Púchkin: o bicentenário do gênio

Paulo Bezerra


Autor que levou à literatura a modernização que o czar Pedro já legara a outros campos da Rússia, o escritor imprimiu à arte russa questões filosóficas e experiências estéticas nunca antes alcançadas, abrindo as janelas que iluminaram obras de autores como Dostoiévski e Tolstói. A prosa e a poesia do escritor nascido há 200 anos podem ser apreciadas em A Dama de Espadas, lançado pela Editora 34

Dizia Sören Kierkgaard que o gênio é a combinação do acaso e da necessidade. Quis o acaso que o embaixador da Rússia comprasse um menino africano em Constantinopla e o desse de presente a Pedro, o Grande. Chamava-se Abraam. O czar o adotou como seu protegido, lhe deu seu patronímico Pietróvitch, mandou-o estudar em Paris, de onde ele voltou como o primeiro engenheiro da Rússia, casou-o com uma descendente de duas linhagens da antiga nobreza russa. Esse negro, que chegou a general e morreu em 1881, aos 83-84 anos, veio a ser o trisavô de Alieksandr S. Púchkin. Pedro realizou importantes transformações econômicas, tecnológicas e sociais na Rússia, mas era necessário fazê-las chegar ao campo das artes, e Púchkin o conseguiu com sua genialidade. Quis o acaso que ele tivesse sangue africano nas veias, quis a necessidade que fundasse a moderna literatura russa, colocando-a no nível da melhor literatura européiai.
Nascido a 6 de junho de 1799, Púchkin testemunhou as guerras napoleônicas, a vitória russa sobre Napoleão em 1812, o período de intensa luta das monarquias contra as forças democráticas erevolucionárias despertadas pela Revolução Francesa e pela luta dos povos contra Napoleão, a crise do regime de feudo-escravismo na Rússia,

PÚCHKIN: seu narrador tem a fluidez da música bem articulada, inebria o leitor com seus andantes ora lentos, ora moderados, ora rápidos

o surgimento de sociedades secretas da facção avançada da nobreza, cuja atividade culminou no levante de 14 de dezembro de 1825 contra o czar, conhecido como decabrismo, do qual participaram vários amigos do poeta, muitos dos quais foram executados. Muito sensível às vicissitudes da história e da vida, o poeta foi captando as suas variações e tons que, com o passar dos anos, assumiram nele formas definidas nas quais se fundiram numa síntese os interesses do historiador e do artista sensível à política. E ele receberia um impulso fundamental em 1818 com a publicação do primeiro dos oito volumes da História do Estado Russo, de Nikolai Karamzin (1766-1826), cujos primeiros ecos já se fazem presentes em Ruslam e Liudmila (1820), poema fortemente marcado pela rejeição aos padrões do Classicismo. Influenciado pela ideologia do decabrismo, Púchkin se volta para o século 18 russo, principalmente para os tempos de Pedro, o Grande, e Catarina II, pano de fundo de obras fundamentais como O Negro de Pedro, o Grande (1827), o poema épico Poltava (1828) e seu romance histórico A Filha do Capitão (1836).

Poltava é um relato da vitória de Pedro contra Carlos XII (1682-1718) da Suécia na batalha de Poltava em 1709. Aqui o autor supera o pseudo-historicismo romântico, constrói sua própria concepção de poema histórico como modalidade especial de gênero, distante da epopéia clássica e do individualismo de Byron, traça analogias com sua atualidade e tira conclusões políticas que o levam a introduzir mudanças fundamentais no campo da estética. Afasta-se da epopéia clássica voltada exclusivamente para o passado fechado e cria uma epopéia em que a história do século 18 se cruza e dialoga com a atualidade do poeta, as imagens elevadas de Pedro e seus correligionários se presentificam numa grande imagem-corpo atualizada da Rússia, em que predomina uma mensagem de progresso, de amor à pátria, de retomada daquela Rússia ilustrada, reformada por Pedro. Com Poltava, Púchkin recupera o sentido da história russa numa perspectiva humanista e promove a experiência estética a um nível até então desconhecido.

No dia 7 de dezembro de 1825, uma semana antes do levante decabrista do dia 14, Púchkin conclui a tragédia Borís Godunóv, que focaliza o curto reinado de Borís e seu fim, e a conclusão coincide com o fim do reinado de Alexandre I, que morre no dia 19 de novembro. Entre Alexandre I e Godunóv há em comum um assassinato: Borís sobe ao trono depois de matar Dmitri, filho e sucessor do recém-falecido Fiódor I e neto de Ivan, o Terrível; Alexandre sobe ao trono depois de mandar matar o pai Pável I. Mas as semelhanças terminam aí. Alexandre convive tranqüilamente na corte com os comparsas do assassinato do pai, Godunóv carrega o peso da culpa pelo resto da vida. Além disso, é um czar que pretende governar para todos, acima das classes, o oposto de Alexandre e seu sucessor. Em Borís Godunóv há outra questão inquietante para a corte: a natureza da rebelião popular, a verdade do povo, que é mais forte do que as inverdades do poder do soberano e, mais dia, menos dia, acaba punindo esse poder. Percebendo o jogo de alegorias que povoa a tragédia, em 1826 Nicolau I, sucessor de Alexandre, proíbe sua publicação e propõe que Púchkin a transforme em um romance histórico ao estilo de Walter Scott. Borís Godunóv é uma revolução na dramaturgia. Inspirado em Shakespeare, a quem chama de "o nosso pai", Púchkin baseia sua obra dramática em toda a rica experiência da dramaturgia universal, que ele reformulou e revestiu de uma constituição formal de obras genuinamente russas, obtendo uma síntese nunca atingida na dramaturgia. Aliás, ele mesmo chama de "cenas dramáticas" às suas "pequenas tragédias", cuja originalidade está na síntese filosófica e psicológica de questões fundamentais da existência humana como o desafio ousado do homem ao céu, os limites éticos do arbítrio humano, a avareza e a pobreza, o motivo do amor em oposição à morte, o desafio ao destino, a consciência da inferioridade transbordando no crime, tudo isso personificado em caracteres marcados por uma paixão avassaladora e experimentados em situações excepcionais que põem à prova a força ou a impotência das paixões que dominam o ser humano. A primeira peça do ciclo "cenas dramáticas", O Cavaleiro Avaro, tomada de um motivo inglês com colorido shakespeareano, projeta o tema do dinheiro e da avareza a um nível trágico que transborda na loucura. O ouro deixa de ser posse e se torna possuidor, inaugurando na literatura russa o tema da alienação. Mozart e Salieri, peça de dois atos, concentra o conflito em dois argumentos determinantes: arte como valor da vida e arte como trampolim para a fama. E por trás disso um tema filosófico: a incompatibilidade entre o gênio e o crime. Todas as outras peças desse ciclo são apropriações de temas estrangeiros. O Cavaleiro de Pedra é uma recriação da ópera de Mozart Don Juan, que Púchkin transforma em poeta do amor: ele ama Laura e até tem ciúmes. Banquete em Tempo de Peste é uma recriação de Púchkin a partir do poema dramático The City of the Plague, do escritor inglês de John Wilson (1785-1854). Na peça a morte é uma presença constante, uma cidade está tomada pela peste, mas no meio da rua uma grande mesa posta reúne em banquete um grande número de pessoas que desafiam a peste e cantam: "existe êxtase no combate." Todos os presentes se concentram nesse lema e se irmanam, e nessa irmandade está a garantia da sua grandeza, da sua perenidade. ¬Ângelo (1834), última peça desse ciclo, é um poema dramático que Púchkin escreveu a partir de Medida por Medida, de Shakespeare, combinando o enredo com a tradição da novela filosófica iluminista, centrado na crítica aos preconceitos sociais e às instituições de poder a partir da razão iluminista.

Mas o trágico em Púchkin não está só na dramaturgia. No poema "O cavaleiro de bronze", profundamente simbólico, o herói, pobre, procura ganhar com seu trabalho a independência e a honra. Mas o rio Nievá varre sua casa numa terrível inundação, matando sua noiva, seu mundo desmorona e a razão se apaga. Ele se rebela, em sua imaginação a estátua do cavaleiro de bronze - Pedro, o Grande - o persegue, ele desafia o ídolo como o rei Lear e acaba morrendo.

Púchkin se constituiu como poeta combatendo os resquícios do Classicismo e o Romantismo chorão. Sua lírica é de variação infinita, e queremos destacar um de seus aspectos. Fazendo das lembranças amargas um dos temas centrais de sua lira, mas avesso a qualquer auto-acusação ou autolatria, não evoca impressões vivenciadas como motivo para se queixar da vida breve, mas como fonte que alimenta a esperança de felicidade e faz da lembrança evocada um agradecimento à vida mesclado da tristeza das perdas. E reconhece em seu sentimento tamanha autenticidade que deseja que a amada encontre em outro o mesmo amor que ele lhe dedicou. É o que revela o poema "Eu te Amei", que traduzimos assim:

Eu te amei: o amor inda talvez.
Não esteja todo extinto em meu ser;
Oxalá não te aflija outra vez;
Não quero a ti com nada entristecer.
Eu te amei calado, em desalento,
Com timidez e ciúme sem fim;
Eu te amei tão sincera, e ternamente,
Que queira Deus outro te ame assim.

É a imagem do amor-chama que Púchkin, grande amador, espera preservar acesa. Por outro lado, surpreende esse "te amei calado, em desalento", "com timidez", justo nele, que fazia do sentimento um canto que logo era enviado ao destino. Mas o amor ficou tatuado no coração do poeta e a lembrança dele não oprime, mas alivia. Aliás, no poema "os montes da Geórgia", ele cria a expressão inusitada "tristeza serena", iluminada pela presença plenificante do amor que já se foi mas ainda assim o deixa leve porque amar é a condição superior de um coração que "deixar de amar não pode".

Púchkin formula seu próprio credo para a prosa: precisão e brevidade. A prosa requer idéias e mais idéias, sem as quais as expressões mais brilhantes não servem para nada. Com a mesma simplicidade que caracteriza a sua poesia, escreve seu romance em versos Ievguiêni Oniéguin, obra-prima que abriu caminhos depois trilhados por Liérmontov, Turguiêniev, Dostoiévski, Tolstói e outros.

Parte desta prosa de Púchkin acaba de ser publicados em A Dama de Espadas (34, 288 págs., R$ 27,00), uma reedição de antiga tradução direta do russo, de Bóris Schnaiderman, que reviu os textos e nos brindou com uma tradução primorosa e um prefácio esclarecedor. Fazem parte da edição, também, alguns dos mais belos poemas do escritor, traduzidos por Nelson Asher. Composto de sete histórias, o livro começa com O Negro de Pedro, o Grande, romance histórico interrompido em 1827. O autor faz de Pedro a personagem central, em torno da qual giram o enredo e as personagens principais e de quem dependem os destinos da Rússia e de todos os protagonistas. Recria os últimos dias do império de Pedro, mostrando a Rússia como uma gigantesca oficina, Petersburgo como um imenso canteiro de obras, o contraste entre os velhos boiardos, anacrônicos e inimigos ocultos, mas já neutralizados de Pedro e de suas reformas, os seguidores das transformações do imperador, entre eles o negro. Sobre esse pano de fundo desenvolve-se a linha básica do enredo e aparecem os conflitos, primeiro nas relações amorosas de Ibraim (o negro de Pedro) com a condessa de D. em Paris, depois no seu noivado com Natália Rjévskaia. O romance é interrompido bruscamente, e a crítica especializada atribui isto a dois fatores: sem acesso aos arquivos da época, Púchkin corria o risco de cair no tipo de escrita histórica do romance de Walter Scott; continuar o romance biográfico do seu ancestral depois da morte de Pedro, em 1725, significava entrar no período dos fracassos do negro na vida funcional, motivados por intrigas e golpes palacianos. Além disso, teria de revolver a lenda da infelicidade conjugal do seu herói, razão por que o romance cessa quando reaparece Valerian, futuro rival e causa dessa infelicidade. Dubrovski é ambientada na aldeia feudal russa, combina um ambiente meio exótico com o elemento da aventura dos heróis vingadores do folclore e da aventura amorosa, tão a gosto dos românticos, mas mostra uma Rússia em que o direito é atributo exclusivo de quem tem poder e poder é sinônimo de arbítrio, um país que ignora os indícios mais elementares da civilização. Púchkin mergulha fundo na psicologia, na condição e no destino da mulher, tema que, meio século depois, Tolstói amplia, aprofunda e leva a um final trágico em Ana Kariénina.

Kirdjali é uma história encantadora de heroísmo romântico do tipo de bandidos mais tarde estudados por E. Hobsbawm em livro homônimo. Nele transparecem a história das relações obscuras entre a Rússia e a Turquia e o papel funesto dos turcos em sua eterna política de dominação dos seus vizinhos de fronteira. Sobre esse quadro projeta-se a imagem de Kirdjali, que reúne características da vólnosti (liberdade e ousadia ilimitadas) russa tão cara a Púchkin, dos heróis populares do folclore e uma antecipação da futura narrativa rocambolesca. Em A Dama de Espadas, obra-prima em todos os sentidos, o tema da aventura se articula com o fantástico, e o efeito psicológico do dinheiro no comportamento das personagens, bem ao gosto de Shakespeare, se completa com a ousadia da derrubada das fronteiras para os atos humanos, marca do Fausto, de Goethe. Herman, a personagem central, é um tipo romântico, mas tem perfil de Napoleão e alma de Mefistófeles. Completa-se o clima do fantástico com a obsessão da personagem pelo jogo de cartas, meio de penetração das forças das trevas na vida do homem, tema caro a Hoffmann. Nessa novela, Púchkin sintetiza o fundamento do fantástico: a articulação dos planos do "real" e do "irreal" é tão compacta e sutil que, ao longo de toda a leitura, o leitor se mantém na fronteira entre os dois. O plano "irreal" se revela por meio das cartas do baralho como uma interferência das forças das trevas nos destinos de Herman, numa espécie de pacto com o demônio que acaba por levá-lo à loucura e à morte. Nesse entrecruzamento dos dois planos, que o leitor não percebe, Dostoiévski viu o apogeu da arte do fantástico.

Nessa mesma linha do fantástico está O Fazedor de Caixões. Esta obra e as seguintes fazem parte do ciclo que o autor denominou "Novelas de Biélkin". O fazedor de caixões convida os seus clientes e benfeitores, isto é, os mortos para quem ele fez caixões, a uma festa em sua casa, e o convite é aceito. Articulado com outros episódios, esse "acontecimento" desencadeia o clima propriamente fantástico da novela. Em O Tiro, Púchkin aprofunda a sua linha de investigação psicológica dos tipos humanos. Na mesma linha do destemor de Kirdjali, mas com características psicológicas diferentes, Sílvio, personagem dessa novela, se caracteriza por um demonismo de estilo byroniano e um profundo desprezo a alguns tipos humanos e à própria vida. O Chefe da Estação ocupa um lugar à parte entre as narrativas do ciclo de Biélkin. Concisa, sem heroísmo nem fantástico, a novela apresenta um tratamento trágico absolutamente original do tema bíblico do filho pródigo. A beleza, que ocupa lugar de destaque em toda a obra de Púchkin, aqui é um Janos bifronte que, ao fazer a felicidade da filha, converte-se na tragédia do pai. E tudo contado por um narrador solidário, dotado daquele dom de narrar com que a natureza só brinda pessoas muito especiais: os poetas. Do ciclo de Biélkin Púchkin parte para uma experiência mais abrangente, que redunda no romance histórico A Filha do Capitão, publicado em 1836, um ano antes de sua morte.

O narrador de Púchkin tem a fluidez da música bem articulada, inebria o leitor com seus andantes ora lentos, ora moderados, ora rápidos, fazendo-o perder o fôlego aqui (Dubróvski), sentir arrepios ali (A Dama de Espadas) ou aperto no coração (O Chefe da Estação), e tudo isso graças ao primor da tradução, que conseguiu pegar o tom e o ritmo da melodia de Púchkin e fazer o leitor brasileiro não se dar conta de que está lendo um texto traduzido.

Púchkin foi assassinado aos 37 anos em um duelo arquitetado por Nicolau I e sua claque.


Paulo Bezerra é ex-professor de Literatura Brasileira na UFF-Niterói, Livre-docente em Literatura Russa pela USP, tradutor e ensaísta.


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