Victor Giudice
O MUSEU DARBOT
Para Carlos Nougué
Eles dizem que eu pinto o nada.
Mas juro que pintar o nada
é um poder concedido por Deus.
(Jean-Baptiste Darbot)
Jean-Baptiste Darbot nasceu em dezembro de 1872,
no sul da França, num vilarejo de dois mil habitantes, entre
Arles e Avignon. Filho natural de camponeses, foi criado pelo
pároco do local, Padre François Dominic Darbeaux. Na
certidão de nascimento, datada de 5 de julho de 1873, o
sobrenome aparecia modificado para Darbot. Mas é certo que o
religioso quis dar seu nome ao filho de criação. Dos
sete aos quatorze anos, Jean-Baptiste estudou em Arles, numa
congregação católica que abrigava meninos
órfãos. A partir dali, nunca mais freqüentaria
outra instituição de ensino. Segundo ele, era vontade
do pai adotivo enviá-lo a um seminário para que se
iniciasse na vida eclesiástica. Mas o Padre Dominic morreu
durante o incêndio que destruiu sua paróquia. Numa
pesquisa realizada em 1957, foi encontrado nos arquivos de uma igreja
de Arles o registro de um certo Jean-Baptiste Darbeux, numa
caligrafia quase ilegível. Tudo indica ser o mesmo
Jean-Baptiste Darbot, diante do qual o mundo artístico se
curvaria. Ainda em Arles, Jean-Baptiste teve a sorte de ver Gauguin e
Van Gogh em plena atividade criadora. Foi assim que lhe surgiu o
desejo de se tornar pintor. Depois de algumas experiências
reprovadas pelos mestres tradicionais e, até mesmo por Berthe
Morisot, uma das fundadoras do Impressionismo, o jovem Darbot
desiludiu-se com a pintura e se engajou como auxiliar de imediato num
navio cargueiro que viajava de seis em seis meses para o Brasil.
Ele costumava dizer que o Rio de Janeiro de 1896 logo lhe pareceu um
milagre em óleo sobre tela. Apaixonado pela cidade, tratou de
obter o desligamento e fixar moradia no novo país. No Rio,
empregou-se como servente numa indústria de tecidos
recém-inaugurada em Vila Isabel, indo morar num quarto alugado
no bairro de São Cristóvão. Darbot estava com
vinte e quatro anos. No fim de três anos, trocou de emprego,
passando a auxiliar de laboratório numa farmácia da Rua
São Januário. Nessa época, mudou-se para um
porão na Rua Escobar, a poucos metros do Campo de São
Cristóvão e da Quinta da Boa Vista. Foi justamente na
Quinta que Darbot viu renascer sua vocação de pintor.
Um dia comprou uma tela, alguns tubos de tinta, meia dúzia de
pincéis e foi para lá no primeiro domingo de folga.
Depois de várias tentativas, não conseguiu pintar uma
única árvore. Sua visão se prendia a detalhes do
céu, nos espaços permitidos pela folhagem. Logo
abandonou os pincéis, comprou uma espátula e, aos
poucos, foi modelando sua técnica definitiva. Quando
apresentou os novos trabalhos ao Museu Nacional de Belas Artes,
Edmundo Novaes, um dos grandes pintores da época, lhe disse
que sua pintura representava o nada. Essa crítica se tornou
tão freqüente, que ele escreveu a lápis, já
em português, no verso da contracapa de um missal: "Eles dizem
que eu pinto o nada. Mas juro que pintar o nada é um poder
concedido por Deus." Quando Jean-Baptiste Darbot morreu tuberculoso,
solitário e desconhecido, em 11 de agosto de 1921, o
porão da Rua Escobar, onde sempre morou, estava abarrotado de
telas. Ao todo, trezentas e oitenta e quatro. Trezentas e oitenta e
três representavam o nada, como lhe declararam os grandes
mestres, mas uma delas, de quarenta centímetros por sessenta,
era o célebre auto-retrato. É nele que se observa a
expressão alinhavada pela tristeza e marcada pelo misticismo
católico desse gênio, cuja arte tentou representar a
abstração divina."
Tirando as atualizações, esse foi o resumo
biográfico mimeografado no folheto da primeira
exposição Darbot, em 1958, numa galeria da Tijuca e,
tal como está, é o que ilustra agora, em 1994, com
versões em inglês, alemão, francês,
italiano e espanhol, o catálogo de cento e setenta
páginas da grande Retrospectiva Darbot, inaugurada há
um mês, no Museu Guggenheim, de Nova York. Meu nome aparece
como curador da obra de Jean-Baptiste. A retrospectiva apresenta
cento e vinte e nove trabalhos e mais as quarenta e duas telas,
incluindo o auto-retrato, que formam minha coleção
particular, em exposição permanente no Museu Darbot do
Rio de Janeiro, desde sua fundação em 1987.
Acho que não preciso declarar que artisticamente e, sobretudo,
financeiramente sou um homem realizado. Se houvesse um Prix Nobel
destinado a descobridores de obras de arte, eu certamente estaria
entre os mais sérios candidatos. Mas ganhei outros
galardões equivalentes.
No sábado que antecedeu a inauguração da
retrospectiva, desembarquei às sete da madrugada no John
Kennedy, tomei um banho de banheira em minha suíte no Plaza,
arrisquei um olhar ao Central Park submerso em neve, enfrentei um
café da manhã sem gemas cozidas, para afugentar o
colesterol, e caminhei até o Lincoln Center, para assustar os
triglicerídeos. Em nenhum passo senti o peso dos sessenta
anos. Retirei meu ingresso para o Parsifal daquela noite,
já reservado na bilheteria do Metropolitan, e peguei um
táxi até o Guggenheim, no outro lado do parque:
não seria elegante aparecer por lá a pé, como um
condenado.
Às dez e meia em ponto, como estava combinado há
dezenove telegramas e oito faxes, um alto funcionário me
recebeu sorridente, acompanhado de uma assessora de cabelos,
sobrancelhas, pestanas, sardas, lábios, casaco e sapatos
vermelhos. De longe ela se confundia com uma das primeiras
abstrações de Darbot. O funcionário era Philip
D'Amico, autor das sessenta e quatro cartas que resultaram na
retrospectiva. A abstração preferia ser chamada pelo
apelido: Lonie. Depois de quatro ou cinco
apresentações, D'Amico, Lonie e três encarregados
da instalação das telas me conduziram ao elevador.
Saltamos no último andar e descemos a pé a famosa rampa
espiralada, onde se concentra mais da metade das
exposições do Guggenheim. Foi uma
peregrinação emocional: até onde a vista
alcançava só se viam Darbots. Reconheço que
seria problemático estabelecer uma ordem para os trabalhos de
Jean-Baptiste. A impressão que se tem é de que os
artistas atuais produzem com a preocupação de deixar
bem claras as fases de sua obra. A finalidade seria facilitar o
trabalho dos organizadores, caso algum dia se realizasse uma
retrospectiva. Quem sabe? Em se tratando de arte e de século
XX, tudo é possível. Achei bastante oportuna a
idéia de se instalarem as telas maiores nos salões
laterais. Na verdade, trata-se de treze telões de um metro e
oitenta por um e vinte, às vezes, um e quarenta, não
mais. Aliás, como eu conto na biografia que estou terminando
para uma editora de São Paulo, em sociedade com outra de Nova
York, o que faltou a Darbot foi espaço físico para
trabalhar. Na grande maioria, seus quadros vão de oitenta por
cinqüenta até um e meio por noventa. No final, o que
impressiona é a quantidade de telas, associada à
qualidade do trabalho. Isso, para não falarmos na variedade:
não há dois quadros em que se notem as mesmas
intenções cromáticas.
Para quem nunca viu Darbot, nem em gravuras impressas, o que é
difícil, é necessário esclarecer que o
figurativismo não aparece em nenhuma de suas obras, a
não ser no auto-retrato. O estilo é marcado por uma
crescente intensidade do escuro ao claro, muitas vezes de baixo para
cima, como se a luz só atingisse maior pujança nas
partes mais elevadas da tela. Um crítico paulista e outro
holandês viram nessa característica uma
intenção religiosa. De acordo com o holandês, luz
sugere sublimação divina. O conceito é dele. Seu
nome era Willem Koonnen ou Kronnen, não me lembro bem. Na
época dei total aprovação às
tendências que tentavam sujeitar a religiosidade de Darbot a
uma intensificação ascendente dos tons mais claros a
partir dos mais escuros. Hoje em dia, depois de tantas tentativas de
exegese, até eu, que sou o responsável pela
trajetória de Darbot, não sei para que lado me virar. O
único traço comum a toda a obra é a
técnica da espátula. De um modo geral, Darbot emprega a
tinta pura, como sai do tubo, sem se preocupar em diluí-la em
diferentes óleos. Quase sempre percebe-se que ele
começou o quadro pela parte inferior. Os golpes da
espátula, obedientes a impulsos meramente gestuais, insistem
numa tonalidade inicial sem nenhum sinal de mistura. A título
de exemplo, uma de suas telas mais citadas, que eu batizei de
Abstração 49, compõe-se quase que
inteiramente de espessas volutas na cor terra de siena. A partir do
centro o marrom vai sendo invadido pelo amarelo, até ser
atingido por duas espátulas brancas, sublinhadas por uma
pequena cicatriz num verde diáfano. A luminosidade, numa
explosão mágica, atinge o clímax na
região correspondente a uma divisão áurea no
sentido vertical do quadro. O próprio Darbot deve ter
compreendido o milagre obtido a partir de composição
tão simples: sua assinatura, o célebre monograma
quadrangular formado por DAR sobre BOT, surge quase invisível
no canto superior direito, em tonalidade discreta, como se a
própria assinatura pudesse perturbar o resultado final da
obra. Há quatro anos, a Abstração 49 foi
vendida por quatrocentos e trinta mil dólares, num
leilão da Sotheby's de Londres. O comprador, um
milionário dinamarquês, ofereceu o quadro à
amante, um soprano wagneriano cujo nome prefiro não revelar.
Seis meses depois consegui recuperá-lo. Se alguém se
interessar em vê-lo, é fácil. Está
exposto, a título de empréstimo, na ala do
século XX do Metropolitan Museum, a poucas quadras do
Guggenheim. Vale a pena.
Como se vê, a história da ascensão de
Jean-Baptiste Darbot é absolutamente sem graça pelo
simples fato de ser uma história de final feliz. O escritor
Leon Tolstoi começa o romance Ana Karenina afirmando
que as famílias felizes são sempre parecidas; só
as infelizes são infelizes cada uma a seu modo. A
história de Darbot é igual a milhares de
histórias felizes. É claro que a felicidade dele
é póstuma, enquanto que a minha é tão
presente quanto a vida que vivi desde aquela tarde de 1945,
véspera de Natal, na casa de Tia Zuzu.
Logo no início da tal biografia encomendada por São
Paulo e Nova York, eu digo que já em criança, ouvia
falar do pintor que havia morado no sobrado de meu avô, na Rua
Escobar, em São Cristóvão. Na verdade, meu
avô foi o farmacêutico que empregou Jean-Baptiste em
1899, como auxiliar de laboratório. Jean-Baptiste, sem ter
onde cair morto, ficou morando de graça no porão da Rua
Escobar. Meu avô era tão liberal, que morreu do
coração em 12 de novembro de 1937, desgostoso com o
Estado Novo da ditadura Vargas, decretado dois dias antes. Hoje as
calamidades políticas não matam nem moscas. Tia Zuzu, a
filha mais velha, irmã de meu pai, ficou morando no sobrado
depois que meu avô morreu. Meu pai, minha mãe e eu, com
três anos, ficamos na Rua São Januário. Nesse
ponto, eu descrevo a festa do Natal de 1945, logo depois da Segunda
Guerra, na casa de Tia Zuzu. Eu e um primo descemos ao porão e
vimos as telas, amontoadas num salão escuro. Meu primo
não deu a mínima importância, mas eu fui dominado
por uma impressão tão intensa quanto solitária.
Sete dias depois, no 31 de dezembro, fomos festejar o Ano Novo com
Tia Zuzu. Assim que chegamos, desci ao porão munido de um
candelabro de duas velas e examinei os quadros com uma
atenção inesperada numa criança de onze anos.
Foi a primeira vez que vi a assinatura DAR sobre BOT formando um
quadrado. Mas o que chamou minha atenção foi a
quantidade de telas enfileiradas entre as quatro paredes. Naquele dia
me pareceram mais de mil. Não havia uma única
emoldurada. Afastei a primeira, limpei superficialmente a poeira com
um trapo mais empoeirado do que a tela e admirei a pintura. A
luminosidade insuficiente não me permitia uma visão
nítida. Arrastei-a para fora e, sob um sol de verão
às quatro da tarde, fiquei deslumbrado. Para mim, a pintura
não representava coisíssima nenhuma. No entanto, as
cores me feriam os olhos, como se estivessem acesas, concorrendo com
o sol que as iluminava. Era uma luz por baixo de outra. Levei um
susto. Recoloquei a tela no mesmo lugar e voltei para a sala de
visitas. Durante a conversa perguntei a minha tia quem era Darbot.
Apesar das interrupções de minha mãe, que
só queria saber do namorado da prima Dedé, Tia Zuzu me
contou que Darbot era um marinheiro francês sem eira nem beira,
que deu com os costados no Rio de Janeiro, pra morrer tuberculoso
naquele porão que de habitável só tinha o nome,
sufocado pelo cheiro do óleo e pela falta de recursos. Meu
avô, por amizade ao francês, nunca se deu ao trabalho de
jogar aqueles quadros no lixo, uma porcariada que ninguém
entendia, tubos e mais tubos de tinta importados da França,
uma fortuna atirada pela janela. Enfim, cada louco com sua mania. E
Tia Zuzu me ditou em pouquíssimas palavras a biografia que
atualmente já está com quatrocentas e dezenove
páginas.
A partir daquela época, Darbot se tornou uma paixão.
Quando comecei a freqüentar o curso ginasial no Colégio
Brasileiro, um pouco adiante do Campo de São
Cristóvão, passei a almoçar quase todos os dias
na casa de Tia Zuzu, só para apreciar os quadros. Se eu
dissesse que o primeiro museu Darbot foi o porão da Rua
Escobar, não estaria mentindo. Um museu que só contava
com um visitante, mas era. Uma vez, resolvi inventariar as telas,
para saber quantas havia. No fim de uma semana, depois de contar e
recontar, cheguei à conclusão de que eram quatrocentas
e quarenta e nove. Infelizmente, na parte dos fundos do porão,
o chão apresentava um desnivelamento fatal para a pintura a
óleo. Quando chovia a água entrava por algumas falhas
da parede e formava uma poça. Achei que oitenta e duas telas
estivessem perdidas. Depois, consegui salvar dezessete e o
prejuízo baixou para sessenta e cinco. Assim mesmo, eu ainda
as mantenho no depósito: ninguém sabe o dia de
amanhã. Em todo caso, a lei da compensação
é infalível. Para contrabalançar as falhas de
baixo, por onde entrava a chuva, havia as frestas de cima, por onde o
sol enfiava alguns raios, com a sublime finalidade de impedir a
destruição do acervo, causada pela umidade. Sem sombra
de dúvida, o porão se mantinha seco. Assim que descobri
as fendas inferiores, comprei cimento e vedei tudo. A certeza de que
a chuva não entraria mais consolidou minha decisão de
recuperar toda a obra de Jean-Baptiste Darbot.
Aos dezesseis anos, quando resolvi estudar Belas Artes, pensei que
meu pai e minha mãe ficariam contra, mas aconteceu justamente
o contrário. Eu passava as tardes copiando gravuras francesas
que meu pai comprava para mim. Todos achavam que eu tinha jeito para
desenho. Aos dezessete, entrei para a Escola Nacional de Belas Artes.
No segundo ano, fiz um curso especializado em
restauração de pintura a óleo e comecei a
aplicar meus conhecimentos nos Darbots. O dia em que apareci em casa
com uma tela de trinta por quarenta debaixo do braço foi um
acontecimento. Trabalhei quase duas semanas e o resultado me pareceu
esplendoroso. Meus pais trocaram um olhar de aprovação,
mas eu senti que o gesto se devia mais ao orgulho pelas habilidades
do filho único, do que pela revelação da
maestria de Darbot. Para encurtar a história: não houve
empatia. Tia Zuzu, ao contrário, ficou tão entusiasmada
que acabou me pedindo para limpar um quadrinho para ela, que
não fosse muito grande ou, pelo menos, que não fosse
muito maior do que a reprodução da Santa Ceia,
pendurada bem no centro da parede principal da sala de jantar. Cinco
dias depois, o quadrinho estava pronto, emoldurado e pendurado. Minha
mãe quando viu, quis um também. E assim, de quadrinho
em quadrinho, formou-se o novo museu Darbot, dividido em dois
endereços: a seção São Januário e
a seção Escobar.
Quatro anos depois, quando terminei o curso de Belas Artes, já
havia na seção São Januário, entulhando
meu quarto e o sótão, sessenta e cinco Darbots em
perfeito estado de recuperação. Só não
havia molduras. Eu acho que a idéia do vernissage
já bailava em minha cabeça.
Um dia, fui convidado para a inauguração de uma pequena
galeria na Tijuca, a um quarteirão da Praça Saens
Peña. A galeria nada mais era do que um espaço de
oitenta metros quadrados na frente de uma vidraçaria, onde se
emolduravam fotografias, gravuras, posters e quadros a óleo. O
vidraceiro era um português que atendia pelo apelido de Geninho
e que nada entendia de pintura. Para a inauguração da
galeria, que inexplicavelmente se chamava Glacial Arte, Geninho
escolheu o que havia de pior na safra dos pintores da
vizinhança. Havia pretos velhos fumando cachimbos, ao lado de
patos ensangüentados e nus femininos envoltos em véus
pudicos produzidos à custa de aerógrafos rudimentares.
Assim mesmo ou talvez devido a isso, Geninho vendeu seis quadros.
Para ele, foi uma noite memorável. No dia seguinte, antes que
seu entusiasmo esfriasse, procurei-o, apresentei-me como especialista
em restauração de telas a óleo e falei a
respeito de Darbot. Em quinze minutos, Geninho se convenceu da
necessidade de ir até São Cristóvão, a
fim de examinar os quadros. No sábado, às três e
meia, entre um café e uma fatia de bolo de chocolate, Geninho
ajustou comigo uma exposição de quatorze peças
de Darbot, emolduradas por ele. Na segunda-feira, contratei uma
caminhonete e levei as telas para a vidraçaria. Escolhemos as
molduras, ao som das risadas estridentes de Geninho, e marcamos a
data definitiva do vernissage para vinte e oito dias depois,
uma sexta-feira, 18 de julho de 1958, data importante na
biografia.
Foram quatro semanas de revelações. Eu nada sabia da
profissão de marchand. Meus conhecimentos
universitários não passavam de frágeis
informações sobre história da pintura,
noções de perspectiva, uso das cores primárias
na obtenção das secundárias, volumes, sombras,
modelos vivos etc. Como vender um quadro não fazia parte do
currículo universitário e em vinte e oito dias este
seria meu único problema. Um ex-professor conversou comigo
sobre os efeitos miraculosos da divulgação em jornais,
estações de rádio e de televisão e, para
mostrar conhecimento, falou em press release. Embarquei no
assunto: escrevi releases, enviei fotos a cores de cinco
Darbots, redigi o resumo biográfico depois de pesquisas
estafantes, descobri no porão da seção Escobar
um caixote dentro do qual, sob decênios de poeira, repousava o
missal que pertenceu a Jean-Baptiste, mimeografei o pensamento sobre
pintar o nada junto à biografia e esperei os resultados. Dois
dias antes do evento, o Jornal do Brasil deu uma nota de seis
linhas, O Globo, de cinco, e eu tratei de lamber os
beiços porque entendi que daquele mato não
saía coelho, como disse Tia Zuzu, enquanto preparava os
salgadinhos para o vernissage. Meu pai colaborou com as
bebidas, minha mãe com a propaganda boca a boca e, como
principal reforço, enviamos duzentos e noventa e três
convites.
Na noite fatal, apareceram dezenove pessoas, contando com dois
colegas de trabalho de meu pai e com quatro amigas de Tia Zuzu, ou
seja, um fracasso impublicável. O único sucesso coube a
titia, que recebeu duas encomendas de salgadinhos. Quanto a Darbot,
nem prós nem contras. Os quadros expostos eram todos de
pequenas dimensões e os preços menores ainda: nenhuma
tela ultrapassava cem dólares. No final de três dias sem
visitantes, sentimos que o projeto estava pulverizado. Geninho
não se deu por satisfeito e quis cobrar as molduras. Irritado,
propus assinar quatro promissórias, apesar da dificuldade que
o pagamento representava para mim, sem emprego, recebendo uma ou
outra encomenda de restauração. Mas Geninho aceitou e
eu aprendi que não é só a fé que remove
montanhas. A necessidade também. Em casa, meu pai, minha
mãe e Tia Zuzu tentaram me consolar, reafirmando a escassa
qualidade da pintura de Darbot e olhando para mim como se eu fosse
vítima de devaneios estéticos. Depois, sozinho no
quarto, quase chorei. Mas minha confiança permanecia
inabalável. Se eu tivesse um missal, teria escrito na
contracapa: "Eles dizem que eu vendo o nada. Mas juro que vender o
nada é um poder concedido pelo Demônio." E era mesmo.
Foi vendendo o nada na noite do vernissage que vi despontar a
primeira prova do valor de Darbot. Se as seis pessoas, que tiveram o
descaramento de comprar pretos velhos, patos ensangüentados e
nus aerografados, agora não compravam nada, quem saiu ganhando
foi Darbot. Quem gasta em preto velho não arrisca em
abstrações luminosas. Decididamente, minha seara
não era ali. Mas onde seria? Na Zona Sul?
Na semana seguinte fiz um estágio nas galerias da Zona Sul:
Point l'Evêque, Bottesini, Papillons, Blue Canvas, Rougevert,
Yellow Brick Road e por fim a maior de todas, a Bogardus, dirigida
por uma austríaca de cabelos oxigenados, lábios
desenhados e inteligência diabólica: Marianne Bogardus.
Depois de conversarmos uma tarde inteira, tentei convencê-la a
examinar uma tela de Darbot. Uma única que fosse. Ela
aceitou.
Corri para casa, fiz uma inspeção no
sótão e descobri a obra que minutos depois se chamaria
Abstração 49. Nunca atinei com a causa da
numeração. Só sei que o número, com
relação à minha existência, ganhou o dom
da ubiqüidade. Seria cansativo descrever todos os fatos onde o
quarenta e nove aparece. O pior é que ao completar quarenta e
oito anos, encasquetei que ia morrer com quarenta e nove. E
não houve santo que me livrasse da idéia. Só
fiquei tranqüilo no dia em que atingi o
cinqüentenário. Mas tirando isso, o quarenta e nove foi
um mensageiro de felicidade. Principalmente a
Abstração. Naquela noite, apesar da
iluminação precária de duas lâmpadas de
cem velas, reconheci o brilho da tela. As primeiras luzes da
manhã me convenceram: Marianne Bogardus entregaria os pontos
diante da Abstração 49. E não deu outra.
Além disso, eu tive o trabalho de encontrar uma das molduras
de Geninho que fosse do mesmo tamanho. Marianne pousou a
Abstração num cavalete, jogou a luz de um
refletor sobre a tela e deu sete passos para trás. Foi um
minuto de tensão, o que equivale a um milênio de espera.
Numa elegância vienense, ela apoiou o cotovelo na palma da
mão esquerda, mantendo a direita erguida, numa
afetação de fumante inveterada que necessita da
postura, não só para sustentar o cigarro Dunnhill de
ponta dourada entre o indicador e o médio, mas também
para mostrar ao mundo que Marianne Bogardus está entrando em
transe diante do fenômeno estético. Passada a crise,
pediu a um funcionário que retirasse a moldura. Enquanto o
rapaz executava a ordem, ouvi duas palavras aterradoras:
-- Está péssimo.
Senti um calafrio:
-- O quadro?
O alívio chegou pela metade:
-- Non, a moldurra.
Em seguida, Marianne e o funcionário desapareceram por uma
porta nos fundos da galeria. Ficamos sós, eu e minha
esperança. Em dez minutos os dois reapareceram: a
Abstração 49 se encaixava agora numa moldura
digna do Louvre. O funcionário recolocou o quadro no cavalete
e ligou o refletor. Marianne acendeu outro Dunnhill, armou a mesma
pose e se imobilizou por mais um minuto. Depois, deu uma longa
tragada, virou-se para mim e, com uma única frase, concluiu a
primeira parte da biografia de Darbot e iniciou a segunda:
-- Em todo minha vida, eu nunca vi uma luz tão forte e
tão belo.
Os erros de concordância e o sotaque de Marianne Bogardus
tinham o poder de sublinhar a verdade contida em suas palavras.
Concluído o veredicto, ela se aproximou do quadro e
esquadrinhou-o de norte a sul, de leste a oeste. Não
satisfeita, foi até uma escrivaninha e apanhou uma lupa.
Repetiu o exame, demorando-se na cicatriz diáfana, sorriu e
olhou para mim com o mesmo olhar que Aladim dirigiu ao Gênio da
Lâmpada:
-- Quanto quer por esse Abstrraçon quarrenta nove?
Depois que Marianne Bogardus deu sua bênção ao
meu Darbot, me vi na obrigação de abrir o jogo:
-- Eu acho que a senhora não me entendeu. Eu não estou
querendo nada por esse Darbot. O que eu quero é muito
mais.
E fiz um discurso a respeito de minhas intenções de
revelar ao mundo a obra de um gênio desconhecido. Durante a
audição de meu projeto, de minha loucura meio
profética, Marianne acendeu outro Dunnhill para que a
fumaça disfarçasse um brilho meio alucinado nos olhos
azuis. Quando acabei, ela tornou a incorporar o espírito do
marchand:
-- Quantos Darbots você tem?
Nesse ponto não houve meios de encarar a verdade. Com toda a
razão, eu senti que o número trezentos e oitenta e
quatro seria assustador, além de inconvincente. Um mecanismo
em meu cérebro me aconselhou a contabilizar a
exposição da Tijuca, acrescentando a
Abstração 49:
-- Quinze.
Marianne anotou meu endereço e pediu que eu não
saísse de casa na manhã seguinte. Acordei às
sete. Às nove e meia chegou o caminhão da
transportadora. Ao meio-dia eu estava almoçando uma truta
amanteigada com arroz de amêndoas em companhia de Marianne
Bogardus. Às duas e quinze, ela abriu o segundo maço de
Dunnhill do dia, enquanto me exibia o contrato para outro
vernissage Darbot dali a dois meses.
Seria tolice traçar comparações entre Geninho e
Marianne. Um jamais compreenderia o que perdeu, enquanto a outra se
armava com unhas e dentes para arquitetar o grande acontecimento da
pintura do século XX.
Descrever o trabalho subterrâneo de Marianne equivaleria a
redigir um compêndio sobre a arte de vender a Arte. De um certo
modo, senti-me um pouco arrasado, uma vez que Marianne Bogardus me
parecia capaz de vender qualquer óleo sobre tela, fosse qual
fosse a qualidade. Mas com o tempo, ela me provou que não era
assim. Em poucos dias tornamo-nos íntimos. Marianne me contou
as aventuras do avô e do pai, vendedores de material de pintura
em Viena, e sua convivência com Gustav Klimt, com Oskar
Kokoschka, com o compositor Schoenberg, que também pintava, e
com outros mestres da escola vienense. Uma vez, em seu apartamento na
Vieira Souto, Marianne me mostrou um pequeno desenho de Klimt com uma
dedicatória para o avô, Joseph Bogardus. Num canto da
sala, havia um retrato meio amarelado da loja de artigos para
pintores em Viena. Marianne aparecia na calçada em frente,
toda de branco, no colo da mãe. Dentro da loja, distinguiam-se
duas silhuetas escuras. Marianne me garantiu que uma delas era o
próprio Arnold Schoenberg.
Entre as mudanças introduzidas por Marianne para a segunda
exposição Darbot destacavam-se os preços. Quando
eu lhe contei que os preços iniciais não passavam de
cem dólares, ela se engasgou com a fumaça. Logo em
seguida pegou um papel e organizou outra tabela. Agora o Darbot mais
barato, uma tela nas mesmas medidas do quadrinho de Tia Zuzu, custava
mil e seiscentos dólares, ao passo que o mais caro, a
Abstração 49, chegava a três mil e
quatrocentos. Esforcei-me para fingir o máximo de
naturalidade.
O tratamento da imprensa com relação à Galeria
Bogardus foi outra história que nada tinha a ver com a
vidraçaria de Geninho. Na manhã do vernissage,
um jornal dedicou quase uma página do segundo caderno a
Jean-Baptiste Darbot. Foi a primeira vez que vi minha foto num
jornal. É desnecessário dizer que nas
seções São Januário e Escobar houve
ameaças de festa. Pelo menos, a travessa de salgadinhos
não faltou. Às nove horas, as equipes da TV Tupi e da
TV Rio invadiram a Bogardus, levando a legitimação em
cada câmera, em cada refletor, em cada tomada. Nesse momento, a
maestria de Marianne se mostrou irretocável. Sempre com o
Dunnhill entre os dedos, ela se colocou de costas para uma das
câmeras, lançou mão de todo o sotaque e
sentenciou:
-- Non, non, non. Esse refletorres, non. A pinturra non resiste. Non
se pode filmar nada. Vocês eston querrendo estrragar tudo?
Depois, quem é que paga?
Uma jornalista, já armada de microfone, enfrentou a
Bogardus:
-- E aí? Como é que fica?
-- Non fica. Se você quer saber mais, faz entrrevista com
ele.
E apontou para mim, mas a jornalista insistiu:
-- E os quadros?
A resposta de Marianne me deu toda a medida de sua
imaginação:
-- Os quadrros só se for com meus refletorres. Com esses
aí, non. A luz de vocês não é
filtrrado.
O impedimento encenado por Marianne serviu para exacerbar os efeitos
da televisão sobre as dezenas de convidados. Discretamente,
ela piscou um olho para mim, enquanto dava ordem a um dos
garçons para iniciar o coquetel. Foi um festival de luzes,
vestidos, cores, gravatas, sorrisos, bandejas, copos quebrados,
risadas, sucessos.
Mas a magia ocorreu às dez horas, quando uma limusine de
aluguel estacionou na entrada principal da Bogardus. O motorista
saltou, abriu a porta traseira e nos revelou um sujeito moreno, cuja
idade poderia variar entre quarenta e cinqüenta anos, vestido
com um costume de linho irlandês e acompanhado por uma criatura
mais baixa, deselegante e exageradamente carioca. O mais alto parou
na entrada com a mão esquerda no bolso do paletó,
enquanto o mais baixo se dirigia a Marianne. Ao vê-la,
desmanchou-se em amabilidades, entregando-lhe um cartão e
apontando para o companheiro, estatelado no hall. Marianne ajustou os
óculos meia taça, leu o cartão, examinou o
sujeito parado na porta, localizou-me e fez um gesto me mandando
segui-la. O homem se chamava Tarik Benzayad e parecia tratar-se de um
magnata árabe, interessado nos quadros de Darbot. A
notícia na página do segundo caderno atraiu-o. Benzayad
deu duas voltas pela galeria, mas não chegou a examinar os
quadros com muita atenção. Antes de iniciar a terceira
rodada, aproximou-se do companheiro, que funcionava como
intérprete, e segredou alguma coisa. O segredo foi passado a
Marianne Bogardus e as cores do rosto dela foram passadas até
hoje não sei para onde. Havia uma tela de mil e seiscentos
dólares, oito de dois mil e trezentos, cinco de dois mil e
quinhentos e a última, a Abstração 49, de
três mil e quatrocentos, num total de trinta e cinco mil e
novecentos dólares. Tarik Benzayad acabava de oferecer trinta
mil redondos pelas quinze telas. Apesar da palidez, Marianne se
aproximou de mim e sussurrou com o máximo de firmeza:
-- Non fica nervoso. Quando eu acabar de contar o prroposta do
árrabe, mexe cabeça prra lá e prra cá,
prra ele ver que você non concorda.
E revelou a proposta. Senti como seria um prenúncio de parada
cardíaca, mas consegui manter a imobilidade corporal. Apenas a
cabeça girou para a direita, para a esquerda, para a direita e
para a frente. Marianne sorriu e recuperou a cor. Caminhou até
o intérprete e comunicou minha negativa. O intérprete
foi a Tarik, ouviu nova proposta, a proposta chegou a Marianne e ela
foi pessoalmente apertar a mão do árabe. A venda dos
quinze Darbots se realizou por trinta e dois mil dólares.
Ainda naquela noite, os jornais de TV mais tardios soltaram a
notícia, com flashes generosos sobre Tarik Benzayad, sobre
Marianne Bogardus, sobre os Darbots, sobre mim e sobre o cheque do
Chase Manhattan Bank. Tarik declarou que os quadros iriam decorar a
galeria de seu iate, ancorado na Côte d'Azur. Vinte e quatro
horas depois, a notícia estendeu os tentáculos sobre o
Brasil, mas deixou dois deles livres: um pegou a Europa e o outro os
Estados Unidos. A base do noticiário nacional e internacional
era a mesma: "Pintor francês descoberto em subúrbio
carioca". Ou: "Impressionista esquecido renasce no Brasil". Ou:
"Abstrações pré-modernas em galeria de Ipanema"
etc.
Minha primeira atitude ao receber os dezoito mil dólares, que
Marianne havia estabelecido como minha parte, foi pagar
orgulhosamente as promissórias de Geninho, em dólares,
para ele sentir o cheiro da insensatez. Acontece que depois de
comprar geladeira nova para Tia Zuzu, aparelho conjugado de TV e
eletrola para minha mãe e um Volkswagen para meu pai,
caí no vazio e reconheci minha própria insensatez:
não contar a verdade a Marianne, a respeito dos trezentos e
oitenta e quatro Darbots. Com que cara ela receberia a verdade agora?
Dia seguinte, fui num antiquário, comprei um cinzeiro de
porcelana Limoges por trezentos e oitenta dólares, mandei
embrulhar para presente e fui à Bogardus com o sorriso mais
inocente do mundo. Marianne ficou mais deslumbrada com minha visita
do que com o cinzeiro, embora começasse a usá-lo no
minuto seguinte. Depois, jogou três envelopes em cima de mim:
três cartas de galerias paulistas interessadas em
exposições Darbot. Quando acabei de ler, olhei para
ela. Marianne ergueu a mão direita com o Dunnhill amarelando
os dedos e franziu o nariz:
-- Serrá que você não me arranja nem um
darbotzinho deste tamaninho?
Peguei um cigarro, coloquei-o entre os lábios e tomei
coragem:
-- Marianne Bogardus, nós temos trezentos e sessenta e nove
Darbots. Quantos você quer?
A requisição de Marianne me exigiu dois meses de
trabalho ininterrupto. Para início de conversa, aluguei um
apartamento de três quartos num edifício
recém-construído, a um quarteirão da casa onde
morávamos, e instalei um ateliê de
restauração com todos os efes e erres. Agora eu podia
trabalhar sobre uma das telas de um metro e vinte por um e oitenta,
com absoluta tranqüilidade. Batizei-a simplesmente de
Luz. Marianne aprovou o nome antes de ver o quadro.
Além do Luz, restaurei mais vinte seis telas de
tamanhos variados. Os preços estabelecidos por Marianne
também eram variados: iam de três mil e quatrocentos a
quatro mil dólares, com exceção do Luz,
avaliado por ela em seis mil e cem. Quando Tia Zuzu tomou
conhecimento da nova tabela, deu uma espanada num de seus
quadrinhos:
-- Daqui a pouco ele vai valer um apartamento em Copa, de frente pro
mar.
Ela só errou de endereço: vinte e cinco anos depois,
com um quadrinho igual àquele, nós compraríamos
um apartamento a dois passos da Avenida Foch, em Paris.
Em São Paulo, a Galeria Piratini repetiu o esplendor da
Bogardus, sem a presença do árabe milionário,
condignamente substituído pelos representantes da
Federação das Indústrias. Logo de saída,
em sistema de cotas, eles arremataram o Luz para doá-lo
ao MASP. Um crítico da Folha de São Paulo
definiu a doação como exagero publicitário, mas
não passou disso. Além do mais, no dia seguinte ao
vernissage, um norte-americano de Chicago adquiriu cinco
Darbots para expor numa galeria que ele acabara de inaugurar, um
funcionário da Ménilmontant, de Bruxelas, comprou dois,
um bibliófilo milionário levou outro e três
japoneses pagaram a sobra, sem regatear. Total: cem mil e quinhentos
dólares. Trinta mil para a Piratini, vinte para Marianne
Bogardus, cinqüenta para mim e quinhentos para Tia Zuzu fazer
uma reforma no banheiro da seção Escobar.
Afinal, as coisas começavam a funcionar. Terminado o festival
paulistano, a Folha de São Paulo lavou nossa alma com a
publicação de um ensaio na primeira página do
suplemento dominical, assinada por Viriato Guazzoni, um dos curadores
da Bienal. Foi a primeira notícia crítica sobre a obra
de Jean-Baptiste Darbot. Faço questão de transcrever
dois trechos. Um deles:
"Sem dúvida, trata-se de um artista singular (refere-se a
Darbot) na medida em que realiza um futuro que não existiu: o
futuro de seu compatriota Georges Seurat, falecido aos 32 anos.
Seurat, em seus últimos esboços a crayon, indica
o percurso fascinante da luminosidade, que seria conquistada anos
depois por este Jean-Baptiste Darbot."
E como conclusão do ensaio:
"Seria esta a semente da arte visual do século XXI? A exemplo
da chamada música erudita que, timidamente, vem reencontrando
o público através de harmonias mais humanizadas,
é possível que também a Pintura, por meio das
soluções encantatórias preconizadas pela
espátula darbotiana, venha devolver a saúde a uma
gestalt por demais doentia neste final de milênio,
aviltado por niilismos inconseqüentes e inacabadismos
inacabados."
O termo inacabadismo era uma referência a um certo
Ladislau de Monchique, pintor carioca de algum talento, que
expôs no Ibirapuera um painel de doze metros de comprimento por
dois de largura, pintado de branco de cabo a rabo. Assim como Darbot,
Monchique também se valeu unicamente da espátula,
tentando dar às volutas significados extraídos do
Apocalipse. Uma idiotice sem pé nem
cabeça[1].
Mas o que me tirou o sono nas seis noites que se seguiram à
publicação do ensaio foi a espátula
darbotiana. Conceituar a obra de Jean-Baptiste, recuperada de um
porão empoeirado de São Cristóvão, como
espátula darbotiana era o que se pode chamar de
glória terrena.
No domingo seguinte, foi a vez d'O Estado de São Paulo.
O crítico Raul de Loreto, em página e meia de um
tablóide, não só fez a exegese do
abstracionismo darbotiano, como foi um dos primeiros a
associar as intenções de Darbot ao pensamento
religioso. Para Loreto, a luminosidade das telas tinha o mesmo
sentido de uma prece. Os dois ensaios me levaram à certeza do
nascimento de um novo adjetivo: darbotiano. Até ali, era o
suficiente para me enlevar. No Rio, o Jornal do Brasil e O
Globo, embora não publicassem ensaios, apresentaram
matérias de destaque, com uma foto da
Abstração 49. Mas Tia Zuzu, que sempre queria o
impossível, deu a palavra final:
-- Santo de casa só faz milagre quando está
bêbado.
Em 1959, houve exposições em Porto Alegre, Belo
Horizonte, Curitiba e Recife. No final do ano, contabilizamos quase
duzentos mil dólares. Em 1960, Marianne me aconselhou um
recesso até 1961: daquele jeito nós acabaríamos
inflacionando o mercado. A idéia foi excelente porque, apesar
dos vinte e sete anos, eu já me sentia cansado.
Mas em 1962, aconteceu o que sempre esperamos que acontecesse, embora
não confessássemos: Marianne Bogardus recebeu uma carta
de Gérard Laffont, o funcionário da
Ménilmontant, que havia comprado dois Darbots em São
Paulo. A correspondência era endereçada a mim. A Galeria
Ménilmontant estava interessada em promover uma mostra
individual de Jean-Baptiste no verão de 1964.
No dia 16 de junho daquele ano, uma sexta-feira darbotiana, eu fiz
minha estréia internacional, apesar das dificuldades impostas
pela reviravolta de primeiro de abril, que via com maus olhos
qualquer mistério traduzido em arte. No final tudo deu certo e
o próprio Laffont me recebeu no aeroporto, surpreendido com a
ausência de Marianne. Aqui se iniciam as
ramificações não muito felizes dessa
história de felicidade. Marianne foi obrigada a passar duas
semanas hospitalizada com uma crise de enfisema pulmonar. Os sessenta
Dunnhills diários começavam a mostrar as unhas. Quando
a vi no balão de oxigênio, percebi que ela havia
começado a morrer. Mas antes ainda haveria muita água a
rolar.
Hoje, quando rememoro todos os episódios da trajetória
Darbot, sinto vontade de erguer uma estátua de Gérard
Laffont em praça pública. Não tenho a menor
dúvida de que a mostra na Ménilmontant foi o passaporte
de Jean-Baptiste Darbot para a imortalidade e, sobretudo, para o
nicho mais elevado que um gênio pode ocupar. Em Bruxelas, o
sucesso se caracterizou pelo silêncio compenetrado do
apreciador intelectual. Na inauguração notei a
formação de pequenos grupos, estacionados horas diante
de um quadro, entre taças de vinho, cigarros sem filtro e
conjecturas a meia voz.
Perto dos preços da Ménilmontant, a Piratini e a
Bogardus não passavam de feiras livres. Quando viajei para
Londres, em atendimento ao convite de outra galeria, minha conta
bancária fora ampliada em trezentos e sete mil dólares.
De Londres mesmo, fiz uma ordem de pagamento de cem mil para Marianne
Bogardus e duas de trinta mil para meu pai e Tia Zuzu, meus
asseclas.
A Inglaterra foi decepcionante. As vendas renderam cento e vinte mil,
quando muito. A crítica não se pronunciou. Um dos
secretários da National Gallery me ofereceu uma proposta
indecente para fotografar seis Darbots, com a finalidade de
ilustrarem cartões postais. Não aceitei, mas depois me
arrependi. De volta ao Brasil, Marianne, já recuperada, achou
que fiz bem em recusar. Segundo ela, o importante é que Darbot
agora era internacional. Comentei o paradoxo de um pintor
francês tornar-se internacional à custa dos
esforços de um brasileiro. Ela riu, pensou e rosnou:
-- Você ainda non viu nada.
Uma das coisas que eu ainda não tinha visto era Darbot na
França. Durante minha passagem por Bruxelas, eu percebi que o
silêncio francês sobre Jean-Baptiste era proposital. Em
1967, quando inaugurei a primeira mostra de Darbot em Paris, minhas
dúvidas se transformaram em certeza. Depois de um sucesso
absurdo, com vendas acima de um milhão de dólares e com
a assinatura de dois contratos para edições de volumes
ilustrados sobre a obra de Jean-Baptiste, fui convidado pela
televisão francesa para uma entrevista. Durante a
sessão de perguntas, um jornalista me desafiou, garantindo que
as pesquisas realizadas em Arles não mostravam nenhuma prova
da existência de um Darbot, a não ser Darbeux. Eu
assegurei que o Jean-Baptiste Darbeux registrado em Arles era o mesmo
Jean-Baptiste Darbot que viajara para o Brasil -- e acrescentei --
vítima da incompreensão de seus compatriotas. Isto
significava que durante o silêncio, a arqueologia francesa
escavava a cidade de Arles e adjacências para descobrir a prova
da existência do deus Darbot. Depois de minhas
observações, o jornalista riu e argumentou que se
levássemos em consideração todas as trocas de
letras, talvez descobríssemos que Jean-Baptiste Darbot era
tio-avô da atriz Brigitte Bardot. Até eu achei
graça, mas o rapaz encerrou a entrevista perguntando que fim
levara Tarik Benzayad.
A resposta só viria dezenove anos mais tarde. Em 1986 recebi
uma carta de Benzayad me propondo a venda dos quinze quadros
adquiridos em 1958, no vernissage da Bogardus, mais o iate
onde se encontravam expostos, pela bagatela de dois milhões de
dólares. Benzayad estava na rua da amargura. A conselho de tia
Zuzu, ofereci um milhão e oitocentos e ele aceitou. No dia
seguinte senti remorso: afinal Benzayad foi o grande
responsável pela sorte inicial de Darbot. Um mês depois
o iate foi rebocado até o Rio de Janeiro. Mandei
reformá-lo, procurando manter as características
originais, ancorei-o definitivamente no Flamengo, atrás do
Museu de Arte Moderna, transformei o convés num restaurante
popular e, por fim, inaugurei no salão principal o Museu
Darbot, com as quinze telas da Bogardus e mais vinte e sete de minha
coleção particular. O auto-retrato fica numa vitrine
semelhante à da Mona Lisa, no Louvre. O título
da biografia, escolhido de comum acordo pelos editores de São
Paulo e Nova York, ficou sendo Museu Darbot.
Nesses dezenove anos rolaram as águas a que me referi. Em
1972, houve a comemoração do centenário de
nascimento de Darbot. Em outubro de 1980, perdi meu pai. Em dezembro,
foi a vez de Marianne Bogardus, depois de uma agonia impiedosa.
Marianne já não saía de casa desde 1978. No
começo da doença, Tia Zuzu passava noites inteiras ao
seu lado. Mas logo chegou de Recife uma velha amiga, Odete, que
não saía de perto dela, a não ser para conferir
os negócios da Bogardus. Quando Marianne ficou definitivamente
presa à cama, eu lhe dei um Darbot dos mais luminosos,
batizado de Mariana, em sua homenagem. Ela mandou pendurar o quadro
em frente ao leito e me segredou:
-- Prra iluminar minha morte.
Odete se tornou amiga de todos nós: uma amizade com o perfume
da eternidade. Depois da morte de Marianne, Odete fechou a galeria
por um mês e me acompanhou à Alemanha, para uma
série de exposições e palestras, em Hamburgo,
Frankfurt, Hanover e Berlim. Em 1982, eu fiquei na galeria e ela foi
à Índia com Tia Zuzu e minha mãe, que depois da
morte do marido, tornou-se mística, alimentando uma
idéia fixa: visitar o Taj Mahal. Em 1983, foi Odete que ajudou
Tia Zuzu a comprar um apartamento em Paris, com o dinheiro de um dos
quadrinhos restaurados por mim. Em 1984, Tia Zuzu, com setenta e
três anos, se mudou para lá, em companhia da filha
única, a prima Dedé, que acabou solteirona. Um dos
quartos do apartamento é meu. Nunca me acostumei com
hotéis.
Foi Odete que me deu a idéia de criar uma
fundação utilizando os recursos obtidos com a obra de
Darbot. Foi Odete que organizou os arquivos da Fundação
Darbot, criada em 1985, com sede em Santa Tereza. Os arquivos ocupam
uma sala equipada com três computadores. Foi Odete que
conseguiu catalogar pelo menos noventa por cento do que se disse, do
que se escreveu, do que se fotografou, do que se publicou, do que se
filmou sobre o tema Darbot. Foi Odete que classificou os arquivos em
ensaios, artigos, críticas, observações,
anedotas, caricaturas baseadas no auto-retrato, livros, filmes,
vídeos, minhas entrevistas, correspondência, selos
comemorativos, cartões postais, posters, enfim, a fama. Foi
Odete que, em 1986, na inauguração do Museu Darbot, me
aconselhou a colocar um retrato de Tarik Benzayad na entrada, como
homenagem póstuma. Foi Odete que, em 1989, sugeriu não
vender mais Darbots, pois nossos lucros naquele ano ultrapassavam
vinte e três milhões de dólares, entre vendas em
leilões e direitos autorais. Foi Odete que, em 1990, cuidou da
reforma da seção Escobar e fez do sobrado um
depósito com ares de fortaleza, para abrigar os Darbots
remanescentes. Foi Odete que me convenceu a construir um
orfanato-escola para meninos de rua. Foi Odete que me obrigou a
responder a todos os convites de Porto Alegre, Niterói, Ouro
Preto, Belo Horizonte, Campinas, Recife, Cataguases, Roma, Lisboa,
Madri, Oslo, Estocolmo, Boston, Filadélfia, Budapeste e
Istambul, para exposições, debates e solenidades
darbotianas.
E foi Odete que, uma noite, depois de três doses de
uísque, confessou que Marianne Bogardus não era
austríaca. A história é simples: Marianne nasceu
no Brasil, mais precisamente, no Ceará, filha de pai e
mãe brasileiros. O avô paterno, pintor de botequins, era
alemão. Daí os olhos azuis, o conhecimento
razoável da língua alemã e o amor pela pintura.
Seu nome de batismo era Mariana da Veneração dos Santos
Borgerth. Quando veio para o Rio e tentou estabelecer-se como
marchand, resolveu simular uma nacionalidade austríaca. Nas
primeiras férias que passou no Ceará, ela disse que
carioca não acreditava em cearense. Dali em diante, Mariana
ficou sendo Marianne, enquanto Borgerth virava Bogardus, igual ao
personagem de um filme de Bing Crosby e Ingrid Bergman. No fim de um
ano, o sotaque se incorporou definitivamente à sua
personalidade. O desenho de Klimt e a fotografia da loja vienense
eram falsificações inofensivas. Odete dos Santos era
sua prima, filha do irmão da mãe de Marianne. Depois da
verdade, Odete chorou em silêncio, sem me olhar, acariciando a
borda do copo com o indicador:
-- Quando você deu aquele quadro a ela, e disse que o nome era
Mariana, nós duas pensamos que você tivesse descoberto
tudo. Mesmo assim ela se emocionou.
Naquela noite, eu comecei a pensar na irrelevância de certas
verdades. Em que momento, uma pessoa importante, com quem privamos
durante anos, deixa de ser austríaca, deixa de se chamar
Marianne Bogardus e se transforma numa cearense desconhecida,
registrada com o nome de Mariana da Veneração dos
Santos Borgerth? Para mim, muito mais do que para qualquer outro,
Mariana da Veneração nunca existiu. O sucesso de Darbot
estava intimamente ligado à austríaca Marianne
Bogardus, e sempre seria assim porque minha verdade era essa. No dia
seguinte, pedi a Odete que não tocasse mais no assunto e ela
compreendeu. Só ali eu a vi com mais atenção:
Odete se parecia com Marianne, apesar dos olhos castanhos.
Em 1990, Tia Zuzu passou o carnaval no novo apartamento de minha
mãe, em São Cristóvão, com um
varandão debruçado sobre a Quinta da Boa Vista. Ela
sempre detestou a Zona Sul. A viagem de Tia Zuzu se devia ao enredo
da Escola de Samba Unidos de Vila Isabel, no desfile principal:
Darbot, Epopéia de Luz. Ela não podia perder. O
samba pouco acrescentava, mas valia pela homenagem. Volta e meia o
estribilho me vem à cabeça: "França e Brasil,
lado a lado, paz e amor, / Villegaignon, Santos Dumont, viva
Darbot".
Aos poucos a falta de graça das histórias felizes foi
contaminando minha vida. A fortuna tem seus inconvenientes. Um deles
é eliminar a vontade de fazer coisas. Na pobreza, deseja-se
viajar pelo mundo, conhecer lugares, visitar museus etc. Numa riqueza
já no meio do trajeto, como a minha, não há mais
nada que se possa realizar, não há museus a conhecer,
não há comidas a saborear, não há mais
mundo a viajar. Só para dar uma idéia, em 1992 a Bienal
de São Paulo reservou um espaço para Darbot e eu
não tive coragem de me deslocar até lá. Odete me
substituiu.
Ultimamente descobri a música. É outra forma de
riqueza. Tia Zuzu e minha mãe não dão
importância a minhas filosofias e estão sempre me
aconselhando a casar. Isto ainda vai acontecer. É uma das
poucas opções que me restam. Todas as outras não
passam de repetições enfadonhas, quase sempre
representadas por convites com tudo pago: passagens de primeira
classe, hotéis cinco estrelas e limusines na porta à
minha disposição. Muito sabiamente, essas
reflexões não fazem parte da biografia. Para mim, que
já fui pobre, é assustador descobrir que quanto mais se
enriquece mais se economiza. Dificilmente eu pago o prato que como. E
pagar me dá prazer. Foi por isso que naquele sábado, em
Nova York, despachei a limusine e fui a pé até o
Lincoln Center. Senti uma imensa alegria quando retirei a entrada
para o Parsifal, que eu havia pago por fax, com meu cartão de
crédito. Pagar o táxi, na porta do Guggenheim, foi
outra forma de felicidade que eu raramente experimento.
Mas um dos maiores prazeres de todos esses anos de prazeres foi
entrar no Met às quinze para as seis, tomar um
capuccino e ver, a poucos centímetros, a
abstração darbotiana que eu havia conhecido de
manhã: Lonie. Agora, só os cabelos, as pálpebras
e os lábios permaneciam vermelhos. Um vestido de veludo negro,
arrematado numa gola redonda, realçada por um fino debrum em
seda branca, fazia de Lonie a única espectadora digna de
assistir ao Parsifal. Aproximei-me e fui surpreendido por uma
troca de alegrias: a satisfação que ela demonstrou ao
me ver no teatro e a satisfação que eu demonstrei ao
vê-la sozinha. Lonie fez tudo para me coroar o rei da noite.
Para cúmulo dos cúmulos ela estava sentada na fila H e
eu na F. Durante o espetáculo, com um simples girar da
cabeça à esquerda eu conseguia atingi-la. Todas as
vezes em que executei o gesto, seu olhar estava a postos, à
espera do meu. Foi uma noite romântica em todos os sentidos e
principalmente nos nossos. No primeiro intervalo, tentamos jantar no
restaurante do Grand Tier e não conseguimos. A
solução romântica foi comer um sanduíche
de legumes no bar da platéia. Não sei se eu estava
ficando louco, o que também é romântico, mas
Lonie estava linda. Cada fio de cabelo, cada pupila, cada sarda
ganhavam status de beleza, inteligência e sensualidade. No
segundo intervalo, conversamos sobre o Parsifal. Em dado
momento, eu fiz alguma observação sobre Wagner e ela
abriu meus horizontes:
-- Eu acho que agora, mais de cem anos depois, pouco interessa o que
Wagner foi ou deixou de ser. O que vale é o
Parsifal.
Assisti ao último ato impregnado dessa idéia. Nos
minutos finais, quando o jovem Parsifal descobre o Graal e caminha no
palco lentamente, exibindo-o aos Cavaleiros de Montsalvat, a
música de Wagner me reconstruiu, como se eu até ali
fosse um universo em decomposição. Todas as minhas
sensações passadas se ordenaram, em obediência
àquela sensação presente, e fizeram do meu
espírito uma estrutura viva, lógica e sensível a
tudo que aconteceu e aconteceria comigo. Se minha vida atingira as
proporções de um sonho, era necessário que eu
não despertasse, que eu mantivesse minha verdade somente minha
e impenetrável, a não ser que o invasor galgasse o
mesmo estágio de perfeição. Enquanto a
música de Wagner se lançava nos derradeiros compassos,
eu revi o porão da Rua Escobar repleto de telas empoeiradas,
revi meu pai, minha mãe e Tia Zuzu rindo de mim, revi a
galeria da Tijuca, revi a austríaca Marianne Bogardus, revi as
exposições de São Paulo, Bruxelas, Londres,
Paris, Buenos Aires, Tel Aviv, Milão, Tóquio, Veneza,
Roma, revi Odete nos computadores, revi Marianne morta, meu pai
morto, e vi Lonie, feliz, de carne e osso, ao meu lado, aplaudindo o
espetáculo. Senti vontade de beijá-la. Mas ainda
não seria ali. Gostaria de ter ficado a noite toda conversando
com ela sobre os mistérios sagrados do Parsifal, mas a
limusine não deu trégua. De qualquer maneira, levei-a
até a porta de casa: um edifício de apartamentos no
Queens, num bairro de judeus conhecido como Rego Park. Lonie era uma
espécie de pseudônimo de Sarah Gedalowitz. Seu
irmão, Israel Gedalowitz, era rabino. Naquela noite, Lonie se
referiu a ele pelo apelido familiar: Izzy. Em 1995, seríamos
cunhados.
Os dias que antecederam a inauguração da Retrospectiva
Darbot foram insuficientes para o entrelaçamento da teia
amorosa que nos envolveu. Almoços originais, presentes
imaginosos, pequenas fugas ao Central Park, apesar da neve, passeios
de mãos dadas e, enfim, o beijo. Aconteceu justamente no dia
da inauguração, à tarde, a dois
quarteirões do Guggenheim. Depois, caminhamos silenciosos,
degustando a felicidade. Quando olhei o museu, fui pego por outra
armadilha romântica: a emoção que me inundou ao
ver o gigantesco estandarte afixado no prédio. É todo
confeccionado em marrom, começando numa tonalidade mais escura
que se ilumina de baixo para cima. Mais ou menos na altura de uma
suposta divisão áurea, uma réplica da assinatura
de Darbot em amarelo, o célebre quadrado formado pelo DAR
sobre o BOT, domina o terço esquerdo do estandarte. A
referência à Abstração 49 é
evidente. E um pouco abaixo, em letras impressas num verde
diáfano e em inglês, as palavras iniciais do pensamento
de Darbot, rabiscado na contracapa do missal: "Eles dizem que eu
pinto o nada..."
Quando percebeu minha emoção, Lonie me garantiu que o
estandarte já estava ali há três dias. Mas eu
só o vi naquele momento. Confesso que tive de me segurar para
não fazer vergonha.
Assim que me avistou, Philip D'Amico partiu em minha
direção, pegou-me pelo braço e me arrastou para
o bar. Ele tinha dado ordem de não deixarem ninguém
entrar, além de nós três. Logo que nos sentamos,
D'Amico pediu um chá de maçã. A temperatura da
calefação lembrava o verão carioca. Tirei o
sobretudo e joguei-o de qualquer maneira na cadeira mais
próxima. Lonie pegou-o com uma delicadeza de namorada
ginasiana e pendurou-o num dos ganchos que havia na parede, com essa
finalidade. As olheiras de D'Amico eram um prêmio a seus
esforços em prol da retrospectiva. Quando viu a fumaça
desprender-se da xícara, bebeu um gole de chá e
suspirou. Depois, puxou um cigarro Dunnhill e acendeu-o. O cheiro do
fumo era o aviso de que Marianne devia estar por perto. Com o intuito
de aliviar a tensão, eu soltei uma bobagem qualquer:
-- Você deve estar dormindo em pé.
Só aí ele fixou os olhos em mim:
-- No fim de quinze anos, a gente se acostuma. Segunda-feira eu
já começo a tratar da próxima
exposição. Isso aqui não pára.
-- E qual vai ser a próxima?
D'Amico comprimiu os lábios e os empurrou para baixo
juntamente com o queixo. A seguir, exalou o indefectível well,
que não quer dizer nada e significa tudo, e me contou que a
mostra seguinte seria uma exceção dentro dos
padrões do Guggenheim. Há três ou quatro anos,
tinha aparecido em Nova York um dos livros mais originais dos
últimos tempos: uma enciclopédia de coisas que nunca
existiram. A próxima exposição apresentaria
obras de arte que representassem essas coisas inexistentes. Diante de
minha incompreensão, D'Amico passou a enumerar diversos
exemplos: Alcyone, filha de Éolo, senhor dos ventos; Kor, a
cidade maldita; as Harpias; Grendel, o monstro de um lago
dinamarquês; o retrato de Dorian Gray; o Minotauro; o
Basilisco; a Távola Redonda; o deus Wotan; Tristão e
Isolda; o Homem Verde, espírito maligno da Inglaterra; o
Inferno; a Rainha Mab, citada por Shakespeare; o gnomo Barbegazi; os
licantropos; o gigante Gogmagog etc. Tomado por uma vontade que
também nunca existiu, acrescentei com certa dose de
cinismo:
-- E Darbot.
O riso repentino de D'Amico e de Lonie me encorajou e eu
continuei:
-- É isso mesmo. Eu acho que vocês vão inaugurar
daqui a pouco a primeira exposição de coisas que nunca
existiram. Darbot é uma coisa que nunca existiu.
Lonie apertou os olhos azuis e entreabriu os lábios, mas eu
fui mais rápido:
-- Você se lembra do Parsifal? O que que adianta
ficarmos discutindo a respeito do que Wagner foi ou deixou de ser?
Está lembrada? Com Darbot é a mesmíssima
coisa.
Lonie pegou minha mão e a inspiração atingiu a
estratosfera:
-- Um dia, quando eu estava com onze anos, descobri centenas de telas
empoeiradas no porão de minha Tia Zuzu. Sabem de que tipo eram
todas elas, sem exceção? Marinhas, marinhas e mais
marinhas. Os mares, os portos e os barcos, na maioria veleiros,
só apareciam na parte de baixo das telas, numa faixa
horizontal. O resto eram nuvens, sol poente, sol nascente, cores. Os
elementos figurativos eram retratados a pincel. Os céus,
não. Para representar os céus o pintor, cuja
assinatura, DARBOT, só aparecia num dos cantos superiores em
forma quadrangular, usava espátulas. Examinei duas telas, dez,
vinte, cinqüenta: marinhas. Na época em que foram
pintadas, havia em São Cristóvão, a dois
quilômetros do sobrado de Tia Zuzu, uma praia imunda, cheia de
barcos de pesca. Alguma coisa me dizia que aqueles quadros tinham
sido pintados lá. Mas outra coisa, intangível, me
segredava que em todos eles havia um erro a ser corrigido. Qual?
Foram necessários sete anos para que o acaso me mostrasse a
falha de Darbot. Uma tarde, quando eu já estava na Escola
Nacional de Belas Artes, ao examinar uma das telas dei de cara com
outra, encostada na parede, com a parte inferior, a faixa dos mares,
portos e barcos, encoberta por um travessão de madeira. Por
uma coincidência definitiva, um raio do sol poente atingiu o
quadro. As nuvens, a luz dos astros e todos esses efeitos puramente
objetivos desapareceram, só dando espaço à
intensa luminosidade sugerida pela pintura, sem a parte de baixo,
é claro. O erro era a faixa inferior. Foi o momento mais
secreto e mais emocionante de toda a existência. Procurei um
alicate, um serrote e uma tesoura, desprendi a tela e cortei uma
fatia de mais ou menos quinze centímetros, o necessário
para dar sumiço ao mar, ao porto e aos barcos. Depois serrei o
caixilho já meio apodrecido e refiz o quadro. A última
luz da tarde me revelou a grande maravilha: o Darbot sem mar, sem
porto e sem barcos era uma obra-prima. A verdade estética de
Jean-Baptiste Darbot começou com aquela tesoura. Durante muito
tempo eu me perguntei se aquilo não passava de uma
falsificação criminosa. Meu pai e minha mãe
achavam que sim. Principalmente depois da venda explosiva a Tarik
Benzayad. Minha força e sobretudo minha confiança
brotavam de Tia Zuzu. Foi ela que me deu ânimo para ir em
frente. Tia Zuzu tinha certeza de que minhas tesouradas eram apenas
correções necessárias. Uma vez, ela me mostrou
um artigo sobre contrafações de pintura, no qual se
dizia que raras eram as obras que nunca foram retocadas depois de
dez, vinte anos. E como sempre, ela sentenciava:
-- Até a Mona Lisa foi retocada. Quando você
recorta e parte de baixo de uma dessas telas, você só
está dando um retoquezinho, e pronto.
Talvez meu único pecado fosse a invenção do
pensamento, escrito a lápis na contracapa do missal. Mas
vocês devem reconhecer que foi um toque de gênio. Nesse
ponto, encerrei o desabafo com uma observação
absolutamente dispensável:
-- Foi assim que, de retoque em retoque, eu construí a lenda
de Darbot.
Lonie continuava a me encarar num misto de assombro e ternura. Mas
Philip D'Amico repuxou um dos cantos da boca:
-- Nunca pensei que você fosse tão espirituoso. Se eu
soubesse...
E não foi além porque a porta do bar se abriu
bruscamente, dando passagem a um funcionário em alto grau de
excitação:
-- O pessoal da imprensa chegou.
D'Amico deu um salto da cadeira e olhou o relógio: eram seis e
quarenta e cinco. Ajeitou o nó da gravata, passou a mão
pelos cabelos e se virou para mim:
-- Vamos lá. Se eles derem tempo suficiente pra você
falar, conta essa história de sua tia, como é, mesmo?
Zuzu?
E saiu às gargalhadas. Lonie e eu fomos atrás dele. O
saguão estava intransitável: câmeras, flashes,
repórteres, carregadores, pessoas mal vestidas, garçons
com bandejas vazias, mulheres com casacos de pele, homens de
sobretudo com golas de arminho, intelectuais de cabeça raspada
e brincos de platina, gays de todas as raças e
facções, ruídos, risadas, gritos, campainhas e a
minha estupefação diante dos efeitos de Darbot. No meio
de tudo, restava Lonie. E no meio de tudo, ela me levou a um canto
isolado, puxou minha orelha para bem próximo de sua boca e
sentenciou, como Tia Zuzu:
-- Agora eu sei que Darbot é igual ao Parsifal.
Naquele segundo, eu tive certeza de que me casaria com ela nos
próximos meses.
Para coroar as surpresas da noite, em nenhum momento os
repórteres me procuraram. O negócio deles era com
Philip D'Amico e com Darbot. De repente, já no primeiro andar,
eu vi o auto-retrato, preso numa vitrine idêntica à do
Museu Darbot. Cheguei bem perto para poder admirar todos os
traços daquele rosto iluminado. Sobre as imagens do vidro, eu
tornei a ver Tia Zuzu naquela véspera do Natal de 1945. Ela
estava atarefada na eterna cozinha, às voltas com uma
frigideira de pastéis. Quando eu lhe perguntei quem era
Darbot, ela não se deu ao trabalho de olhar minha
curiosidade:
-- O Darbot daquelas maluquices do porão? Aquilo era um
caboclinho muito do serelepe, que seu avô empregou na
farmácia.
E, refletida no cristal da vitrine, Tia Zuzu me contou pela segunda
vez, quarenta e nove anos depois, a história do rapaz que
chegou de Salvador, ou de Arles, tanto faz, para gastar o pouco tempo
de vida que lhe restava, pintando quatrocentas e quarenta e nove
marinhas. A paixão pela França fez o caboclinho
serelepe inventar aquela assinatura, DAR sobre BOT, um anagrama
afrancesado para substituir o nome de batismo: Darcy Botelho. Talvez
ele tivesse a mesma sabedoria de Marianne Bogardus e pensasse:
carioca não acredita em pintor baiano.
Aos poucos, a imagem de Tia Zuzu se desfez e eu fiquei só com
o auto-retrato de Darbot. Na verdade, o rosto de meu avô, numa
foto da juventude, que o caboclinho Darbot tentara reproduzir, como
agradecimento ao homem que lhe dera casa e comida em troca de nada.
Ou de tudo, sabe-se lá?
Minha memória se recuperou do passado quando Lonie me mostrou
um sujeito gordo, com dois metros de altura: Fabian Winograd,
crítico de arte do New York Times. Fabian parecia hipnotizado
por tantos Darbots. Passou por mim e não me deu a
mínima.
Até a retrospectiva do Guggenheim, eu tinha a pretensão
de achar que eu era Darbot. Dali em diante, senti que eu era apenas
eu e que, para o futuro, Darbot era Darbot.
© Renata Judice
Victor Giudice (1934-1997) nasceu em Niterói, no Estado do Rio de Janeiro. Aos cinco anos de idade mudou-se para São Cristóvão &endash; transformado, segundo a crítica, em seu "grande sertão ficcional" &endash; , onde viveu mais da metade de sua vida. Foi professor, jornalista, músico, ensaísta e crítico. A partir de 1968, intensificou suas atividades como escritor, tendo publicado seis livros: Necrológio (contos, Editora O Cruzeiro, 1972), Os banheiros (contos, Editora Codecri,1979), Bolero (romance, Editora Rocco, 1985), Salvador janta no Lamas (contos, Editora José Olympio, 1989), O museu Darbot e outros mistérios (contos, Editora Leviatã,1994) e O sétimo punhal (romance, Editora José Olympio, 1996). Salvador janta no Lamas ganhou o Prêmio "Ficção 89", da Associação Paulista de Críticos de Arte. O museu Darbot e outros mistérios foi agraciado com a maior distinção literária do país, o Prêmio Jabuti, e foi lançado no Salão do Livro de Paris em 1998 (Le Musée Darbot et autres mystères, Editions Eulina Carvalho).
Para o teatro, escreveu Baile das sete máscaras, inédito, e o monólogo Ária de serviço, encenado pela atriz Bete Mendes, no Centro Cultural Banco do Brasil, em 1991. Compôs e executou ao vivo a trilha sonora da peça Prometeus, do Grupo Mergulho no Trágico.
Suas atividades como professor incluem, além de oficinas de criação literária, cursos de Introdução à Ópera, Wagner e Música Sinfônica, ministrados no Centro Cultural Banco do Brasil e em outras instituições. Participou das Rodas de Leitura, no CCBB, e na Casa da Leitura e viajou pelo país como conferencista.
Vários de seus contos foram publicados nos Estados Unidos, Argentina, México, Portugal, Alemanha, Hungria, Polônia, Bulgária, Tchecoslováquia. Uma de suas narrativas mais populares, O arquivo, foi o conto brasileiro mais publicado no exterior. Outro conto, Carta a Estocolmo, foi considerado, nos Estados Unidos, um dos quinze melhores trabalhos de ficção científica de 1983 e consta da antologia Antaeus (The Ecco Press, Nova York, 1983).
Publicou ensaios e resenhas no Jornal do Brasil, O Globo, Folha de São Paulo, O Estado de São Paulo, Suplemento Literário do Minas Gerais etc. Durante três anos assinou a coluna Intervalo, especializada em música erudita, no Jornal do Brasil, tendo sido esta sua última atividade.
A editora José Olympio planeja a publicação de uma coleção que reunirá todos os seus contos. Do primeiro volume, programado para o primeiro trimestre de 1999, constarão O museu Darbot e outros mistérios e o romance inédito e inacabado Do catálogo de flores.
© Eneida Santos