Victor Giudice

O MUSEU DARBOT

Para Carlos Nougué


Eles dizem que eu pinto o nada.
Mas juro que pintar o nada
é um poder concedido por Deus.
(Jean-Baptiste Darbot)

 

Jean-Baptiste Darbot nasceu em dezembro de 1872, no sul da França, num vilarejo de dois mil habitantes, entre Arles e Avignon. Filho natural de camponeses, foi criado pelo pároco do local, Padre François Dominic Darbeaux. Na certidão de nascimento, datada de 5 de julho de 1873, o sobrenome aparecia modificado para Darbot. Mas é certo que o religioso quis dar seu nome ao filho de criação. Dos sete aos quatorze anos, Jean-Baptiste estudou em Arles, numa congregação católica que abrigava meninos órfãos. A partir dali, nunca mais freqüentaria outra instituição de ensino. Segundo ele, era vontade do pai adotivo enviá-lo a um seminário para que se iniciasse na vida eclesiástica. Mas o Padre Dominic morreu durante o incêndio que destruiu sua paróquia. Numa pesquisa realizada em 1957, foi encontrado nos arquivos de uma igreja de Arles o registro de um certo Jean-Baptiste Darbeux, numa caligrafia quase ilegível. Tudo indica ser o mesmo Jean-Baptiste Darbot, diante do qual o mundo artístico se curvaria. Ainda em Arles, Jean-Baptiste teve a sorte de ver Gauguin e Van Gogh em plena atividade criadora. Foi assim que lhe surgiu o desejo de se tornar pintor. Depois de algumas experiências reprovadas pelos mestres tradicionais e, até mesmo por Berthe Morisot, uma das fundadoras do Impressionismo, o jovem Darbot desiludiu-se com a pintura e se engajou como auxiliar de imediato num navio cargueiro que viajava de seis em seis meses para o Brasil.
Ele costumava dizer que o Rio de Janeiro de 1896 logo lhe pareceu um milagre em óleo sobre tela. Apaixonado pela cidade, tratou de obter o desligamento e fixar moradia no novo país. No Rio, empregou-se como servente numa indústria de tecidos recém-inaugurada em Vila Isabel, indo morar num quarto alugado no bairro de São Cristóvão. Darbot estava com vinte e quatro anos. No fim de três anos, trocou de emprego, passando a auxiliar de laboratório numa farmácia da Rua São Januário. Nessa época, mudou-se para um porão na Rua Escobar, a poucos metros do Campo de São Cristóvão e da Quinta da Boa Vista. Foi justamente na Quinta que Darbot viu renascer sua vocação de pintor. Um dia comprou uma tela, alguns tubos de tinta, meia dúzia de pincéis e foi para lá no primeiro domingo de folga. Depois de várias tentativas, não conseguiu pintar uma única árvore. Sua visão se prendia a detalhes do céu, nos espaços permitidos pela folhagem. Logo abandonou os pincéis, comprou uma espátula e, aos poucos, foi modelando sua técnica definitiva. Quando apresentou os novos trabalhos ao Museu Nacional de Belas Artes, Edmundo Novaes, um dos grandes pintores da época, lhe disse que sua pintura representava o nada. Essa crítica se tornou tão freqüente, que ele escreveu a lápis, já em português, no verso da contracapa de um missal: "Eles dizem que eu pinto o nada. Mas juro que pintar o nada é um poder concedido por Deus." Quando Jean-Baptiste Darbot morreu tuberculoso, solitário e desconhecido, em 11 de agosto de 1921, o porão da Rua Escobar, onde sempre morou, estava abarrotado de telas. Ao todo, trezentas e oitenta e quatro. Trezentas e oitenta e três representavam o nada, como lhe declararam os grandes mestres, mas uma delas, de quarenta centímetros por sessenta, era o célebre auto-retrato. É nele que se observa a expressão alinhavada pela tristeza e marcada pelo misticismo católico desse gênio, cuja arte tentou representar a abstração divina."
Tirando as atualizações, esse foi o resumo biográfico mimeografado no folheto da primeira exposição Darbot, em 1958, numa galeria da Tijuca e, tal como está, é o que ilustra agora, em 1994, com versões em inglês, alemão, francês, italiano e espanhol, o catálogo de cento e setenta páginas da grande Retrospectiva Darbot, inaugurada há um mês, no Museu Guggenheim, de Nova York. Meu nome aparece como curador da obra de Jean-Baptiste. A retrospectiva apresenta cento e vinte e nove trabalhos e mais as quarenta e duas telas, incluindo o auto-retrato, que formam minha coleção particular, em exposição permanente no Museu Darbot do Rio de Janeiro, desde sua fundação em 1987.
Acho que não preciso declarar que artisticamente e, sobretudo, financeiramente sou um homem realizado. Se houvesse um Prix Nobel destinado a descobridores de obras de arte, eu certamente estaria entre os mais sérios candidatos. Mas ganhei outros galardões equivalentes.
No sábado que antecedeu a inauguração da retrospectiva, desembarquei às sete da madrugada no John Kennedy, tomei um banho de banheira em minha suíte no Plaza, arrisquei um olhar ao Central Park submerso em neve, enfrentei um café da manhã sem gemas cozidas, para afugentar o colesterol, e caminhei até o Lincoln Center, para assustar os triglicerídeos. Em nenhum passo senti o peso dos sessenta anos. Retirei meu ingresso para o Parsifal daquela noite, já reservado na bilheteria do Metropolitan, e peguei um táxi até o Guggenheim, no outro lado do parque: não seria elegante aparecer por lá a pé, como um condenado.
Às dez e meia em ponto, como estava combinado há dezenove telegramas e oito faxes, um alto funcionário me recebeu sorridente, acompanhado de uma assessora de cabelos, sobrancelhas, pestanas, sardas, lábios, casaco e sapatos vermelhos. De longe ela se confundia com uma das primeiras abstrações de Darbot. O funcionário era Philip D'Amico, autor das sessenta e quatro cartas que resultaram na retrospectiva. A abstração preferia ser chamada pelo apelido: Lonie. Depois de quatro ou cinco apresentações, D'Amico, Lonie e três encarregados da instalação das telas me conduziram ao elevador. Saltamos no último andar e descemos a pé a famosa rampa espiralada, onde se concentra mais da metade das exposições do Guggenheim. Foi uma peregrinação emocional: até onde a vista alcançava só se viam Darbots. Reconheço que seria problemático estabelecer uma ordem para os trabalhos de Jean-Baptiste. A impressão que se tem é de que os artistas atuais produzem com a preocupação de deixar bem claras as fases de sua obra. A finalidade seria facilitar o trabalho dos organizadores, caso algum dia se realizasse uma retrospectiva. Quem sabe? Em se tratando de arte e de século XX, tudo é possível. Achei bastante oportuna a idéia de se instalarem as telas maiores nos salões laterais. Na verdade, trata-se de treze telões de um metro e oitenta por um e vinte, às vezes, um e quarenta, não mais. Aliás, como eu conto na biografia que estou terminando para uma editora de São Paulo, em sociedade com outra de Nova York, o que faltou a Darbot foi espaço físico para trabalhar. Na grande maioria, seus quadros vão de oitenta por cinqüenta até um e meio por noventa. No final, o que impressiona é a quantidade de telas, associada à qualidade do trabalho. Isso, para não falarmos na variedade: não há dois quadros em que se notem as mesmas intenções cromáticas.
Para quem nunca viu Darbot, nem em gravuras impressas, o que é difícil, é necessário esclarecer que o figurativismo não aparece em nenhuma de suas obras, a não ser no auto-retrato. O estilo é marcado por uma crescente intensidade do escuro ao claro, muitas vezes de baixo para cima, como se a luz só atingisse maior pujança nas partes mais elevadas da tela. Um crítico paulista e outro holandês viram nessa característica uma intenção religiosa. De acordo com o holandês, luz sugere sublimação divina. O conceito é dele. Seu nome era Willem Koonnen ou Kronnen, não me lembro bem. Na época dei total aprovação às tendências que tentavam sujeitar a religiosidade de Darbot a uma intensificação ascendente dos tons mais claros a partir dos mais escuros. Hoje em dia, depois de tantas tentativas de exegese, até eu, que sou o responsável pela trajetória de Darbot, não sei para que lado me virar. O único traço comum a toda a obra é a técnica da espátula. De um modo geral, Darbot emprega a tinta pura, como sai do tubo, sem se preocupar em diluí-la em diferentes óleos. Quase sempre percebe-se que ele começou o quadro pela parte inferior. Os golpes da espátula, obedientes a impulsos meramente gestuais, insistem numa tonalidade inicial sem nenhum sinal de mistura. A título de exemplo, uma de suas telas mais citadas, que eu batizei de Abstração 49, compõe-se quase que inteiramente de espessas volutas na cor terra de siena. A partir do centro o marrom vai sendo invadido pelo amarelo, até ser atingido por duas espátulas brancas, sublinhadas por uma pequena cicatriz num verde diáfano. A luminosidade, numa explosão mágica, atinge o clímax na região correspondente a uma divisão áurea no sentido vertical do quadro. O próprio Darbot deve ter compreendido o milagre obtido a partir de composição tão simples: sua assinatura, o célebre monograma quadrangular formado por DAR sobre BOT, surge quase invisível no canto superior direito, em tonalidade discreta, como se a própria assinatura pudesse perturbar o resultado final da obra. Há quatro anos, a Abstração 49 foi vendida por quatrocentos e trinta mil dólares, num leilão da Sotheby's de Londres. O comprador, um milionário dinamarquês, ofereceu o quadro à amante, um soprano wagneriano cujo nome prefiro não revelar. Seis meses depois consegui recuperá-lo. Se alguém se interessar em vê-lo, é fácil. Está exposto, a título de empréstimo, na ala do século XX do Metropolitan Museum, a poucas quadras do Guggenheim. Vale a pena.
Como se vê, a história da ascensão de Jean-Baptiste Darbot é absolutamente sem graça pelo simples fato de ser uma história de final feliz. O escritor Leon Tolstoi começa o romance Ana Karenina afirmando que as famílias felizes são sempre parecidas; só as infelizes são infelizes cada uma a seu modo. A história de Darbot é igual a milhares de histórias felizes. É claro que a felicidade dele é póstuma, enquanto que a minha é tão presente quanto a vida que vivi desde aquela tarde de 1945, véspera de Natal, na casa de Tia Zuzu.
Logo no início da tal biografia encomendada por São Paulo e Nova York, eu digo que já em criança, ouvia falar do pintor que havia morado no sobrado de meu avô, na Rua Escobar, em São Cristóvão. Na verdade, meu avô foi o farmacêutico que empregou Jean-Baptiste em 1899, como auxiliar de laboratório. Jean-Baptiste, sem ter onde cair morto, ficou morando de graça no porão da Rua Escobar. Meu avô era tão liberal, que morreu do coração em 12 de novembro de 1937, desgostoso com o Estado Novo da ditadura Vargas, decretado dois dias antes. Hoje as calamidades políticas não matam nem moscas. Tia Zuzu, a filha mais velha, irmã de meu pai, ficou morando no sobrado depois que meu avô morreu. Meu pai, minha mãe e eu, com três anos, ficamos na Rua São Januário. Nesse ponto, eu descrevo a festa do Natal de 1945, logo depois da Segunda Guerra, na casa de Tia Zuzu. Eu e um primo descemos ao porão e vimos as telas, amontoadas num salão escuro. Meu primo não deu a mínima importância, mas eu fui dominado por uma impressão tão intensa quanto solitária. Sete dias depois, no 31 de dezembro, fomos festejar o Ano Novo com Tia Zuzu. Assim que chegamos, desci ao porão munido de um candelabro de duas velas e examinei os quadros com uma atenção inesperada numa criança de onze anos. Foi a primeira vez que vi a assinatura DAR sobre BOT formando um quadrado. Mas o que chamou minha atenção foi a quantidade de telas enfileiradas entre as quatro paredes. Naquele dia me pareceram mais de mil. Não havia uma única emoldurada. Afastei a primeira, limpei superficialmente a poeira com um trapo mais empoeirado do que a tela e admirei a pintura. A luminosidade insuficiente não me permitia uma visão nítida. Arrastei-a para fora e, sob um sol de verão às quatro da tarde, fiquei deslumbrado. Para mim, a pintura não representava coisíssima nenhuma. No entanto, as cores me feriam os olhos, como se estivessem acesas, concorrendo com o sol que as iluminava. Era uma luz por baixo de outra. Levei um susto. Recoloquei a tela no mesmo lugar e voltei para a sala de visitas. Durante a conversa perguntei a minha tia quem era Darbot. Apesar das interrupções de minha mãe, que só queria saber do namorado da prima Dedé, Tia Zuzu me contou que Darbot era um marinheiro francês sem eira nem beira, que deu com os costados no Rio de Janeiro, pra morrer tuberculoso naquele porão que de habitável só tinha o nome, sufocado pelo cheiro do óleo e pela falta de recursos. Meu avô, por amizade ao francês, nunca se deu ao trabalho de jogar aqueles quadros no lixo, uma porcariada que ninguém entendia, tubos e mais tubos de tinta importados da França, uma fortuna atirada pela janela. Enfim, cada louco com sua mania. E Tia Zuzu me ditou em pouquíssimas palavras a biografia que atualmente já está com quatrocentas e dezenove páginas.
A partir daquela época, Darbot se tornou uma paixão. Quando comecei a freqüentar o curso ginasial no Colégio Brasileiro, um pouco adiante do Campo de São Cristóvão, passei a almoçar quase todos os dias na casa de Tia Zuzu, só para apreciar os quadros. Se eu dissesse que o primeiro museu Darbot foi o porão da Rua Escobar, não estaria mentindo. Um museu que só contava com um visitante, mas era. Uma vez, resolvi inventariar as telas, para saber quantas havia. No fim de uma semana, depois de contar e recontar, cheguei à conclusão de que eram quatrocentas e quarenta e nove. Infelizmente, na parte dos fundos do porão, o chão apresentava um desnivelamento fatal para a pintura a óleo. Quando chovia a água entrava por algumas falhas da parede e formava uma poça. Achei que oitenta e duas telas estivessem perdidas. Depois, consegui salvar dezessete e o prejuízo baixou para sessenta e cinco. Assim mesmo, eu ainda as mantenho no depósito: ninguém sabe o dia de amanhã. Em todo caso, a lei da compensação é infalível. Para contrabalançar as falhas de baixo, por onde entrava a chuva, havia as frestas de cima, por onde o sol enfiava alguns raios, com a sublime finalidade de impedir a destruição do acervo, causada pela umidade. Sem sombra de dúvida, o porão se mantinha seco. Assim que descobri as fendas inferiores, comprei cimento e vedei tudo. A certeza de que a chuva não entraria mais consolidou minha decisão de recuperar toda a obra de Jean-Baptiste Darbot.
Aos dezesseis anos, quando resolvi estudar Belas Artes, pensei que meu pai e minha mãe ficariam contra, mas aconteceu justamente o contrário. Eu passava as tardes copiando gravuras francesas que meu pai comprava para mim. Todos achavam que eu tinha jeito para desenho. Aos dezessete, entrei para a Escola Nacional de Belas Artes. No segundo ano, fiz um curso especializado em restauração de pintura a óleo e comecei a aplicar meus conhecimentos nos Darbots. O dia em que apareci em casa com uma tela de trinta por quarenta debaixo do braço foi um acontecimento. Trabalhei quase duas semanas e o resultado me pareceu esplendoroso. Meus pais trocaram um olhar de aprovação, mas eu senti que o gesto se devia mais ao orgulho pelas habilidades do filho único, do que pela revelação da maestria de Darbot. Para encurtar a história: não houve empatia. Tia Zuzu, ao contrário, ficou tão entusiasmada que acabou me pedindo para limpar um quadrinho para ela, que não fosse muito grande ou, pelo menos, que não fosse muito maior do que a reprodução da Santa Ceia, pendurada bem no centro da parede principal da sala de jantar. Cinco dias depois, o quadrinho estava pronto, emoldurado e pendurado. Minha mãe quando viu, quis um também. E assim, de quadrinho em quadrinho, formou-se o novo museu Darbot, dividido em dois endereços: a seção São Januário e a seção Escobar.
Quatro anos depois, quando terminei o curso de Belas Artes, já havia na seção São Januário, entulhando meu quarto e o sótão, sessenta e cinco Darbots em perfeito estado de recuperação. Só não havia molduras. Eu acho que a idéia do vernissage já bailava em minha cabeça.
Um dia, fui convidado para a inauguração de uma pequena galeria na Tijuca, a um quarteirão da Praça Saens Peña. A galeria nada mais era do que um espaço de oitenta metros quadrados na frente de uma vidraçaria, onde se emolduravam fotografias, gravuras, posters e quadros a óleo. O vidraceiro era um português que atendia pelo apelido de Geninho e que nada entendia de pintura. Para a inauguração da galeria, que inexplicavelmente se chamava Glacial Arte, Geninho escolheu o que havia de pior na safra dos pintores da vizinhança. Havia pretos velhos fumando cachimbos, ao lado de patos ensangüentados e nus femininos envoltos em véus pudicos produzidos à custa de aerógrafos rudimentares. Assim mesmo ou talvez devido a isso, Geninho vendeu seis quadros. Para ele, foi uma noite memorável. No dia seguinte, antes que seu entusiasmo esfriasse, procurei-o, apresentei-me como especialista em restauração de telas a óleo e falei a respeito de Darbot. Em quinze minutos, Geninho se convenceu da necessidade de ir até São Cristóvão, a fim de examinar os quadros. No sábado, às três e meia, entre um café e uma fatia de bolo de chocolate, Geninho ajustou comigo uma exposição de quatorze peças de Darbot, emolduradas por ele. Na segunda-feira, contratei uma caminhonete e levei as telas para a vidraçaria. Escolhemos as molduras, ao som das risadas estridentes de Geninho, e marcamos a data definitiva do vernissage para vinte e oito dias depois, uma sexta-feira, 18 de julho de 1958, data importante na biografia.
Foram quatro semanas de revelações. Eu nada sabia da profissão de marchand. Meus conhecimentos universitários não passavam de frágeis informações sobre história da pintura, noções de perspectiva, uso das cores primárias na obtenção das secundárias, volumes, sombras, modelos vivos etc. Como vender um quadro não fazia parte do currículo universitário e em vinte e oito dias este seria meu único problema. Um ex-professor conversou comigo sobre os efeitos miraculosos da divulgação em jornais, estações de rádio e de televisão e, para mostrar conhecimento, falou em press release. Embarquei no assunto: escrevi releases, enviei fotos a cores de cinco Darbots, redigi o resumo biográfico depois de pesquisas estafantes, descobri no porão da seção Escobar um caixote dentro do qual, sob decênios de poeira, repousava o missal que pertenceu a Jean-Baptiste, mimeografei o pensamento sobre pintar o nada junto à biografia e esperei os resultados. Dois dias antes do evento, o Jornal do Brasil deu uma nota de seis linhas, O Globo, de cinco, e eu tratei de lamber os beiços porque entendi que daquele mato não saía coelho, como disse Tia Zuzu, enquanto preparava os salgadinhos para o vernissage. Meu pai colaborou com as bebidas, minha mãe com a propaganda boca a boca e, como principal reforço, enviamos duzentos e noventa e três convites.
Na noite fatal, apareceram dezenove pessoas, contando com dois colegas de trabalho de meu pai e com quatro amigas de Tia Zuzu, ou seja, um fracasso impublicável. O único sucesso coube a titia, que recebeu duas encomendas de salgadinhos. Quanto a Darbot, nem prós nem contras. Os quadros expostos eram todos de pequenas dimensões e os preços menores ainda: nenhuma tela ultrapassava cem dólares. No final de três dias sem visitantes, sentimos que o projeto estava pulverizado. Geninho não se deu por satisfeito e quis cobrar as molduras. Irritado, propus assinar quatro promissórias, apesar da dificuldade que o pagamento representava para mim, sem emprego, recebendo uma ou outra encomenda de restauração. Mas Geninho aceitou e eu aprendi que não é só a fé que remove montanhas. A necessidade também. Em casa, meu pai, minha mãe e Tia Zuzu tentaram me consolar, reafirmando a escassa qualidade da pintura de Darbot e olhando para mim como se eu fosse vítima de devaneios estéticos. Depois, sozinho no quarto, quase chorei. Mas minha confiança permanecia inabalável. Se eu tivesse um missal, teria escrito na contracapa: "Eles dizem que eu vendo o nada. Mas juro que vender o nada é um poder concedido pelo Demônio." E era mesmo. Foi vendendo o nada na noite do vernissage que vi despontar a primeira prova do valor de Darbot. Se as seis pessoas, que tiveram o descaramento de comprar pretos velhos, patos ensangüentados e nus aerografados, agora não compravam nada, quem saiu ganhando foi Darbot. Quem gasta em preto velho não arrisca em abstrações luminosas. Decididamente, minha seara não era ali. Mas onde seria? Na Zona Sul?
Na semana seguinte fiz um estágio nas galerias da Zona Sul: Point l'Evêque, Bottesini, Papillons, Blue Canvas, Rougevert, Yellow Brick Road e por fim a maior de todas, a Bogardus, dirigida por uma austríaca de cabelos oxigenados, lábios desenhados e inteligência diabólica: Marianne Bogardus. Depois de conversarmos uma tarde inteira, tentei convencê-la a examinar uma tela de Darbot. Uma única que fosse. Ela aceitou.
Corri para casa, fiz uma inspeção no sótão e descobri a obra que minutos depois se chamaria Abstração 49. Nunca atinei com a causa da numeração. Só sei que o número, com relação à minha existência, ganhou o dom da ubiqüidade. Seria cansativo descrever todos os fatos onde o quarenta e nove aparece. O pior é que ao completar quarenta e oito anos, encasquetei que ia morrer com quarenta e nove. E não houve santo que me livrasse da idéia. Só fiquei tranqüilo no dia em que atingi o cinqüentenário. Mas tirando isso, o quarenta e nove foi um mensageiro de felicidade. Principalmente a Abstração. Naquela noite, apesar da iluminação precária de duas lâmpadas de cem velas, reconheci o brilho da tela. As primeiras luzes da manhã me convenceram: Marianne Bogardus entregaria os pontos diante da Abstração 49. E não deu outra. Além disso, eu tive o trabalho de encontrar uma das molduras de Geninho que fosse do mesmo tamanho. Marianne pousou a Abstração num cavalete, jogou a luz de um refletor sobre a tela e deu sete passos para trás. Foi um minuto de tensão, o que equivale a um milênio de espera. Numa elegância vienense, ela apoiou o cotovelo na palma da mão esquerda, mantendo a direita erguida, numa afetação de fumante inveterada que necessita da postura, não só para sustentar o cigarro Dunnhill de ponta dourada entre o indicador e o médio, mas também para mostrar ao mundo que Marianne Bogardus está entrando em transe diante do fenômeno estético. Passada a crise, pediu a um funcionário que retirasse a moldura. Enquanto o rapaz executava a ordem, ouvi duas palavras aterradoras:
-- Está péssimo.
Senti um calafrio:
-- O quadro?
O alívio chegou pela metade:
-- Non, a moldurra.
Em seguida, Marianne e o funcionário desapareceram por uma porta nos fundos da galeria. Ficamos sós, eu e minha esperança. Em dez minutos os dois reapareceram: a Abstração 49 se encaixava agora numa moldura digna do Louvre. O funcionário recolocou o quadro no cavalete e ligou o refletor. Marianne acendeu outro Dunnhill, armou a mesma pose e se imobilizou por mais um minuto. Depois, deu uma longa tragada, virou-se para mim e, com uma única frase, concluiu a primeira parte da biografia de Darbot e iniciou a segunda:
-- Em todo minha vida, eu nunca vi uma luz tão forte e tão belo.
Os erros de concordância e o sotaque de Marianne Bogardus tinham o poder de sublinhar a verdade contida em suas palavras. Concluído o veredicto, ela se aproximou do quadro e esquadrinhou-o de norte a sul, de leste a oeste. Não satisfeita, foi até uma escrivaninha e apanhou uma lupa. Repetiu o exame, demorando-se na cicatriz diáfana, sorriu e olhou para mim com o mesmo olhar que Aladim dirigiu ao Gênio da Lâmpada:
-- Quanto quer por esse Abstrraçon quarrenta nove?
Depois que Marianne Bogardus deu sua bênção ao meu Darbot, me vi na obrigação de abrir o jogo:
-- Eu acho que a senhora não me entendeu. Eu não estou querendo nada por esse Darbot. O que eu quero é muito mais.
E fiz um discurso a respeito de minhas intenções de revelar ao mundo a obra de um gênio desconhecido. Durante a audição de meu projeto, de minha loucura meio profética, Marianne acendeu outro Dunnhill para que a fumaça disfarçasse um brilho meio alucinado nos olhos azuis. Quando acabei, ela tornou a incorporar o espírito do marchand:
-- Quantos Darbots você tem?
Nesse ponto não houve meios de encarar a verdade. Com toda a razão, eu senti que o número trezentos e oitenta e quatro seria assustador, além de inconvincente. Um mecanismo em meu cérebro me aconselhou a contabilizar a exposição da Tijuca, acrescentando a Abstração 49:
-- Quinze.
Marianne anotou meu endereço e pediu que eu não saísse de casa na manhã seguinte. Acordei às sete. Às nove e meia chegou o caminhão da transportadora. Ao meio-dia eu estava almoçando uma truta amanteigada com arroz de amêndoas em companhia de Marianne Bogardus. Às duas e quinze, ela abriu o segundo maço de Dunnhill do dia, enquanto me exibia o contrato para outro vernissage Darbot dali a dois meses.
Seria tolice traçar comparações entre Geninho e Marianne. Um jamais compreenderia o que perdeu, enquanto a outra se armava com unhas e dentes para arquitetar o grande acontecimento da pintura do século XX.
Descrever o trabalho subterrâneo de Marianne equivaleria a redigir um compêndio sobre a arte de vender a Arte. De um certo modo, senti-me um pouco arrasado, uma vez que Marianne Bogardus me parecia capaz de vender qualquer óleo sobre tela, fosse qual fosse a qualidade. Mas com o tempo, ela me provou que não era assim. Em poucos dias tornamo-nos íntimos. Marianne me contou as aventuras do avô e do pai, vendedores de material de pintura em Viena, e sua convivência com Gustav Klimt, com Oskar Kokoschka, com o compositor Schoenberg, que também pintava, e com outros mestres da escola vienense. Uma vez, em seu apartamento na Vieira Souto, Marianne me mostrou um pequeno desenho de Klimt com uma dedicatória para o avô, Joseph Bogardus. Num canto da sala, havia um retrato meio amarelado da loja de artigos para pintores em Viena. Marianne aparecia na calçada em frente, toda de branco, no colo da mãe. Dentro da loja, distinguiam-se duas silhuetas escuras. Marianne me garantiu que uma delas era o próprio Arnold Schoenberg.
Entre as mudanças introduzidas por Marianne para a segunda exposição Darbot destacavam-se os preços. Quando eu lhe contei que os preços iniciais não passavam de cem dólares, ela se engasgou com a fumaça. Logo em seguida pegou um papel e organizou outra tabela. Agora o Darbot mais barato, uma tela nas mesmas medidas do quadrinho de Tia Zuzu, custava mil e seiscentos dólares, ao passo que o mais caro, a Abstração 49, chegava a três mil e quatrocentos. Esforcei-me para fingir o máximo de naturalidade.
O tratamento da imprensa com relação à Galeria Bogardus foi outra história que nada tinha a ver com a vidraçaria de Geninho. Na manhã do vernissage, um jornal dedicou quase uma página do segundo caderno a Jean-Baptiste Darbot. Foi a primeira vez que vi minha foto num jornal. É desnecessário dizer que nas seções São Januário e Escobar houve ameaças de festa. Pelo menos, a travessa de salgadinhos não faltou. Às nove horas, as equipes da TV Tupi e da TV Rio invadiram a Bogardus, levando a legitimação em cada câmera, em cada refletor, em cada tomada. Nesse momento, a maestria de Marianne se mostrou irretocável. Sempre com o Dunnhill entre os dedos, ela se colocou de costas para uma das câmeras, lançou mão de todo o sotaque e sentenciou:
-- Non, non, non. Esse refletorres, non. A pinturra non resiste. Non se pode filmar nada. Vocês eston querrendo estrragar tudo? Depois, quem é que paga?
Uma jornalista, já armada de microfone, enfrentou a Bogardus:
-- E aí? Como é que fica?
-- Non fica. Se você quer saber mais, faz entrrevista com ele.
E apontou para mim, mas a jornalista insistiu:
-- E os quadros?
A resposta de Marianne me deu toda a medida de sua imaginação:
-- Os quadrros só se for com meus refletorres. Com esses aí, non. A luz de vocês não é filtrrado.
O impedimento encenado por Marianne serviu para exacerbar os efeitos da televisão sobre as dezenas de convidados. Discretamente, ela piscou um olho para mim, enquanto dava ordem a um dos garçons para iniciar o coquetel. Foi um festival de luzes, vestidos, cores, gravatas, sorrisos, bandejas, copos quebrados, risadas, sucessos.
Mas a magia ocorreu às dez horas, quando uma limusine de aluguel estacionou na entrada principal da Bogardus. O motorista saltou, abriu a porta traseira e nos revelou um sujeito moreno, cuja idade poderia variar entre quarenta e cinqüenta anos, vestido com um costume de linho irlandês e acompanhado por uma criatura mais baixa, deselegante e exageradamente carioca. O mais alto parou na entrada com a mão esquerda no bolso do paletó, enquanto o mais baixo se dirigia a Marianne. Ao vê-la, desmanchou-se em amabilidades, entregando-lhe um cartão e apontando para o companheiro, estatelado no hall. Marianne ajustou os óculos meia taça, leu o cartão, examinou o sujeito parado na porta, localizou-me e fez um gesto me mandando segui-la. O homem se chamava Tarik Benzayad e parecia tratar-se de um magnata árabe, interessado nos quadros de Darbot. A notícia na página do segundo caderno atraiu-o. Benzayad deu duas voltas pela galeria, mas não chegou a examinar os quadros com muita atenção. Antes de iniciar a terceira rodada, aproximou-se do companheiro, que funcionava como intérprete, e segredou alguma coisa. O segredo foi passado a Marianne Bogardus e as cores do rosto dela foram passadas até hoje não sei para onde. Havia uma tela de mil e seiscentos dólares, oito de dois mil e trezentos, cinco de dois mil e quinhentos e a última, a Abstração 49, de três mil e quatrocentos, num total de trinta e cinco mil e novecentos dólares. Tarik Benzayad acabava de oferecer trinta mil redondos pelas quinze telas. Apesar da palidez, Marianne se aproximou de mim e sussurrou com o máximo de firmeza:
-- Non fica nervoso. Quando eu acabar de contar o prroposta do árrabe, mexe cabeça prra lá e prra cá, prra ele ver que você non concorda.
E revelou a proposta. Senti como seria um prenúncio de parada cardíaca, mas consegui manter a imobilidade corporal. Apenas a cabeça girou para a direita, para a esquerda, para a direita e para a frente. Marianne sorriu e recuperou a cor. Caminhou até o intérprete e comunicou minha negativa. O intérprete foi a Tarik, ouviu nova proposta, a proposta chegou a Marianne e ela foi pessoalmente apertar a mão do árabe. A venda dos quinze Darbots se realizou por trinta e dois mil dólares.
Ainda naquela noite, os jornais de TV mais tardios soltaram a notícia, com flashes generosos sobre Tarik Benzayad, sobre Marianne Bogardus, sobre os Darbots, sobre mim e sobre o cheque do Chase Manhattan Bank. Tarik declarou que os quadros iriam decorar a galeria de seu iate, ancorado na Côte d'Azur. Vinte e quatro horas depois, a notícia estendeu os tentáculos sobre o Brasil, mas deixou dois deles livres: um pegou a Europa e o outro os Estados Unidos. A base do noticiário nacional e internacional era a mesma: "Pintor francês descoberto em subúrbio carioca". Ou: "Impressionista esquecido renasce no Brasil". Ou: "Abstrações pré-modernas em galeria de Ipanema" etc.
Minha primeira atitude ao receber os dezoito mil dólares, que Marianne havia estabelecido como minha parte, foi pagar orgulhosamente as promissórias de Geninho, em dólares, para ele sentir o cheiro da insensatez. Acontece que depois de comprar geladeira nova para Tia Zuzu, aparelho conjugado de TV e eletrola para minha mãe e um Volkswagen para meu pai, caí no vazio e reconheci minha própria insensatez: não contar a verdade a Marianne, a respeito dos trezentos e oitenta e quatro Darbots. Com que cara ela receberia a verdade agora? Dia seguinte, fui num antiquário, comprei um cinzeiro de porcelana Limoges por trezentos e oitenta dólares, mandei embrulhar para presente e fui à Bogardus com o sorriso mais inocente do mundo. Marianne ficou mais deslumbrada com minha visita do que com o cinzeiro, embora começasse a usá-lo no minuto seguinte. Depois, jogou três envelopes em cima de mim: três cartas de galerias paulistas interessadas em exposições Darbot. Quando acabei de ler, olhei para ela. Marianne ergueu a mão direita com o Dunnhill amarelando os dedos e franziu o nariz:
-- Serrá que você não me arranja nem um darbotzinho deste tamaninho?
Peguei um cigarro, coloquei-o entre os lábios e tomei coragem:
-- Marianne Bogardus, nós temos trezentos e sessenta e nove Darbots. Quantos você quer?
A requisição de Marianne me exigiu dois meses de trabalho ininterrupto. Para início de conversa, aluguei um apartamento de três quartos num edifício recém-construído, a um quarteirão da casa onde morávamos, e instalei um ateliê de restauração com todos os efes e erres. Agora eu podia trabalhar sobre uma das telas de um metro e vinte por um e oitenta, com absoluta tranqüilidade. Batizei-a simplesmente de Luz. Marianne aprovou o nome antes de ver o quadro. Além do Luz, restaurei mais vinte seis telas de tamanhos variados. Os preços estabelecidos por Marianne também eram variados: iam de três mil e quatrocentos a quatro mil dólares, com exceção do Luz, avaliado por ela em seis mil e cem. Quando Tia Zuzu tomou conhecimento da nova tabela, deu uma espanada num de seus quadrinhos:
-- Daqui a pouco ele vai valer um apartamento em Copa, de frente pro mar.
Ela só errou de endereço: vinte e cinco anos depois, com um quadrinho igual àquele, nós compraríamos um apartamento a dois passos da Avenida Foch, em Paris.
Em São Paulo, a Galeria Piratini repetiu o esplendor da Bogardus, sem a presença do árabe milionário, condignamente substituído pelos representantes da Federação das Indústrias. Logo de saída, em sistema de cotas, eles arremataram o Luz para doá-lo ao MASP. Um crítico da Folha de São Paulo definiu a doação como exagero publicitário, mas não passou disso. Além do mais, no dia seguinte ao vernissage, um norte-americano de Chicago adquiriu cinco Darbots para expor numa galeria que ele acabara de inaugurar, um funcionário da Ménilmontant, de Bruxelas, comprou dois, um bibliófilo milionário levou outro e três japoneses pagaram a sobra, sem regatear. Total: cem mil e quinhentos dólares. Trinta mil para a Piratini, vinte para Marianne Bogardus, cinqüenta para mim e quinhentos para Tia Zuzu fazer uma reforma no banheiro da seção Escobar.
Afinal, as coisas começavam a funcionar. Terminado o festival paulistano, a Folha de São Paulo lavou nossa alma com a publicação de um ensaio na primeira página do suplemento dominical, assinada por Viriato Guazzoni, um dos curadores da Bienal. Foi a primeira notícia crítica sobre a obra de Jean-Baptiste Darbot. Faço questão de transcrever dois trechos. Um deles:
"Sem dúvida, trata-se de um artista singular (refere-se a Darbot) na medida em que realiza um futuro que não existiu: o futuro de seu compatriota Georges Seurat, falecido aos 32 anos. Seurat, em seus últimos esboços a crayon, indica o percurso fascinante da luminosidade, que seria conquistada anos depois por este Jean-Baptiste Darbot."
E como conclusão do ensaio:
"Seria esta a semente da arte visual do século XXI? A exemplo da chamada música erudita que, timidamente, vem reencontrando o público através de harmonias mais humanizadas, é possível que também a Pintura, por meio das soluções encantatórias preconizadas pela espátula darbotiana, venha devolver a saúde a uma gestalt por demais doentia neste final de milênio, aviltado por niilismos inconseqüentes e inacabadismos inacabados."
O termo inacabadismo era uma referência a um certo Ladislau de Monchique, pintor carioca de algum talento, que expôs no Ibirapuera um painel de doze metros de comprimento por dois de largura, pintado de branco de cabo a rabo. Assim como Darbot, Monchique também se valeu unicamente da espátula, tentando dar às volutas significados extraídos do Apocalipse. Uma idiotice sem pé nem cabeça
[1].
Mas o que me tirou o sono nas seis noites que se seguiram à publicação do ensaio foi a espátula darbotiana. Conceituar a obra de Jean-Baptiste, recuperada de um porão empoeirado de São Cristóvão, como espátula darbotiana era o que se pode chamar de glória terrena.
No domingo seguinte, foi a vez d'O Estado de São Paulo. O crítico Raul de Loreto, em página e meia de um tablóide, não só fez a exegese do abstracionismo darbotiano, como foi um dos primeiros a associar as intenções de Darbot ao pensamento religioso. Para Loreto, a luminosidade das telas tinha o mesmo sentido de uma prece. Os dois ensaios me levaram à certeza do nascimento de um novo adjetivo: darbotiano. Até ali, era o suficiente para me enlevar. No Rio, o Jornal do Brasil e O Globo, embora não publicassem ensaios, apresentaram matérias de destaque, com uma foto da Abstração 49. Mas Tia Zuzu, que sempre queria o impossível, deu a palavra final:
-- Santo de casa só faz milagre quando está bêbado.
Em 1959, houve exposições em Porto Alegre, Belo Horizonte, Curitiba e Recife. No final do ano, contabilizamos quase duzentos mil dólares. Em 1960, Marianne me aconselhou um recesso até 1961: daquele jeito nós acabaríamos inflacionando o mercado. A idéia foi excelente porque, apesar dos vinte e sete anos, eu já me sentia cansado.
Mas em 1962, aconteceu o que sempre esperamos que acontecesse, embora não confessássemos: Marianne Bogardus recebeu uma carta de Gérard Laffont, o funcionário da Ménilmontant, que havia comprado dois Darbots em São Paulo. A correspondência era endereçada a mim. A Galeria Ménilmontant estava interessada em promover uma mostra individual de Jean-Baptiste no verão de 1964.
No dia 16 de junho daquele ano, uma sexta-feira darbotiana, eu fiz minha estréia internacional, apesar das dificuldades impostas pela reviravolta de primeiro de abril, que via com maus olhos qualquer mistério traduzido em arte. No final tudo deu certo e o próprio Laffont me recebeu no aeroporto, surpreendido com a ausência de Marianne. Aqui se iniciam as ramificações não muito felizes dessa história de felicidade. Marianne foi obrigada a passar duas semanas hospitalizada com uma crise de enfisema pulmonar. Os sessenta Dunnhills diários começavam a mostrar as unhas. Quando a vi no balão de oxigênio, percebi que ela havia começado a morrer. Mas antes ainda haveria muita água a rolar.
Hoje, quando rememoro todos os episódios da trajetória Darbot, sinto vontade de erguer uma estátua de Gérard Laffont em praça pública. Não tenho a menor dúvida de que a mostra na Ménilmontant foi o passaporte de Jean-Baptiste Darbot para a imortalidade e, sobretudo, para o nicho mais elevado que um gênio pode ocupar. Em Bruxelas, o sucesso se caracterizou pelo silêncio compenetrado do apreciador intelectual. Na inauguração notei a formação de pequenos grupos, estacionados horas diante de um quadro, entre taças de vinho, cigarros sem filtro e conjecturas a meia voz.
Perto dos preços da Ménilmontant, a Piratini e a Bogardus não passavam de feiras livres. Quando viajei para Londres, em atendimento ao convite de outra galeria, minha conta bancária fora ampliada em trezentos e sete mil dólares. De Londres mesmo, fiz uma ordem de pagamento de cem mil para Marianne Bogardus e duas de trinta mil para meu pai e Tia Zuzu, meus asseclas.
A Inglaterra foi decepcionante. As vendas renderam cento e vinte mil, quando muito. A crítica não se pronunciou. Um dos secretários da National Gallery me ofereceu uma proposta indecente para fotografar seis Darbots, com a finalidade de ilustrarem cartões postais. Não aceitei, mas depois me arrependi. De volta ao Brasil, Marianne, já recuperada, achou que fiz bem em recusar. Segundo ela, o importante é que Darbot agora era internacional. Comentei o paradoxo de um pintor francês tornar-se internacional à custa dos esforços de um brasileiro. Ela riu, pensou e rosnou:
-- Você ainda non viu nada.
Uma das coisas que eu ainda não tinha visto era Darbot na França. Durante minha passagem por Bruxelas, eu percebi que o silêncio francês sobre Jean-Baptiste era proposital. Em 1967, quando inaugurei a primeira mostra de Darbot em Paris, minhas dúvidas se transformaram em certeza. Depois de um sucesso absurdo, com vendas acima de um milhão de dólares e com a assinatura de dois contratos para edições de volumes ilustrados sobre a obra de Jean-Baptiste, fui convidado pela televisão francesa para uma entrevista. Durante a sessão de perguntas, um jornalista me desafiou, garantindo que as pesquisas realizadas em Arles não mostravam nenhuma prova da existência de um Darbot, a não ser Darbeux. Eu assegurei que o Jean-Baptiste Darbeux registrado em Arles era o mesmo Jean-Baptiste Darbot que viajara para o Brasil -- e acrescentei -- vítima da incompreensão de seus compatriotas. Isto significava que durante o silêncio, a arqueologia francesa escavava a cidade de Arles e adjacências para descobrir a prova da existência do deus Darbot. Depois de minhas observações, o jornalista riu e argumentou que se levássemos em consideração todas as trocas de letras, talvez descobríssemos que Jean-Baptiste Darbot era tio-avô da atriz Brigitte Bardot. Até eu achei graça, mas o rapaz encerrou a entrevista perguntando que fim levara Tarik Benzayad.
A resposta só viria dezenove anos mais tarde. Em 1986 recebi uma carta de Benzayad me propondo a venda dos quinze quadros adquiridos em 1958, no vernissage da Bogardus, mais o iate onde se encontravam expostos, pela bagatela de dois milhões de dólares. Benzayad estava na rua da amargura. A conselho de tia Zuzu, ofereci um milhão e oitocentos e ele aceitou. No dia seguinte senti remorso: afinal Benzayad foi o grande responsável pela sorte inicial de Darbot. Um mês depois o iate foi rebocado até o Rio de Janeiro. Mandei reformá-lo, procurando manter as características originais, ancorei-o definitivamente no Flamengo, atrás do Museu de Arte Moderna, transformei o convés num restaurante popular e, por fim, inaugurei no salão principal o Museu Darbot, com as quinze telas da Bogardus e mais vinte e sete de minha coleção particular. O auto-retrato fica numa vitrine semelhante à da Mona Lisa, no Louvre. O título da biografia, escolhido de comum acordo pelos editores de São Paulo e Nova York, ficou sendo Museu Darbot.
Nesses dezenove anos rolaram as águas a que me referi. Em 1972, houve a comemoração do centenário de nascimento de Darbot. Em outubro de 1980, perdi meu pai. Em dezembro, foi a vez de Marianne Bogardus, depois de uma agonia impiedosa. Marianne já não saía de casa desde 1978. No começo da doença, Tia Zuzu passava noites inteiras ao seu lado. Mas logo chegou de Recife uma velha amiga, Odete, que não saía de perto dela, a não ser para conferir os negócios da Bogardus. Quando Marianne ficou definitivamente presa à cama, eu lhe dei um Darbot dos mais luminosos, batizado de Mariana, em sua homenagem. Ela mandou pendurar o quadro em frente ao leito e me segredou:
-- Prra iluminar minha morte.
Odete se tornou amiga de todos nós: uma amizade com o perfume da eternidade. Depois da morte de Marianne, Odete fechou a galeria por um mês e me acompanhou à Alemanha, para uma série de exposições e palestras, em Hamburgo, Frankfurt, Hanover e Berlim. Em 1982, eu fiquei na galeria e ela foi à Índia com Tia Zuzu e minha mãe, que depois da morte do marido, tornou-se mística, alimentando uma idéia fixa: visitar o Taj Mahal. Em 1983, foi Odete que ajudou Tia Zuzu a comprar um apartamento em Paris, com o dinheiro de um dos quadrinhos restaurados por mim. Em 1984, Tia Zuzu, com setenta e três anos, se mudou para lá, em companhia da filha única, a prima Dedé, que acabou solteirona. Um dos quartos do apartamento é meu. Nunca me acostumei com hotéis.
Foi Odete que me deu a idéia de criar uma fundação utilizando os recursos obtidos com a obra de Darbot. Foi Odete que organizou os arquivos da Fundação Darbot, criada em 1985, com sede em Santa Tereza. Os arquivos ocupam uma sala equipada com três computadores. Foi Odete que conseguiu catalogar pelo menos noventa por cento do que se disse, do que se escreveu, do que se fotografou, do que se publicou, do que se filmou sobre o tema Darbot. Foi Odete que classificou os arquivos em ensaios, artigos, críticas, observações, anedotas, caricaturas baseadas no auto-retrato, livros, filmes, vídeos, minhas entrevistas, correspondência, selos comemorativos, cartões postais, posters, enfim, a fama. Foi Odete que, em 1986, na inauguração do Museu Darbot, me aconselhou a colocar um retrato de Tarik Benzayad na entrada, como homenagem póstuma. Foi Odete que, em 1989, sugeriu não vender mais Darbots, pois nossos lucros naquele ano ultrapassavam vinte e três milhões de dólares, entre vendas em leilões e direitos autorais. Foi Odete que, em 1990, cuidou da reforma da seção Escobar e fez do sobrado um depósito com ares de fortaleza, para abrigar os Darbots remanescentes. Foi Odete que me convenceu a construir um orfanato-escola para meninos de rua. Foi Odete que me obrigou a responder a todos os convites de Porto Alegre, Niterói, Ouro Preto, Belo Horizonte, Campinas, Recife, Cataguases, Roma, Lisboa, Madri, Oslo, Estocolmo, Boston, Filadélfia, Budapeste e Istambul, para exposições, debates e solenidades darbotianas.
E foi Odete que, uma noite, depois de três doses de uísque, confessou que Marianne Bogardus não era austríaca. A história é simples: Marianne nasceu no Brasil, mais precisamente, no Ceará, filha de pai e mãe brasileiros. O avô paterno, pintor de botequins, era alemão. Daí os olhos azuis, o conhecimento razoável da língua alemã e o amor pela pintura. Seu nome de batismo era Mariana da Veneração dos Santos Borgerth. Quando veio para o Rio e tentou estabelecer-se como marchand, resolveu simular uma nacionalidade austríaca. Nas primeiras férias que passou no Ceará, ela disse que carioca não acreditava em cearense. Dali em diante, Mariana ficou sendo Marianne, enquanto Borgerth virava Bogardus, igual ao personagem de um filme de Bing Crosby e Ingrid Bergman. No fim de um ano, o sotaque se incorporou definitivamente à sua personalidade. O desenho de Klimt e a fotografia da loja vienense eram falsificações inofensivas. Odete dos Santos era sua prima, filha do irmão da mãe de Marianne. Depois da verdade, Odete chorou em silêncio, sem me olhar, acariciando a borda do copo com o indicador:
-- Quando você deu aquele quadro a ela, e disse que o nome era Mariana, nós duas pensamos que você tivesse descoberto tudo. Mesmo assim ela se emocionou.
Naquela noite, eu comecei a pensar na irrelevância de certas verdades. Em que momento, uma pessoa importante, com quem privamos durante anos, deixa de ser austríaca, deixa de se chamar Marianne Bogardus e se transforma numa cearense desconhecida, registrada com o nome de Mariana da Veneração dos Santos Borgerth? Para mim, muito mais do que para qualquer outro, Mariana da Veneração nunca existiu. O sucesso de Darbot estava intimamente ligado à austríaca Marianne Bogardus, e sempre seria assim porque minha verdade era essa. No dia seguinte, pedi a Odete que não tocasse mais no assunto e ela compreendeu. Só ali eu a vi com mais atenção: Odete se parecia com Marianne, apesar dos olhos castanhos.
Em 1990, Tia Zuzu passou o carnaval no novo apartamento de minha mãe, em São Cristóvão, com um varandão debruçado sobre a Quinta da Boa Vista. Ela sempre detestou a Zona Sul. A viagem de Tia Zuzu se devia ao enredo da Escola de Samba Unidos de Vila Isabel, no desfile principal: Darbot, Epopéia de Luz. Ela não podia perder. O samba pouco acrescentava, mas valia pela homenagem. Volta e meia o estribilho me vem à cabeça: "França e Brasil, lado a lado, paz e amor, / Villegaignon, Santos Dumont, viva Darbot".
Aos poucos a falta de graça das histórias felizes foi contaminando minha vida. A fortuna tem seus inconvenientes. Um deles é eliminar a vontade de fazer coisas. Na pobreza, deseja-se viajar pelo mundo, conhecer lugares, visitar museus etc. Numa riqueza já no meio do trajeto, como a minha, não há mais nada que se possa realizar, não há museus a conhecer, não há comidas a saborear, não há mais mundo a viajar. Só para dar uma idéia, em 1992 a Bienal de São Paulo reservou um espaço para Darbot e eu não tive coragem de me deslocar até lá. Odete me substituiu.
Ultimamente descobri a música. É outra forma de riqueza. Tia Zuzu e minha mãe não dão importância a minhas filosofias e estão sempre me aconselhando a casar. Isto ainda vai acontecer. É uma das poucas opções que me restam. Todas as outras não passam de repetições enfadonhas, quase sempre representadas por convites com tudo pago: passagens de primeira classe, hotéis cinco estrelas e limusines na porta à minha disposição. Muito sabiamente, essas reflexões não fazem parte da biografia. Para mim, que já fui pobre, é assustador descobrir que quanto mais se enriquece mais se economiza. Dificilmente eu pago o prato que como. E pagar me dá prazer. Foi por isso que naquele sábado, em Nova York, despachei a limusine e fui a pé até o Lincoln Center. Senti uma imensa alegria quando retirei a entrada para o Parsifal, que eu havia pago por fax, com meu cartão de crédito. Pagar o táxi, na porta do Guggenheim, foi outra forma de felicidade que eu raramente experimento.
Mas um dos maiores prazeres de todos esses anos de prazeres foi entrar no Met às quinze para as seis, tomar um capuccino e ver, a poucos centímetros, a abstração darbotiana que eu havia conhecido de manhã: Lonie. Agora, só os cabelos, as pálpebras e os lábios permaneciam vermelhos. Um vestido de veludo negro, arrematado numa gola redonda, realçada por um fino debrum em seda branca, fazia de Lonie a única espectadora digna de assistir ao Parsifal. Aproximei-me e fui surpreendido por uma troca de alegrias: a satisfação que ela demonstrou ao me ver no teatro e a satisfação que eu demonstrei ao vê-la sozinha. Lonie fez tudo para me coroar o rei da noite. Para cúmulo dos cúmulos ela estava sentada na fila H e eu na F. Durante o espetáculo, com um simples girar da cabeça à esquerda eu conseguia atingi-la. Todas as vezes em que executei o gesto, seu olhar estava a postos, à espera do meu. Foi uma noite romântica em todos os sentidos e principalmente nos nossos. No primeiro intervalo, tentamos jantar no restaurante do Grand Tier e não conseguimos. A solução romântica foi comer um sanduíche de legumes no bar da platéia. Não sei se eu estava ficando louco, o que também é romântico, mas Lonie estava linda. Cada fio de cabelo, cada pupila, cada sarda ganhavam status de beleza, inteligência e sensualidade. No segundo intervalo, conversamos sobre o Parsifal. Em dado momento, eu fiz alguma observação sobre Wagner e ela abriu meus horizontes:
-- Eu acho que agora, mais de cem anos depois, pouco interessa o que Wagner foi ou deixou de ser. O que vale é o Parsifal.
Assisti ao último ato impregnado dessa idéia. Nos minutos finais, quando o jovem Parsifal descobre o Graal e caminha no palco lentamente, exibindo-o aos Cavaleiros de Montsalvat, a música de Wagner me reconstruiu, como se eu até ali fosse um universo em decomposição. Todas as minhas sensações passadas se ordenaram, em obediência àquela sensação presente, e fizeram do meu espírito uma estrutura viva, lógica e sensível a tudo que aconteceu e aconteceria comigo. Se minha vida atingira as proporções de um sonho, era necessário que eu não despertasse, que eu mantivesse minha verdade somente minha e impenetrável, a não ser que o invasor galgasse o mesmo estágio de perfeição. Enquanto a música de Wagner se lançava nos derradeiros compassos, eu revi o porão da Rua Escobar repleto de telas empoeiradas, revi meu pai, minha mãe e Tia Zuzu rindo de mim, revi a galeria da Tijuca, revi a austríaca Marianne Bogardus, revi as exposições de São Paulo, Bruxelas, Londres, Paris, Buenos Aires, Tel Aviv, Milão, Tóquio, Veneza, Roma, revi Odete nos computadores, revi Marianne morta, meu pai morto, e vi Lonie, feliz, de carne e osso, ao meu lado, aplaudindo o espetáculo. Senti vontade de beijá-la. Mas ainda não seria ali. Gostaria de ter ficado a noite toda conversando com ela sobre os mistérios sagrados do Parsifal, mas a limusine não deu trégua. De qualquer maneira, levei-a até a porta de casa: um edifício de apartamentos no Queens, num bairro de judeus conhecido como Rego Park. Lonie era uma espécie de pseudônimo de Sarah Gedalowitz. Seu irmão, Israel Gedalowitz, era rabino. Naquela noite, Lonie se referiu a ele pelo apelido familiar: Izzy. Em 1995, seríamos cunhados.
Os dias que antecederam a inauguração da Retrospectiva Darbot foram insuficientes para o entrelaçamento da teia amorosa que nos envolveu. Almoços originais, presentes imaginosos, pequenas fugas ao Central Park, apesar da neve, passeios de mãos dadas e, enfim, o beijo. Aconteceu justamente no dia da inauguração, à tarde, a dois quarteirões do Guggenheim. Depois, caminhamos silenciosos, degustando a felicidade. Quando olhei o museu, fui pego por outra armadilha romântica: a emoção que me inundou ao ver o gigantesco estandarte afixado no prédio. É todo confeccionado em marrom, começando numa tonalidade mais escura que se ilumina de baixo para cima. Mais ou menos na altura de uma suposta divisão áurea, uma réplica da assinatura de Darbot em amarelo, o célebre quadrado formado pelo DAR sobre o BOT, domina o terço esquerdo do estandarte. A referência à Abstração 49 é evidente. E um pouco abaixo, em letras impressas num verde diáfano e em inglês, as palavras iniciais do pensamento de Darbot, rabiscado na contracapa do missal: "Eles dizem que eu pinto o nada..."
Quando percebeu minha emoção, Lonie me garantiu que o estandarte já estava ali há três dias. Mas eu só o vi naquele momento. Confesso que tive de me segurar para não fazer vergonha.
Assim que me avistou, Philip D'Amico partiu em minha direção, pegou-me pelo braço e me arrastou para o bar. Ele tinha dado ordem de não deixarem ninguém entrar, além de nós três. Logo que nos sentamos, D'Amico pediu um chá de maçã. A temperatura da calefação lembrava o verão carioca. Tirei o sobretudo e joguei-o de qualquer maneira na cadeira mais próxima. Lonie pegou-o com uma delicadeza de namorada ginasiana e pendurou-o num dos ganchos que havia na parede, com essa finalidade. As olheiras de D'Amico eram um prêmio a seus esforços em prol da retrospectiva. Quando viu a fumaça desprender-se da xícara, bebeu um gole de chá e suspirou. Depois, puxou um cigarro Dunnhill e acendeu-o. O cheiro do fumo era o aviso de que Marianne devia estar por perto. Com o intuito de aliviar a tensão, eu soltei uma bobagem qualquer:
-- Você deve estar dormindo em pé.
Só aí ele fixou os olhos em mim:
-- No fim de quinze anos, a gente se acostuma. Segunda-feira eu já começo a tratar da próxima exposição. Isso aqui não pára.
-- E qual vai ser a próxima?
D'Amico comprimiu os lábios e os empurrou para baixo juntamente com o queixo. A seguir, exalou o indefectível well, que não quer dizer nada e significa tudo, e me contou que a mostra seguinte seria uma exceção dentro dos padrões do Guggenheim. Há três ou quatro anos, tinha aparecido em Nova York um dos livros mais originais dos últimos tempos: uma enciclopédia de coisas que nunca existiram. A próxima exposição apresentaria obras de arte que representassem essas coisas inexistentes. Diante de minha incompreensão, D'Amico passou a enumerar diversos exemplos: Alcyone, filha de Éolo, senhor dos ventos; Kor, a cidade maldita; as Harpias; Grendel, o monstro de um lago dinamarquês; o retrato de Dorian Gray; o Minotauro; o Basilisco; a Távola Redonda; o deus Wotan; Tristão e Isolda; o Homem Verde, espírito maligno da Inglaterra; o Inferno; a Rainha Mab, citada por Shakespeare; o gnomo Barbegazi; os licantropos; o gigante Gogmagog etc. Tomado por uma vontade que também nunca existiu, acrescentei com certa dose de cinismo:
-- E Darbot.
O riso repentino de D'Amico e de Lonie me encorajou e eu continuei:
-- É isso mesmo. Eu acho que vocês vão inaugurar daqui a pouco a primeira exposição de coisas que nunca existiram. Darbot é uma coisa que nunca existiu.
Lonie apertou os olhos azuis e entreabriu os lábios, mas eu fui mais rápido:
-- Você se lembra do Parsifal? O que que adianta ficarmos discutindo a respeito do que Wagner foi ou deixou de ser? Está lembrada? Com Darbot é a mesmíssima coisa.
Lonie pegou minha mão e a inspiração atingiu a estratosfera:
-- Um dia, quando eu estava com onze anos, descobri centenas de telas empoeiradas no porão de minha Tia Zuzu. Sabem de que tipo eram todas elas, sem exceção? Marinhas, marinhas e mais marinhas. Os mares, os portos e os barcos, na maioria veleiros, só apareciam na parte de baixo das telas, numa faixa horizontal. O resto eram nuvens, sol poente, sol nascente, cores. Os elementos figurativos eram retratados a pincel. Os céus, não. Para representar os céus o pintor, cuja assinatura, DARBOT, só aparecia num dos cantos superiores em forma quadrangular, usava espátulas. Examinei duas telas, dez, vinte, cinqüenta: marinhas. Na época em que foram pintadas, havia em São Cristóvão, a dois quilômetros do sobrado de Tia Zuzu, uma praia imunda, cheia de barcos de pesca. Alguma coisa me dizia que aqueles quadros tinham sido pintados lá. Mas outra coisa, intangível, me segredava que em todos eles havia um erro a ser corrigido. Qual? Foram necessários sete anos para que o acaso me mostrasse a falha de Darbot. Uma tarde, quando eu já estava na Escola Nacional de Belas Artes, ao examinar uma das telas dei de cara com outra, encostada na parede, com a parte inferior, a faixa dos mares, portos e barcos, encoberta por um travessão de madeira. Por uma coincidência definitiva, um raio do sol poente atingiu o quadro. As nuvens, a luz dos astros e todos esses efeitos puramente objetivos desapareceram, só dando espaço à intensa luminosidade sugerida pela pintura, sem a parte de baixo, é claro. O erro era a faixa inferior. Foi o momento mais secreto e mais emocionante de toda a existência. Procurei um alicate, um serrote e uma tesoura, desprendi a tela e cortei uma fatia de mais ou menos quinze centímetros, o necessário para dar sumiço ao mar, ao porto e aos barcos. Depois serrei o caixilho já meio apodrecido e refiz o quadro. A última luz da tarde me revelou a grande maravilha: o Darbot sem mar, sem porto e sem barcos era uma obra-prima. A verdade estética de Jean-Baptiste Darbot começou com aquela tesoura. Durante muito tempo eu me perguntei se aquilo não passava de uma falsificação criminosa. Meu pai e minha mãe achavam que sim. Principalmente depois da venda explosiva a Tarik Benzayad. Minha força e sobretudo minha confiança brotavam de Tia Zuzu. Foi ela que me deu ânimo para ir em frente. Tia Zuzu tinha certeza de que minhas tesouradas eram apenas correções necessárias. Uma vez, ela me mostrou um artigo sobre contrafações de pintura, no qual se dizia que raras eram as obras que nunca foram retocadas depois de dez, vinte anos. E como sempre, ela sentenciava:
-- Até a Mona Lisa foi retocada. Quando você recorta e parte de baixo de uma dessas telas, você só está dando um retoquezinho, e pronto.
Talvez meu único pecado fosse a invenção do pensamento, escrito a lápis na contracapa do missal. Mas vocês devem reconhecer que foi um toque de gênio. Nesse ponto, encerrei o desabafo com uma observação absolutamente dispensável:
-- Foi assim que, de retoque em retoque, eu construí a lenda de Darbot.
Lonie continuava a me encarar num misto de assombro e ternura. Mas Philip D'Amico repuxou um dos cantos da boca:
-- Nunca pensei que você fosse tão espirituoso. Se eu soubesse...
E não foi além porque a porta do bar se abriu bruscamente, dando passagem a um funcionário em alto grau de excitação:
-- O pessoal da imprensa chegou.
D'Amico deu um salto da cadeira e olhou o relógio: eram seis e quarenta e cinco. Ajeitou o nó da gravata, passou a mão pelos cabelos e se virou para mim:
-- Vamos lá. Se eles derem tempo suficiente pra você falar, conta essa história de sua tia, como é, mesmo? Zuzu?
E saiu às gargalhadas. Lonie e eu fomos atrás dele. O saguão estava intransitável: câmeras, flashes, repórteres, carregadores, pessoas mal vestidas, garçons com bandejas vazias, mulheres com casacos de pele, homens de sobretudo com golas de arminho, intelectuais de cabeça raspada e brincos de platina, gays de todas as raças e facções, ruídos, risadas, gritos, campainhas e a minha estupefação diante dos efeitos de Darbot. No meio de tudo, restava Lonie. E no meio de tudo, ela me levou a um canto isolado, puxou minha orelha para bem próximo de sua boca e sentenciou, como Tia Zuzu:
-- Agora eu sei que Darbot é igual ao Parsifal.
Naquele segundo, eu tive certeza de que me casaria com ela nos próximos meses.
Para coroar as surpresas da noite, em nenhum momento os repórteres me procuraram. O negócio deles era com Philip D'Amico e com Darbot. De repente, já no primeiro andar, eu vi o auto-retrato, preso numa vitrine idêntica à do Museu Darbot. Cheguei bem perto para poder admirar todos os traços daquele rosto iluminado. Sobre as imagens do vidro, eu tornei a ver Tia Zuzu naquela véspera do Natal de 1945. Ela estava atarefada na eterna cozinha, às voltas com uma frigideira de pastéis. Quando eu lhe perguntei quem era Darbot, ela não se deu ao trabalho de olhar minha curiosidade:
-- O Darbot daquelas maluquices do porão? Aquilo era um caboclinho muito do serelepe, que seu avô empregou na farmácia.
E, refletida no cristal da vitrine, Tia Zuzu me contou pela segunda vez, quarenta e nove anos depois, a história do rapaz que chegou de Salvador, ou de Arles, tanto faz, para gastar o pouco tempo de vida que lhe restava, pintando quatrocentas e quarenta e nove marinhas. A paixão pela França fez o caboclinho serelepe inventar aquela assinatura, DAR sobre BOT, um anagrama afrancesado para substituir o nome de batismo: Darcy Botelho. Talvez ele tivesse a mesma sabedoria de Marianne Bogardus e pensasse: carioca não acredita em pintor baiano.
Aos poucos, a imagem de Tia Zuzu se desfez e eu fiquei só com o auto-retrato de Darbot. Na verdade, o rosto de meu avô, numa foto da juventude, que o caboclinho Darbot tentara reproduzir, como agradecimento ao homem que lhe dera casa e comida em troca de nada. Ou de tudo, sabe-se lá?
Minha memória se recuperou do passado quando Lonie me mostrou um sujeito gordo, com dois metros de altura: Fabian Winograd, crítico de arte do New York Times. Fabian parecia hipnotizado por tantos Darbots. Passou por mim e não me deu a mínima.
Até a retrospectiva do Guggenheim, eu tinha a pretensão de achar que eu era Darbot. Dali em diante, senti que eu era apenas eu e que, para o futuro, Darbot era Darbot.


[1] Ladislau de Monchique é um dos personagens marcantes do romance Bolero, de Victor Giudice. Pintor desconhecido, cria a Escola Inacabadista, na qual todas as obras devem ser incompletas.


© Renata Judice

Victor Giudice (1934-1997) nasceu em Niterói, no Estado do Rio de Janeiro. Aos cinco anos de idade mudou-se para São Cristóvão &endash; transformado, segundo a crítica, em seu "grande sertão ficcional" &endash; , onde viveu mais da metade de sua vida. Foi professor, jornalista, músico, ensaísta e crítico. A partir de 1968, intensificou suas atividades como escritor, tendo publicado seis livros: Necrológio (contos, Editora O Cruzeiro, 1972), Os banheiros (contos, Editora Codecri,1979), Bolero (romance, Editora Rocco, 1985), Salvador janta no Lamas (contos, Editora José Olympio, 1989), O museu Darbot e outros mistérios (contos, Editora Leviatã,1994) e O sétimo punhal (romance, Editora José Olympio, 1996). Salvador janta no Lamas ganhou o Prêmio "Ficção 89", da Associação Paulista de Críticos de Arte. O museu Darbot e outros mistérios foi agraciado com a maior distinção literária do país, o Prêmio Jabuti, e foi lançado no Salão do Livro de Paris em 1998 (Le Musée Darbot et autres mystères, Editions Eulina Carvalho).

Para o teatro, escreveu Baile das sete máscaras, inédito, e o monólogo Ária de serviço, encenado pela atriz Bete Mendes, no Centro Cultural Banco do Brasil, em 1991. Compôs e executou ao vivo a trilha sonora da peça Prometeus, do Grupo Mergulho no Trágico.

Suas atividades como professor incluem, além de oficinas de criação literária, cursos de Introdução à Ópera, Wagner e Música Sinfônica, ministrados no Centro Cultural Banco do Brasil e em outras instituições. Participou das Rodas de Leitura, no CCBB, e na Casa da Leitura e viajou pelo país como conferencista.

Vários de seus contos foram publicados nos Estados Unidos, Argentina, México, Portugal, Alemanha, Hungria, Polônia, Bulgária, Tchecoslováquia. Uma de suas narrativas mais populares, O arquivo, foi o conto brasileiro mais publicado no exterior. Outro conto, Carta a Estocolmo, foi considerado, nos Estados Unidos, um dos quinze melhores trabalhos de ficção científica de 1983 e consta da antologia Antaeus (The Ecco Press, Nova York, 1983).

Publicou ensaios e resenhas no Jornal do Brasil, O Globo, Folha de São Paulo, O Estado de São Paulo, Suplemento Literário do Minas Gerais etc. Durante três anos assinou a coluna Intervalo, especializada em música erudita, no Jornal do Brasil, tendo sido esta sua última atividade.

A editora José Olympio planeja a publicação de uma coleção que reunirá todos os seus contos. Do primeiro volume, programado para o primeiro trimestre de 1999, constarão O museu Darbot e outros mistérios e o romance inédito e inacabado Do catálogo de flores.

© Eneida Santos


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