QUANDO A UNIVERSIDADE ENCONTRA

A LITERATURA *


 

Miguel Sanches Neto

 

Com a massificação dos estudos de pós-graduação, no campo da literatura, criou-se um quadro no mínimo desalentador. A incapacidade de interpretar gerou uma necessidade de contar com teorias que facultassem ao crítico acadêmico, principalmente ao neófito, alguma segurança diante do objeto literário sempre desafiador. Com isso surgiu um mercado para a indústria de teorias pré-fabricadas - de extração estrangeira - que são aqui montadas às pressas para atender à demanda de uma crítica que, no imediato, precisa encontrar significações inéditas para as produções literárias. Os exemplos deste equívoco podem ser vistos em qualquer biblioteca universitária, o que me desobriga de apontá-los.

Tal comportamento criou uma produção analítica muito rarefeita em que abundam os pressupostos teóricos em detrimento de uma discussão mais desarmada da literatura, em que o analista se confronte com o livro de forma a buscar os seus sentidos, que podem estar localizados no momento de sua produção ou no de sua leitura. No primeiro caso, há uma valorização da figura do autor e do universo de recepção no qual ele originalmente se projetou. No segundo, o que sobressai é a perspectiva do leitor e do estágio histórico em que este está plantado. Quando se aplica , numa obra que pertence a um outro tempo, uma teoria que faz parte inequivocamente de nossa época, de cara há uma amputação da primeira dessas possibilidades de sentido, sufocando assim toda a história da produção do livro. Isso gera a padronização de um leque de sentidos que, ao invés de ser o mais amplo possível, acaba concentrado em torno daquelas correntes críticas de maior prestígio.

Nestes últimos 30 anos, os registros mais históricos do ensaísmo literário foram relegados, com um sorriso de desdém, ao museu das velharias. Mas, agora, o que havia sido aposentado compulsivamente volta à ativa. É indiscutível que vivemos a década da história, o que colocou em risco o poder dos teóricos que, mais do que rapidamente, elegeram como nova Meca a teoria da história, que é uma maneira de garantir as posições conquistadas dentro do campo literário acadêmico.

Tendo noção deste problema que conduziu a universidade a um beco sem saída, impedindo a entrada de leitores não armados (com as devidas armas) na peleja com a literatura, fica mais fácil compreender a dimensão do ensaio que Luis Filipe Ribeiro escreveu sobre as imagens femininas em José de Alencar e Machado de Assis - Mulheres de Papel (Eduff, 1996). Este livro tem dois níveis de significação. Um representado pelo próprio método de abordagem em que foi concebido e outro em que se encontram as discussões sobre os dois maiores romancistas brasileiros do século XIX, cujas obras forjaram arquétipos femininos no imaginário de então.

Luis Filipe, na abertura de seu longo ensaio, define como fetichista a análise do texto visto como produto (ele se vale do estudo da condição fetichizada da mercadoria na sociedade capitalista, via Marx) desconectado das suas circunstâncias de produção. Apagar a presença do humano na mercadoria é uma tática de dominação na medida em que ela ganha uma falsa autonomia, tornando-se tacitamente independente do trabalho que a produziu. Tal prática é o motor da alienação. O que nos leva a concluir que uma postura que conceba a literatura como um texto com sentido imanente está produzindo um desserviço crítico na medida em que lhe nega os vínculos históricos e sociais.

O que o autor busca em seu livro é justamente identificar as impressões digitais da época e das experiências de vida dos autores nas imagens que eles cristalizaram em suas obras. Isso que pode parecer uma coisa óbvia, tem, no meio acadêmico, uma significação bombástica por colocar de quarentena os estudos contaminados pela febre das teorizações. Mas não é apenas em seus objetivos que Mulheres de Papel toca numa imensa ferida dos estudos universitários. A forma de analisar os romances também é ousada por abrir mão das exaustivas citações e notas explicativas, que geralmente acabam juntando alhos com bugalhos. A sua linguagem é de uma limpeza surpreendente. Em momento algum ele nos remete a discussões laterais ao corpo do ensaio, naquelas enfadonhas notas que pretendem, antes de mais nada, dar um status acadêmico ao texto. A limpeza de seu estilo está aliada a uma limpidez de reflexões que é coisa rara na academia.

O jogo entre o leitor e o autor se dá, portanto, sem cartas marcadas. É um jogo limpo em que o analista não quer despejar uma biblioteca inteira diante dos olhos estarrecidos do pobre leitor, colocando-o em situação constrangedora. Isso não quer dizer que Luis Filipe Ribeiro não seja um leitor atento das produções mais especializadas (ele dá um extenso mapa de suas leituras no final do livro, numa seção que é saborosamente intitulada "O que quase não entra"). Estas leituras são vistas como andaimes que já não pertencem ao edifício pronto que é o livro.

O ensaísta parte diretamente dos romances, em análises minuciosas dos trechos significativos (no domínio da arte das citações está boa parte do sucesso de um ensaio), desentranhando as marcas do tempo e do autor. O que se dá é uma substituição das citações destrambelhadas pela sensibilidade analítica. Ao invés de entrar nos textos arrombando tudo com as armas pesadas da teoria, ele se movimenta pelos inumeráveis corredores dos livros munido apenas de sua capacidade de raciocínio (nutrida em diversas fontes, principalmente históricas) e de lupa. É na leitura dos detalhes do discurso que são identificados os rastros de classe, de visão de mundo e dos papéis sociais nos romances de Alencar e Machado.

Esta forma de abordar a obra literária tem a vantagem de tratar o leitor como alguém que está em situação de igualdade com o autor, além de recolocar a literatura no centro do fenômeno crítico. O autor, que pensa a leitura como uma forma original de palimpsesto, abre margem para se definir a crítica, tal como ele a pratica, como uma espécie de escrita palimpséstica, em que o analista vai escrevendo por cima da obra literária. Ao invés de conceber o espaço crítico como uma colcha de retalhos de citações alheias, Luis Filipe esmiuça o discurso, sem temer a reprodução de longos trechos dos romances.

O centro em torno do qual giram os comentários e as reflexões do autor são as figuras femininas, daí ter escolhido ele os perfis de mulher de Alencar (Lucíola, Diva, Senhora e Iracema) e os romances machadianos que fazem a radiografia do matrimônio (Helena, Memórias Póstumas de Brás Cubas, D. Casmurro e Quincas Borba). O que justifica esta escolha não é propriamente um interesse feminista, mas o fato de estas obras retratarem os mecanismos de constituição da família, célula da sociedade constituída.

O ensaio é marcado por vários níveis de discussões, que vão do papel da mulher na sociedade aos recursos técnicos disponíveis aos romancistas daquele então, o que inviabiliza qualquer tentativa de sintetizar, em poucas linhas, toda a trajetória de uma obra de 400 páginas. Mas é evidente a relação antagônica entre os dois romancistas que, juntos, fazem a passagem para uma era moderna. Alencar vai forjar um modelo de mulher a partir de seu ponto de vista de pessoa bem nascida, com fundas raízes na aristocracia, o que o leva a desenvolver uma literatura unificada por um projeto de construção da nova pátria. Neste projeto, cristão e aristocrático, ele se dirigiu às mulheres com o intuito de enaltecer as qualidades da virgindade, submissão, fidelidade e amorosa maternidade. Assim, em Lucíola, ele trabalha com a interdição da figura da decaída, que não se sente à altura do matrimônio ou do casamento, nem mesmo depois de ter se regenerado. Em Diva, é narrada a história da entrega total da mulher que, ao se apaixonar e contrair o matrimônio, rende-se totalmente ao seu senhor. De deusa poderosa, porque rica e independente da prisão afetiva, ela passa a ser a sombra de seu esposo que, no final das contas, casa-se na verdade é com o seu patrimônio. Em Senhora, as intenções econômicas subterrâneas, que caracterizam os matrimônios do período, são explicitadas. Há, no início, uma desumanização deste sacramento, tratado como uma transação empresarial corriqueira. Depois, para neutralizar a significação explosiva deste casamento tratado como negócio, Alencar faz com que o marido se redima e que o amor legitime a negociata, tirando da mulher o poder. Estas figuras femininas domadas vão confluir em Iracema, que é não só um modelo de mulher (decalque da figura da Virgem Maria, mãe intocada), como modelo de pátria, modelo visto como espaço onde deve imperar o mais forte - há nesta idéia a equivalência: índio = segundo sexo e colonizador = sexo masculino. Com estas trajetórias, Alencar estava propondo uma ética conservadora que tem os fundamentos em sua posição destacada dentro do campo do poder.

Já Machado de Assis, que tinha um pé na pobreza e outro na classe dominante, vai fundar os romances em questão numa latitude frontalmente oposta à de seu predecessor. Explorando as ambigüidades e os comportamentos dissimulados, ele consegue retratar uma população de carne e osso. Como não tem um projeto edificante como Alencar, com os seus livros, em que prepondera um ponto de vista cínico, ele busca desvelar, através de um discurso movediço que se estabelece nas entrelinhas da ironia, as artimanhas econômicas camufladas no matrimônio. O adultério (mais precisamente a mulher adúltera) é para ele o ponto fraco através do qual a sociedade aristocrata (ou apenas com aspirações aristocráticas) deixa-se flagrar em sua hipocrisia e ganância.

Apontar tais questões, no entanto, não é sintetizar as propostas de livro tão rico em detalhes e reflexões, mas apenas uma rude tentativa de localizar o centro das discussões. Com Mulheres de Papel, Luis Filipe Ribeiro, que está muito além do rasteiro animal acadêmico, põe em circulação um formato de ensaio que dispensa as insígnias de nobreza e as paráfrases teóricas. Para este intelectual, inexiste a figura do erudito. Autor e leitor ocupam a mesma posição, são pessoas interessadas no fenômeno literário num encontro marcado neste continente que vinha sendo esquecido nas discussões acadêmicas: a obra literária. Este posicionamento é muito mais do que uma reverência à literatura, é também um ato de respeito para com o leitor.


* Esta matéria foi publicada originalmente em O Estado de S. Paulo, em 08/03/97.


Miguel Sanches Neto é crítico literário, autor de Biblioteca Trevisan - Editora UFPR, 1996 e Achados do Chão - Editora UEPG, 1997


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