos pequenos pés femininos, mola
da ação de A pata da gazela, na de 3 de novembro
de 1854 e na de 13 de maio de 1855.
Não é só no aspecto temático que Ao correr
da pena antecipa traços característicos do romance
alencariano; algumas idéias expostas pelo autor apontam caminhos
que, já nos tempos de folhetinista, orientavam suas reflexões
sobre o gênero que o consagraria. Assim, numa crônica em
que descreve o Passeio Público afirma que
a nossa sociedade é ali dignamente representada
por dois tipos curiosos e dignos de uma fisiologia no gênero
de Balzac. O primeiro é o estudante de latim [...]. O segundo
é o velho do século passado [...] (pp. 664-65)
A eleição do escritor francês como
modelo literário a ser seguido se dera, segundo recordações
que o próprio Alencar registrou em Como e porque sou romancista,
ainda na época de São Paulo, quando o sempre amigo Francisco
Otaviano lhe franqueou o acesso à sua pequena mas bem escolhida
biblioteca (ALENCAR: 1990, 39 e ss.). A referência ao autor da
Comédia humana na crônica de 1854 mostra que o jovem
jornalista continuava fiel às suas impressões de estudante
e que, dois anos antes da publicação de Cinco minutos,
talvez já pensasse num ensaio de romance seguindo o modelo balzaquiano.
Noutro artigo, a propósito do aniversário do Rio de Janeiro,
rememoram-se diversos episódios da história da cidade.
Ao final dessa espécie de sonho em que os grandes vultos do passado
se erguem das sombras para subir a um pedestal e postar-se por um instante
frente aos leitores, o cronista comenta:
O que acabais de ler é uma página
perdida, é uma folha arrancada a um livro desconhecido [...].
A história do Rio de Janeiro tem algumas páginas,
como essa, tão belas, tão poéticas que às
vezes dá tentação de arrancá-las das
velhas crônicas, onde jazem esquecidas, para orná-las
com algumas flores deste tempo. (p. 726)
O guarani e Iracema, como se sabe, vieram
de páginas como essas, nas quais Alencar pressentia esconder-se
o tema para a feitura de um romance cujas linhas gerais iam pouco a
pouco se definindo na sua mente. O potencial da história como
fonte de sugestões parece ter-se evidenciado bastante cedo para
ele. No relato que nos deixou da sua formação como romancista,
conta que na biblioteca do velho convento de Olinda,
devorando as páginas dos alfarrábios
de notícias coloniais, buscava com sofreguidão um
tema para o meu romance; ou pelo menos um protagonista, uma cena
e uma época (ALENCAR: 1990, 48).
Data desse período o artigo para a revista Ensaios
Literários que escreveu sobre Antônio Felipe Camarão,
personagem que anos mais tarde figuraria em Iracema. A referência
no folhetim à possibilidade de um romance de matriz histórica
demonstra a persistência de um projeto que ia se tornando cada
vez mais claro e em breve iria se concretizar.
No mesmo rodapé em que recorda a história da corte, Alencar
toca em outro problema que ocuparia grande parte da sua reflexão
sobre a literatura, o da nacionalização da língua
portuguesa. Apesar do tom ligeiro com que é abordado (o autor
pergunta, ironicamente, se o meio de se nacionalizar a língua
seria misturá-la com a tupi ou traduzir palavras e expressões
estrangeiras consagradas pelo uso), vale registrar sua presença
em Ao correr da pena.
O papel da fantasia e da idealização na arte, ponto central
da poética alencariana, é abordado no folhetim de 7 de
outubro de 1855 (o primeiro da série publicada no Diário
do Rio de Janeiro), no qual se discute uma crítica à
interpretação que Emmy La Grua fez da personagem principal
da ópera Norma:
Falam por aí de algumas exagerações
que pretendem haver na criação deste papel dramático;
mas quem assim pensa, não tem uma verdadeira idéia da
arte.
[...]
Desde o momento em que o homem, nos vôos de sua inteligência
se eleva acima das circunstâncias ordinárias da vida,
desde que o seu pensamento se lança no espaço, possuído
desse desejo ardente, dessa inspiração insaciável
de atingir o sublime, não é possível marcar-lhe
um dique, um ponto que lhe sirva de marco.
Ide dizer ao poeta que não deixe correr sua imaginação
pelos espaços infinitos da fantasia, -- ide dizer ao pintor
que force o seu pincel quando corre sobre a tela, e eles vos responderão
que o pensamento que os anima neste instante escraviza e esmaga a
sua vontade; que a alma e o corpo cedem à força da inspiração
que os arrebata neste momento. (pp. 824-25)
O trecho citado parece resposta antecipada à censura
que freqüentemente se faria a romances como O gaúcho
ou O sertanejo: a de conter exagerações que
deturpariam a realidade. A propósito da atuação de
La Grua, Alencar defende a supremacia da inspiração, da
fantasia e da imaginação, espécie de "fogo sagrado",
como ele dirá um pouco mais abaixo, que subjuga a vontade e desvia
o olhar do artista das limitações do dia-a-dia para as alturas
do sublime. Essa perspectiva idealizante marca o romance alencariano e
é defendida aqui com um vigor poucas vezes visto nas suas reflexões
teóricas sobre a literatura.
Mais interessante, porém, do que peneirar temas e idéias
que surgem nas crônicas e ecoam pela obra de Alencar a fora, é
perceber, em algumas passagens, o ensaio de recursos estilísticos
que seriam posteriormente afinados e utilizados nos romances. Talvez o
momento em que isso ocorra de maneira mais nítida seja no folhetim
de 22 de outubro de 1854, no qual se descreve um sermão proferido
por Monte Alverne (pp. 661-63)
.
A crônica se inicia com o céu se abrindo depois de alguns
dias de chuva e o folhetinista convidando o leitor a juntar-se a ele na
romaria que demanda a Capela Imperial para assistir à festa de
São Pedro de Alcântara. Descreve, então, a igreja,
cujo aspecto sombrio e pomposo compõe a ambiência mística
que leva o espírito ao recolhimento. Isolado de todos, numa posição
que lhe permite observar o público, o narrador percebe um "o
que quer seja fora do comum" agitando os fiéis: "Qual seria
a causa poderosa que perturbava assim a gravidade da oração?".
Nesse cenário onde tudo elevava o espírito em direção
a Deus -- "as luzes, o silêncio e as sombras, as galas e a música"
--apenas uma coisa faltava, infundindo entre os fiéis a ansiedade
e a curiosidade: a palavra.
Era isso o que todos esperavam. Os olhos se voltavam
para o púlpito onde havia pregado Sampaio, S. Carlos e Januário;
e pareciam evocar dos seus túmulos aquelas sombras ilustres
para virem contemplar um dia de sua vida, uma reminiscência
de suas passadas glórias. (pp. 661-62)
Pouco a pouco, o silêncio se completa, e um vulto
assoma entre a sombra das arcadas. É um homem bastante velho,
cuja cegueira e fragilidade infundem à sua figura "o espírito
da religião". Depois de pequenos gestos e de uma rápida
preparação, ele inicia o sermão:
Fr. Francisco de Monte Alverne pregava! Já
não era um velho cego, que a desgraça e a religião
mandava respeitar. Era o orador brilhante, o pregador sagrado, que
impunha a admiração com a sua eloqüência
viva e animada, cheia de grandes pensamentos e de imagens soberbas.
(p. 662)
A pregação, que rompia um "silêncio
de vinte anos", a todos arrebata; ao folhetinista mais do que a
qualquer outro ouvinte. Os alunos de eloqüência do Colégio
de Pedro II comparecem à Capela, conduzidos pelo professor, para
assistir a uma "lição prática de oratória";
e os mais velhos dentre os fiéis, que tinham ouvido o frade franciscano
em outros tempos, asseguravam a superioridade do sermão que acabava
de ser proferido em relação aos de outrora.
Há nessa breve passagem sobre Monte Alverne muito do estilo que
caracterizaria o narrador alencariano. Em primeiro lugar, percebe-se
o que Valeria De Marco, analisando a abertura de O guarani, chamou
de "concepção teatral do enredo" (MARCO: 1993,
21). O folhetinista prepara cuidadosamente a entrada em cena da personagem,
descrevendo, antes, o cenário onde ela se insere e com o qual
se identifica intimamente. Em Alencar, o ambiente é trabalhado
de maneira a prefigurar a ação e o caráter daqueles
que o habitam.[3] Nesse sentido, a gravidade da Capela Imperial
está em profunda concordância com a cerimônia nela
celebrada, e seu aspecto sombrio, onde a luz penetra apenas de forma
vacilante pelos vitrais ou se espalha em pequenos círculos a
partir dos círios, antecipa a cegueira do orador. O silêncio
que se vai espalhando pela audiência permite que se evoquem as
vozes dos velhos pregadores, até que, surgindo de entre as sombras,
o frade franciscano inicie o sermão. A tentativa de criação
do suspense por sugestão e adiamento, parte do arsenal de recursos
da ficção alencariana, também surge aqui. É
apenas no 17.º parágrafo da pequena narrativa, depois de
descritos o cenário e a personagem, que o nome de Monte Alverne
é apresentado.
Outro procedimento recorrente em Alencar que já aparece nesse
pequeno texto é o uso da amplificação. Hugh Blair,
professor de eloqüência em Edinburgo na segunda metade do
século XVIII e autor de um tratado de retórica muito lido
no Brasil do século XIX através de suas traduções
francesas, define-a como uma exageração obtida através
do acúmulo de características favoráveis ou desfavoráveis
ao objeto ou ação que se pretende louvar ou vituperar:
Elle consiste en une exagération faite
avec art de toutes les circonstances favorables ou défavorables
de l'object ou de l'action que l'on veut mettre en évidence.
A proprement parler, c'est moins une figure qu'une disposition adroite
de toutes celles qui peuvent concourir à nous porter au même
but, que l'on remplit soit en se servant d'expressions propres a aggraver
ou à atténuer; soit en faisant passer successivement
en revue chaque circonstance particulière, ou en les représentant
en masse; soit enfin en prenant pour point de comparaison des choses
ou des événements d'une nature analogue. Mais on arrive
principalement par une disposition graduelle de circonstances qui,
en enchérissant toujours l'une sur l'autre, conduisent au plus
haut degré l'idée ou la conviction qu'on veut donner.
(BLAIR: 1845, 314)
Alencar a utiliza, mais freqüentemente, como recurso
para dotar uma personagem de estatura heróica, encontrando nela
o dispositivo preferencial para a construção da perspectiva
idealizante anteriormente referida. No texto que estamos discutindo, a
amplificação se dá pela projeção da
grandiosidade dos maiores oradores do passado -- "Sampaio, S. Carlos
e Januário" -- sobre Monte Alverne. No momento em que o frade
franciscano profere o sermão,
seus lábios, quebrantando o silêncio de
vinte anos, lançaram aquela palavra sonora, que encheu o
recinto, e que foi acordar os ecos adormecidos de outros tempos.
(p. 662)
Ecos de sua própria voz mas também das vozes
dos velhos pregadores que a platéia ansiosa evocava, olhando
para o púlpito vazio, antes do início da prédica.
A afirmação da superioridade desse sermão comparado
a outros do mesmo orador é mais um exemplo de amplificação
que se opera no texto.[4]
Mas se as crônicas antecipam diversos temas e aspectos que serão
explorados pelo ficcionista, certos traços contribuem para fixar
sua fisionomia própria. O mais notável deles talvez seja
uma certa atenuação da perspectiva fortemente idealizante
que marca os romances, permitindo a entrada nos folhetins de aspectos,
por assim dizer, desagradáveis da vida da corte. No rodapé
dos jornais, Alencar reclama da carestia e da escassez de gêneros
alimentícios, da má conservação do Passeio
Público, do "acanhado salão de São Pedro de
Alcântara" (p. 739) e das péssimas condições
do Teatro Lírico, "o mais insuportável dos suadores"
(p. 707). A crítica mais incisiva talvez seja a do dia 29 de
outubro de 1854, quando comenta amargamente a decisão do Ministro
do Império de isentar a Câmara Municipal da responsabilidade
sobre a limpeza da cidade:
Embora tenhamos as ruas cheias de lama e as praias
imundas, embora a cidade às dez horas ou meia-noite esteja
envolta numa atmosfera de miasmas pútridos, embora vejamos
nossos irmãos, nossas famílias e nós mesmos
vítimas de moléstias provenientes desses focos de
infecção! (p. 667).
A presença desses elementos negativos diferencia
a imagem da cidade na crônica e no romance, estabelecendo uma
linha distintiva entre os dois gêneros. Registre-se, entretanto,
que apesar dessas concessões ao prosaísmo, o olhar embelezador,
característico do narrador alencariano, já está
presente nos folhetins, elevando e conferindo dignidade à provinciana
Rio de Janeiro do Segundo Império. Para evitar uma leitura simplificadora
que limitasse as diferenças entre os gêneros a uma suposta
oposição entre realismo e idealização, vale
relembrar o comentário de Machado de Assis sobre os textos de
Ao correr da pena:
Curto era o espaço, pouca a matéria;
mas a imaginação de Alencar supria ou alargava as
coisas, e com o seu pó de ouro borrifava as vulgaridades
da semana. A vida fluminense era então outra, mais concentrada,
menos ruidosa. O mundo ainda não nos falava todos os dias
pelo telégrafo, nem a Europa nos mandava duas e três
vezes por semana, às braçadas, os seus jornais. [...]
[...] A fantasia de Alencar, porém, fazia render a matéria
que tinha, e não tardou que se visse no jovem estreante um
mestre futuro, como Otaviano, que lhe entregara a pena. (ASSIS:
1962, III, 922-23)
Ao lado dos miasmas e pestes, o folhetim traz a fantasia
e a idealização. Na retórica alencariana, o verossímil
do gênero crônica não se diferencia daquele do romance
por um registro realista dos fatos, mas por um certo abaixar de olhos:
enquanto nesse tudo tende ao grandioso e elevado, naquele há
espaço também para pequenas máculas e imperfeições.
Nesse sentido, a afirmativa de Araripe Jr de que "os folhetins de
José de Alencar eram um constante revolutear à pista de
assuntos graciosos" deve ser ligeiramente matizada, caso contrário,
corre-se o risco de se cometer uma injustiça com o cronista (ARARIPE
Jr.: 1958, 151).
Falando de assuntos amenos, como a última noite no teatro, ou
graves, como o mercado de ações, o tom dominante nas crônicas
é o otimismo dos anos da conciliação, embalados
pela efervescência econômica decorrente da entrada na cidade
de capitais que, após o recrudescimento da repressão ao
tráfico de escravos operado pela lei Eusébio de Queirós,
buscavam outros campos de aplicação. Dando voz a esse
sentimento, o folhetinista comenta:
Como não dar largas à imaginação,
quando a realidade vai tomando proporções quase fantásticas,
quando a civilização faz prodígios, quando
no nosso próprio país a inteligência, o talento,
as artes, o comércio, as grandes idéias, tudo pulula,
tudo cresce e se desenvolve?
Na ordem dos melhoramentos materiais, sobretudo, cada dia fazemos
um passo, e em cada passo realizamos uma coisa útil para
o engrandecimento do país. (p. 702)
No âmbito da política, defende a conciliação
em mais de uma passagem, chegando a considerar não haver oposicionistas,
mas apenas "queixosos" (p. 774). A propósito da situação
vivida pelo gabinete, afirma que "navegamos num mar de rosas ao sopro
de brisas bonançosas; faz um tempo soberbo: tudo sorri, tudo
brilha" (p. 762). Esse otimismo satisfeito atravessa as crônicas,
dando-lhes um tom diverso da nonchalance que o escritor, em suas
reflexões sobre o gênero, dizia caracterizá-las.
Como se pôde perceber ao longo dessa leitura de Ao correr da
pena, os folhetins de Alencar se abrem a diferentes abordagens,
interessando tanto ao estudioso da obra do romancista, que neles reconhece
uma espécie de exercício através do qual o futuro
escritor entrava em contato com a matéria da sua arte e preparava
seu estilo, quanto ao historiador, que os toma como registro das transformações
pelas quais passava a Corte no período da conciliação.
Escritos no alvorecer da crônica brasileira, podem ser lidos ainda
como um esboço de reflexão sobre o gênero. Inseridos
no contexto do pensamento alencariano sobre a literatura, os folhetins
em que a crônica é examinada surgem como tentativa de análise
de um dos gêneros cultivados pelo autor. Adotando uma perspectiva
à qual se manteria fiel no decorrer de sua vida de escritor,
Alencar procurava compreender as características de formas literárias
como o romance, a epopéia e o teatro mesclando conceitos da crítica
romântica com categorias herdadas da retórica antiga.
Mesmo relegada pelo romantismo ao canto empoeirado das coisas sem utilidade,
a retórica permaneceu viva ao longo do século XIX, reverberando
na voz de alguns dos nossos principais escritores. Contudo, os autores
dos tratados de eloqüência do período, revelando o
desgaste atingido pela velha arte, não se dedicaram à
investigação das novas formas de expressão que
iam surgindo, como a crônica ou o romance, restringindo-se à
redação de "manuais" ou "postilas" que se limitavam a
resumir os preceitos consagrados pela tradição.
Alencar, propondo a crônica como um tipo de texto particular,
procurava defini-la segundo suas características intrínsecas.
Gênero misto, redigido em estilo "chão", teria como
principais qualidades o caráter fluido, que lhe possibilitava
assumir diferentes formas, e a pluralidade temática. Ao folhetinista
caberia, como um verdadeiro colibri, narrar, com graça e familiaridade,
os principais acontecimentos da semana. "Monstro de Horácio"
e "Proteu da imprensa", era o gênero novo que possibilitava
contato rápido e direto com o público. Tomando a pena
anteriormente empunhada por Francisco Otaviano, Alencar lançou-se
na arena literária como cronista e conquistou, através
dos folhetins de Ao correr da pena, o primeiro degrau de sua
gloriosa carreira literária.
Bibliografia
ALENCAR, José de. Ao correr da pena. In: Obra completa.
Vol. IV. RJ: Ed. Aguilar, 1960.
__________ "Carta a Francisco Otaviano". In: MENEZESS, Raimundo de.
Cartas e documentos de José de Alencar. SP: Conselho Estadual
de Cultura, 1965.
__________ Como e porque sou romancista. Campinas: Ed. Pontes,
1990.
ARARIPE Jr., Tristão de Alencar. "José de Alencar". In:
Obra crítica. Vol. I. RJ: MEC/Casa de Rui Barbosa,
1958.
ASSIS, Machado de. "Aquarelas: IV. O Folhetinista". In: Obra completa.
Vol. III. RJ: Ed. Aguilar, 1962.
__________ "José de Alencar: O guarani". In: op. cit.
__________ "Teoria do Medalhão". In: Obra completa. Vol.
II. RJ: Ed. Aguilar, 1962.
AUERBACH, Eric. Mimesis. SP: Ed. Perspectiva, 1976.
BARBOSA, Francisco de Assis. "Prefácio". In: ALENCAR, José
de. Ao correr da pena. SP: Ed. Melhoramentos, s/d.
BLAIR, Hugh. Leçons de rhéthoric et de belles-lettres.
Trad. par M. J.-P. Quénot. Paris: L. Hachette, 1845.
BROCA, Brito. "José de Alencar -- Folhetinista". In: ALENCAR,
José de. Ao correr da pena. In: Obra completa.
Ed. cit.
COUTINHO, Afrânio (org.). A polêmica Alencar-Nabuco.
RJ: Tempo Brasileiro/Ed. Universidade de Brasília, 1978.
FARIA, João Roberto. "Alencar: A Semana em Revista". In: Vários
Autores. A crônica. Campinas/RJ: Ed. Unicamp/Fundação.
Casa de Rui Barbosa, 1992.
__________ José de Alencar e o teatro. SP: Ed. Perspectiva/Edusp,
1987.
MAGALHÃES Jr., R. José de Alencar e sua época.
RJ: Civilização Brasileira/INL, 1977.
MARCO, Valeria De. A perda das ilusões. Campinas: Ed.
Unicamp, 1993.
PONTIERI, Regina Lúcia. A voragem do olhar. SP: Ed. Perspectiva,
1988.
Notas
[1]Com relação à
influência das crônicas francesas no período, podemos
encontrar uma curiosa observação num conto do próprio
Machado de Assis. Em "Teoria do Medalhão", entre os diversos conselhos
que o zeloso pai transmite ao filho para que ele evite cair na tentação
de ter idéias próprias está a conversa com "os
leitores habituais das belas crônicas de Mazade; 75 por cento desses
estimáveis cavalheiros repetir-te-ão as mesmas opiniões,
e uma tal monotonia é grandemente saudável". Charles
de Mazade foi um dos autores que redigiu a "Chronique de la Quinzaine",
veiculada pela prestigiosa Revue du Deux Mondes. O contexto em
que o conto o cita, apresentado seus artigos como fonte dos lugares-comuns
da conversação dos "medalhões", dá uma idéia
da enorme popularidade do cronista. Ver ASSIS: 1962, II, 291.
[2] Segundo Magalhães Jr., durante
a fase em que redigiu seus folhetins, Alencar mantinha "cadernos de
frases de escritores de várias nacionalidades, de provérbios,
de significados de vocábulos pertencentes à linguagem popular
ou regional". Para um rápido levantamento dos autores compilados
num desses cadernos, ver MAGALHÃES Jr.: 1977, 45.
[3] A propósito de O pai Goriot,
Auerbach observa que Balzac, nas descrições dos cenários
e personagens, trabalha com uma idéia de "unidade de estilo
do meio", através da qual sugeria uma harmonia vital entre
as pessoas e o local onde viviam. Em Alencar verifica-se algo semelhante
e, dada a sua admiração pela Comédia humana,
não parece despropositado supor-se que ela tenha sido uma das fontes
de sugestão dessa técnica. Ver AUERBACH: 1976, 421.
[4] São muitos os exemplos de amplificação
que se podem retirar dos romances alencarianos. Em O guarani, Peri
é construído em oposição aos índios
aimorés e aos portugueses, e sua superioridade é indicada
seja no combate que trava com Aires Gomes, seja nas suas comparações
com Álvaro de Sá. Em O sertanejo, de forma semelhante
ao que ocorre no texto sobre Monte Alverne, o narrador projeta sobre Arnaldo
as façanhas de terceiros, no caso, vaqueiros celebrados em cantigas
populares.
Eduardo
Vieira Martins é professor de literatura
brasileira da Universidade Estadual de Londrina (UEL). Sua dissertação
de mestrado, defendida na Unicamp, é uma analise do romance O
sertanejo, de José de Alencar. No doutorado, em andamento na
mesma universidade, trabalha com os textos críticos produzidos
por Alencar.
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