Histórias de Remorsos e Rancores

Luiz Ruffato

 

 

 

Um senhor contista
O jornalista Luiz Ruffato, do Jornal da Tarde, estréia na literatura com um livro de alta qualidade

 

Ivan Angelo

Publicado no Jornal da Tarde no dia 15 de agosto de 1998


Eis um contista que não escreve à maneira de. No seu primeiro livro, Histórias de Remorsos e Rancores , Luiz Ruffato mostra o que um autor que pretende encarar a literatura deveria mostrar: originalidade, ousadia formal, domínio da narrativa e do assunto, criação de uma linguagem que define o lugar e as pessoas. Raramente se vê livro de estréia em que o autor sabe do que quer falar. Muito menos de como quer falar. O mais comum é vê-lo tateando ora um assunto ora outro, muito preocupado com o caso, no máximo variando o foco narrativo e escorando-se em estilos consagrados pelo sucesso.

Luiz Ruffato não atira a esmo. Sabe aonde chegar e vai indo. Sabe do que quer falar, de que tipo de gente e lugar quer extrair seu assunto. Que é: como podem ser cruéis, destruidoras e rancorosas as relações ente as pessoas numa cidade do interior de Minas Gerais. Nada é deliberado, nada é feito por ruindade das pessoas, a vida é que é assim. O autor não facilita, não enfeita, não adoça, não é mundano. Antes de lido o livro, o título soa bonito; depois de lido, revela-se exato. São realmente histórias de remorsos e rancores. Uma das qualidades do texto de Ruffato, fruto da experimentação, é o movimento ágil da ação dentro da costura das frases. Dou um exemplo da página 56, e é preciso manter a variação de tipos redondo e itálico que o autor usou:

"Entrou na cozinha, pediu um copo, despejou um trago. Hoje eu me emborracho, Hilda. Você não vai trabalhar mais hoje não? Nem hoje, nem amanhã, nem dia nenhum. Nunca mais?, perguntou, incrédulo. Gracinha repetiu: nunca mais ".

Na primeira frase temos o narrador. Na segunda, em itálico, dentro do mesmo parágrafo, temos a fala do personagem, Zito Pereira. Na terceira, a fala da mulher dele, Hilda, perguntando se ele não vai trabalhar. Na quarta, fala de Zito, respondendo que não. Na quinta, parece que é uma fala de Hilda, continuando a conversa, perguntando se nunca mais ele iria trabalhar, porém... Volta o narrador e informa que é Zito quem está falando, "incrédulo". Estranheza do leitor: o que está acontecendo? O que aconteceu foi que o autor, habilmente, operou um corte na ação e no tempo, foi para o passado e introduziu um diálogo de Zito com uma namorada de São Paulo.

Neste conto, "A Danação", há um entrelaçamento muito bem feito de uma frustração antiga (amor e subemprego em São Paulo) com uma frustração nova (esposa e perda do emprego em Cataguases), costuradas pelos autor com a mesma linha. Com isso ele obtém efeitos narrativos que vão surpreendendo agradavelmente o leitor, participante, assim que percebe o truque, do jogo Cataguases-São Paulo, Hilda-Gracinha, vingança-decepção. O tempo, a situação e o lugar variam em montagem rápida que tem muito que ver com cinema. Sempre acreditei que não é preciso avisar ao leitor de todos os movimentos que ocorrem em um texto, que ele saberá se guiar muito bem se o autor tiver empenho. Afinal, há mais de 80 anos o público aprendeu que a cena de um revólver em primeiro plano seguida da cena de um corpo no chão significa um crime. Ruffato tem o engenho necessário.

Embora girem em torno de personagens moradores do mesmo beco do Zé Pinto, aparecendo uns nas histórias dos outros, os sete contos do livro não têm seqüência e nem as ações de uns têm conseqüência em outros. O que dá coesão ao livro é a linguagem e uma espécie de condenação dos personagens a um destino miúdo. … um povinho ferrado, como a massa brasileira. A figura que mais aparece, em três histórias, é Bibica, ex-prostituta, mãe de três filhos que se consomem. Um, menino ainda, consome-se pelas tranquinagens. Outro, o mais velho, pela cachaça e pela falta de que fazer, figura central do conto escrito da maneira mais tradicional entre todos, porém com mão firme. Acompanhando-o em sua peregrinação e paradas em um único dia, qual um pequeno Ulisses provinciano, vemos como ele é um ferrenho na vida, sem a grandeza de um motivo, de uma explicação. Ruffato não tem esse tipo de compaixão por seus personagens: ele é ferrado porque é um ferrado. O outro filho de Bibica, Jorge Pelado, que presumivelmente se abandidou no Rio de Janeiro, é personagem do conto mais elaborado formalmente, com idas e voltas no tempo, mistura de ações, preocupações e medos de mãe e filho. O leitor não se perde no entrelaçamento de falas, de situações, umas enganchadas nas outras por palavras, por sentidos, por sons. Sonolência, consciência e memória, ajudadas às vezes por um narrador e representadas por tipos diferentes de composição gráfica, fornecem as informações que contam a história.

Algumas palavras do livro não estão no dicionário, outras aparecem soando diferente. Solecismos e regionalismos surgem não só nas falas dos personagens como também no discurso do narrador, que o transformam em personagem fantasma do livro. Essa "fala" geral remete para o lugar, interior de Minas: quentando, quede, está tinindo, em-antes, de-primeiro, brovidade, trabesseiro, cacunda, daonde, bobiça, estumava o fogo, serviçama, esgüelado (no sentido de faminto), alembro, garupeira (de bicicleta), gente invicioneira, desguiando, engalobada...

A única história em que se vê alguma esperança é a primeira, "A Decisão", do levezinho violeiro Venim, que queria ser cantor de rádio e disco. Matreiro, criativo, temos aqui o capiau esperto, que mostra um lado irônico do autor que tomara ele volte a usar em livros futuros. O conto termina com Vanim indo de ônibus para o Rio, porém quem garante que ia dar certo? As histórias não são cronológicas; na penúltima, entretanto, lá está ele no beco do Zé Pinto com sua Zazá, em rápida cena, e é lícito pensar que voltou e tomou um pouco de juízo.

Voltar para Cataguases ou não ter saído tanto faz, é o mesmo fracasso. Mas quem não saiu não sabe. O decepcionante encontro de um que ficou com um que saiu, no conto "Amigos", fecha o livro e os horizontes.


Ivan Angelo é jornalista e escritor


HISTÓRIAS DE REMORSOS E RANCORES, de Luiz Ruffato. Boitempo (tel: 3865-6947), 135 págs., R$ 20,00

 

Endereço para correspondência: rufato@jt.com.br


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