A vida das histórias

Helena Barroso

 

Querença, o mais recente livro de Fernando Correia da Silva, é a história de um contador de histórias, uma 'espécie em vias de extinção', como refere aliás uma das personagens da obra. Dividido em duas seqüências de cinco dias consecutivos, que vão de segunda a sexta-feira de Setembro de 1992, o romance articula-se na forma de uma longa entrevista feita por uma jovem jornalista a Júlio Vera, poeta e escritor inquietado por estranhas premonições, enunciadas em alguns dos seus poemas.

É através de uma história, composta por várias narrativas, que Júlio Vera chega ao leitor: o jornalista Rui de Brito é quem primeiro relata o seu acesso ao texto de Guida Fontes, a jornalista entretanto falecida; em seguida, é o próprio texto deste novo narrador que põe em cena diversas personagens que apresentarão, por sua vez, o poeta. Na eminência de entrar em cena, as três pancadas que Júlio Vera pede à jornalista para bater à sua porta parecem vir confirmar todo o aparato teatral com que foi preparada esta 'aparição'.

De início, parece pacífico e estável o estatuto de cada um destes intervenientes na narrativa : a Guida Fontes cabe o estatuto de narrador ou de relator da entrevista, a Júlio Vera o de personagem narrada. Porém, o próprio objectivo da entrevista levada a cabo para pôr em destaque a personagem entrevistada, a propensão quase compulsiva de Júlio Vera para contar histórias, a sedução que estas exercem sobre a sua ouvinte, os desafios amorosos a que é submetida, invertem de imediato esta situação inicial. A personagem ganha progressivamente autonomia ao ponto de fazer dela depender o seu narrador : todas as reacções de Guida Fontes, todas as suas réplicas adquirem um estatuto ficcional em função do que o poeta faz, diz e conta, sendo a esse estatuto ficcional, muito mais do que ao seu estatuto 'real' de jornalista que a personagem deve, paradoxalmente, a sua existência:

O Júlio entregara-me o papel principal das suas ficções. Até me dava gozo, o desempenho, era apenas um papel. Depois entusiasmou-se e já não consentia que eu saísse das falas programadas. Mentir-lhe seria fugir à violação, liberdade. O meu desespero é que já eu sangrava, só de pensar em arrancar a máscara que me fora imposta. (p.127).

Esta máscara é tanto mais difícil de eliminar quanto é duplo o papel ficcional que Guida Fontes assume na narrativa. Com efeito, devido à sua semelhança física com uma outra personagem - Raquel, o grande amor da vida do poeta -, a jornalista torna-se assim o modelo referencial de si própria, o desdobramento de uma personagem cujos gestos e comportamento imita à sua própria revelia, ficando assim à mercê do seu narrador que chega a prenunciar-lhe a morte. A ficção, depois de se ter sobreposto à 'realidade', acaba por anulá-la : a dupla personagem Guida Fontes/Raquel interveniente nas ficções de Júlio Vera aniquila a personagem 'real' ou seja a jornalista cujo papel consiste à partida em entrevistar o poeta.

Todo o romance aliás se articula segundo este eixo de 'realidade' e ficção. Com efeito, uma vez aceite o pedido de entrevista feito por Guida Fontes ao poeta Júlio Vera, este vai progressivamente construindo dentro do seu discurso duas tramas narrativas que à partida parecem distintas e autónomas, mas que rapidamente se confundem. Uma delas, a história de Heitor Bento, o Cata-Vento, desencadeada por uma estrutura morfológica que imita de forma abreviada o quadro de funções proppiano (1º - O herói sai de casa ; 2º - O herói infringe uma regra ; 3º - O herói é denunciado; etc.), é um misto de conto, de romance cortês e de mito clássico :

Material não falta, desde Homero à Távola Redonda com Galaaz e Lancelote, passando por Rama, Rómulo, Teseu, Siegfried, Ilia Mourometz, El Cid e tantos outros. Tenho a prosa ágil, dou a cor local, e o romance está pronto. (p. 27).

Destinada a provar quanto é fácil a construção de romances com a ajuda das novas tecnologias - nomeadamente o computador -, poder-se-ia designar esta narrativa como a ficção de uma ficção, ou seja, um texto destinado a imitar, de forma paródica, a literatura. Verificamos porém que este 'romance', retomado regularmente ao longo de todo o texto principal, tem inúmeras semelhanças com o relato de cariz autobiográfico que o poeta faz de si próprio a Guida Fontes. Entre o texto que imita a vida (´ Tinha, e tem, uma capacidade ficcional fascinante. Contava as suas efabulações como se fossem histórias realmente vividas', p.37) e o texto que imita a ficção, a saber a história do Cata-Vento, o herói cuja profissão consiste precisamente em ser herói, encontramos de facto elementos idênticos que chegam a confundir a jornalista :

Interrompi :
Mas Júlio, isso é do outro romance.
-Qual romance ?
-Do outro das vidas paralelas
[...] Mas n“o È de nenhum romance. É da minha infância [...
-Pronto, já está tudo cruzado e confundido. (pp.132-133)

Tanto num como noutro texto, o herói ou personagem principal tem dificuldade em dar um rumo certo à sua vida. Ambos são levados pela força das circunstâncias a tomar decisões bruscas que alteram por completo a sua existência : o herói Heitor tem de fugir à ira do pai de uma 'donzela' que seduzira, Júlio Vera parte bruscamente para o Brasil a fim de reencontrar Raquel por quem se apaixonara em Varsóvia; ambos vivem uma iniciação sexual que lhes traz penosas consequências ; em ambas as narrativas, ainda que de forma radicalmente diferente - numa em tom leve e despreocupado, noutra num tom bastante mais grave e dramático -, é descrita a história de um amor antigo e posteriormente reencontrado sob os traços de outra personagem.

A coabitação destes dois textos dentro de um mesmo discurso não é pacífica e tem várias implicações.

Em primeiro lugar demonstra de forma irónica quanto é fácil utilizar o mesmo material de referência com resultados opostos, na medida em que foi possível criar com ele um texto autobiográfico e simultaneamente uma alegoria, no sentido que Paul de Man[1] dá a esta figura, ou seja, um texto que remete para outro texto que lhe antecede, neste caso preciso, todas as heranças literárias atrás referidas.

Porém, num segundo ponto, apesar de o relato da vida de Júlio Vera acabar por convencer a jornalista no que respeita a sua veracidade (´- Estamos a ver que a analista, para levar a bom termo a sua análise, não hesita em classificar como real aquela infância que antes rotulara de fictícia.' p.135), o facto de ao lado da narrativa autobiográfica se encontrar a história do Cata-Vento, é como se esta contaminasse a outra com a sua permanente fantasia e irrealidade, apontando para a constante possibilidade de tudo poder ser transformado em ficção, até o mais convincente relato de vida.

O terceiro ponto a referir no que respeita a co-existência destes dois textos no romance de Fernando Correia da Silva prende-se com um elemento contido na autobiografia de Júlio Vera. Neste relato, onde o poeta descreve a sua infância e as pessoas que a marcaram, as suas experiências amorosas, os seus amigos e companheiros de juventude, as suas premonições e por fim a história do seu grande amor terminada em tragédia, encontra-se a explicação de uma experiência perturbadora :

Com o indicador da mão direita esboçou no ar o tronco e os dois braços divergentes de um Y. E só então entendi o que ele queria dizer com Grande Y.

-Tu segues a tua vida, o teu caminho. Mais à frente ele divide-se em dois braços, dois ramais. Um para a direita, outro para a esquerda. Se queres avançar, e certamente queres, tens que te decidir : ou vais pela esquerda, ou vais pela direita. Voltar atrás não podes, a decisão é irreversível. [...] p.35

- O busílis é que eu me lembro de ter escolhido, ao mesmo tempo Isto e Aquilo, o que não deve acontecer. Mas aconteceu. [...]p.36

-Tenho aqui no peito um motorzinho movido a corrente alterna, ora estou, ora não estou, quando dou por mim reparo que intermitência. Várias bifurcações se me deparam pela vida fora, quatro, e estou nas vésperas da 5ª. E nas quatro, ambos os caminhos eu segui simultaneamente com resultados diversos. [...] p.36

A estas explicações corresponde a narração de dois desses momentos em que foram vividas ambas as alternativas acima mencionadas. A impossibilidade de escolha vivencial espelha-se por conseguinte numa impossibilidade narrativa idêntica, impedindo o narrador de optar por uma única versão da história. Na medida em que contar é precisamente escolher, este narrador vê-se por isso obrigado a cumprir uma tarefa contrária à que lhe é normalmente pedida, ou seja , desdobrar a narrativa por todas as experiências vividas.

Ora, este desdobramento de possibilidades é precisamente aquele que o autor Júlio Vera introduziu no seu discurso com Guida Fontes ao contar-lhe simultaneamente a sua vida e o romance do Cata-Vento, como se o autor, no momento de narrar a sua história fosse incapaz de se decidir por um ou por outro género narrativo - a autobiografia ou o romance - e tivesse optado, como o seu narrador, por ambas as hipóteses.

Sendo Júlio Vera um contador de histórias, como aliás foi referido no início deste texto, é precisamente a elas que este deve a sua existência. Se para o seu narrador a vida se traduz numa multiplicação de narrativas, nele é válida a proposição inversa : é precisamente a narrativa que lhe multiplica a vida.

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(1) Paul de Man: "The Retoric of Temporality", in Blindness and Insight, p.207, Rutledge, London, 1989.

 


Helena Barroso é docente da Escola Superior de Educação de Lisboa.

E-mail do autor: np33wk@mail.telepac.pt


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