A cibercultura como culpa

 

Alckmar Luiz dos Santos
Universidade Federal de Santa Catarina/CNPq


 

RESUMO

Este artigo discute algumas das idéias que Pierre Lévy tem veiculado em seus livros, em particular os conceitos de ciberespaço, ecologia cognitiva e tecno-democracia. Tenta-se, além disso, investigar as bases filosóficas de seu pensamento, chegando, ao final, a uma crítica das posições teóricas do autor que misturam relativismo e positivismo, sem, aparentemente, desenvolver toda a potencialidade dos conceitos, como os citados acima, que ele mesmo propõe.

RÉSUMÉ


Cet article met en discussion quelques-unes des idées que Pierre Lévy a véhiculé dans ses oeuvres, en particulier les concepts ciberespace, écologie cognitive et tecno-démocratie. On essaie, par ailleurs, d'enquêter sur les fondements philosophiques de sa pensée, en parvenant, enfin, à une critique des positions théoriques de l'auteur qui emmêlent relativisme et positivisme, sans qu'il développe, à l'évidence, toutes les potentialités des concepts qu'il propose lui-même, tels ceux qu'on a retenus ci-dessus.


 

Em artigo publicado no Mais! da Folha de São Paulo, de 18.01.98, Pierre Lévy traz à discussão alguns aspectos da cultura contemporânea que merecem discussão mais aprofundada. Nesse texto, o autor francês coloca a cibercultura como uma espécie de fim da história cultural: de uma certa maneira, é como se tivéssemos já quase ao alcance das mãos, e não apenas diante dos olhos, um horizonte para o qual convergiriam as manifestações do homem civilizado. Para ele, a rede telemática de multimeios, onde se emaranha toda espécie de fenômenos e objetos, vem nos servir, numa bandeja high-tech, universalidades apenas travestidas de singularidades (despidas de uma totalidade que, pretensamente, deve ter ficado enterrada em algum desvão metafísico do século XIX).

Ora, se me permito esse tom crítico, faço-o com a consciência tranqüila de quem tem acompanhado a trajetória de Lévy desde A Inteligência Coletiva, passando por A Máquina Universo, As Tecnologias da Inteligência, O que é o Virtual? São textos que muito contribuíram com esse debate, com uma clareza de posições digna de nota. O autor deles tem a qualidade de apontar, sem obscuridades pedantes, as questões e os processos principais envolvidos nisso que ele chama de cibercultura.
Tomando aquele que considero como seu livro mais instigante (As Tecnologias da Inteligência), encontramos noções que devem estar na ordem-do-dia de qualquer discussão a esse respeito. Sua proposição de uma ecologia cognitiva nos dá uma perspectiva que permite pensar os elementos da cibercultura não apenas como meros objetos envolvidos num sistema de trocas culturais que se realizariam no exterior. Corretamente, Pierre Lévy aponta para a necessidade de uma ontologia do objeto telemático que vá além de um processo objectivante, buscando entender, na verdade, como ele influencia o próprio processo de pensar. E ele o faz justamente quando procura fundar esses objetos no fazer intelectual (alguns diriam, talvez, textual) do homem.
Daí deriva a concepção de "coletivo pensante homens-coisas" que, a despeito do determinismo latente (e aí começariam os problemas!), serve como base para uma concepção da cultura em que as redes telemáticas serviriam não de objeto, mas de espaço e fundamento para o próprio exercício do pensar.
Finalizando aquele texto, Lévy aponta para a necessidade (ou a possibilidade) de se construir uma tecno-democracia. Em outras palavras, essa co-habitação entre homens e máquinas -- e que criaria uma espécie de razão ecológica -- seria também capaz de abrir à espécie humana uma área de produção intelectual não mais restrita a um local específico, a uma dada organização, a uma determinada classe ou, enfim, a um reduzido grupo de países. Esse otimismo vem do fato de que, na ponta do processo de produção intelectual, as redes do espaço cibercultural permitiriam uma apropriação coletiva dos objetos aí construídos, desde que utilizados adequadamente e levando até às últimas conseqüências a lógica multivalente e aberta do ciberespaço.
Todavia, esses acertos de Lévy, essa clareza em apontar as questões envolvidas na cibercultura não bastam para encobrir certa vacilação na maneira como os argumentos se encadeiam, no modo como ele tenta amarrar, sem muito sucesso, relativismos e positivismos (de que, aliás, o artigo aqui em debate é exemplo bem acabado). A diferença reside, talvez, em que há grande, imensa diferença entre apresentar um elemento e pensá-lo de forma abrangente, integrada a um sistema de pensamento coerente e que o receba sem a necessidade de explicações ad hoc que, no mais das vezes, só são capazes de convencer os leitores mais crédulos ou desinformados.
Ao postular uma superação das formas religiosas pelo espaço cibercultural (e aí já nos referimos diretamente ao artigo publicado no "Mais!"), Lévy comete o pecado de se referir a formas instituídas, dogmáticas e já dotadas de um fundamento metafísico, como se somente elas exprimissem o re-ligare mítico que está na origem de toda forma religiosa e que, a contrapelo, permite justamente a diferenciação das diferentes formas de rito religioso. Assim, essas religiões instituídas e dogmatizadas (modelo tomado por Lévy) surgem como suporte das formas míticas, quando se trata justamente do contrário. Ora, neste último caso, não mais poderíamos opor cibercultura a religião, pois que a esfera mítica do fenômeno religioso conduz justamente a uma espécie de hipertextualização (ou de ciberculturalização) da esfera religiosa.
Essa visão até certo ponto simplista das religiões adapta-se muito bem à maneira como Lévy quer entender a instauração da cibercultura. De modo semelhante, a visão que ele tem da ciência é, no mínimo, restritiva. Primeiramente, há uma confusão nunca esclarecida entre ciência e técnica, que ele parece herdar de uma mentalidade aparentemente positivista que se impôs ao senso comum neste século XX. É certo que ele afirma que "a atividade científica diz respeito a cada um e se dirige a todos pelo intermédio de um sujeito transcendental do conhecimento do qual participa cada membro da espécie". Mas, mesmo a maquiagem kantiana não o impede de confundir esse conhecimento do "sujeito transcendental", ao cozinhar no mesmo pote "experimentos" e "raciocínios reproduzíveis em toda parte". Ora, esse esforço de transcendentalizar a técnica e de colocá-la no mesmo patamar da ciência não é novidade. Em As Tecnologias da Inteligência, ele já afirmava que "a técnica participa plenamente do transcendental histórico"
[1]. É como se o conhecimento (e, por extensão, a própria ciência) fosse uma decorrência secundária da apropriação material ou utilitária do mundo, o que nos faz voltar à tábula rasa aristotélica (mesmo que não seja nosso intento retomar dois mil anos de debates acerbos entre indutivistas e dedutivistas).
Com isso, os textos de Lévy nos levam a um percurso interessante. De um mal disfarçado indutivismo epistemológico, ele salta para um positivismo quase que panfletário, chegando, enfim, a um relativismo bastante afeito às perspectivas pós-modernas tão em moda. Trata-se, enfim, de propor um "universal sem totalidade", como se este universal, esvaziado por uma perspectiva relativista mal disfarçada, não aparecesse senão como uma superação definitiva (e não dialética) do universal concreto de recorte hegeliano.
Como entender, então, essa mistura de perspectivas filosóficas que se amontoam metafísicamente, mas descartando, sempre e obsessivamente, qualquer fundamentação metafísica coerente? Como compreender esse uso de elementos positivistas que desaguam, por fim, num relativismo prêt-à-porter que seria inócuo se não fosse redutor? Primeiramente, creio não se tratar de mera coincidência o fato de se retomar aqui o esquema tríplice de Auguste Comte. A evolução que este propõe para as ciências e o espírito humano (passando sucessivamente pelas fases teológica, metafísica e positiva), não deixa de corresponder ao que Pierre Lévy postula como progresso da cultura (dividida em oralidade, escrita e cibercultura). Nos dois esquemas, há a inequívoca defesa de uma evolução que é determinada pelos elementos objetivos da experiência do homem. E o espírito humano? Ah! Na perspectiva escolhida por Lévy, ele se dedica a aprender de acordo com a circunstância objetiva e criadora que pode lhe dar (ou não) ferramentas com que se divertir e evoluir.
Como resultado, temos um determinismo que se mostra sem maiores receios, assumindo a ribalta dessa peça em três atos que conta a aventura do espírito humano (aventura que findaria numa produção eficiente do conhecimento humano à luz dos holofotes potentes da técnica). Como conseqüência, vemos surgir a imagem de uma nova humanidade que se faria a partir da técnica (e não o contrário, uma humanidade que se apossa da técnica que aprende com o mundo). Mas qual seria a necessidade de tal determinismo?
Aparentemente, a má-consciência de um relativismo pós-moderno ronda o pensamento de Pierre Lévy. A postulação desse "universal sem totalidade" -- alicerçado pela visão de um pensamento que se origina da técnica -- busca inutilmente escapar ao desfecho evidente de suas reflexões, isto é, a de um relativismo que se impõe progressivamente. Mas, isso não se faz sem uma espécie de catarse (mesmo que inócua): parece que esse relativismo só se deixa apaziguar quando, paradoxalmente, Lévy invoca a proteção de um positivismo determinista. Este busca enganadoramente reduzir o relativismo a mera figuração, a ornamento de teatro. Todavia, o resultado é que a cibercultura, esmagada pela culpa não confessada do relativismo, desaba sob o peso de uma visão determinista que vem, na verdade, da falta de melhor fundamentação metafísica. Com isso, ela torna-se desculpa para mazelas ainda não resolvidas de um relativismo culpado e culposo, que não se resolve e nem deixa a cena. Os atores estão lá, corretamente colocados, mas o texto que Lévy os faz dizer, no mais das vezes, ressente-se de firmeza, de boa dicção e, sobretudo, de um roteiro mais convincente.

NOTAS
1. Les Tecnologies de l'Inteligence. Ed. du Seuil, Paris, 1993, p. 16.



Alckmar Luiz dos Santos é Professor de Literatura Brasileira da Universidade Federal de Santa Catarina. Doutor em Études Littéraires, Université Paris 7, orientação de Julia Kristeva, 1993. Mestre em Teoria Literária, UNICAMP, orientação de Suzi Sperber, 1989. Graduação em Engenharia Eletrônica, UNICAMP, 1983.

 

E-mail: alckmar@cce.ufsc.br


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