2000 - Ano III


 

Comentários de livros

 


(os sobreviventes)

 

Luiz Ruffato


 À guisa de introdução*

 

Malcolm Silverman

 

 

Mesmo o mais desatento leitor perceberá como são atemporais e sem fronteiras as seis novas histórias de Luiz Ruffato e, quanto a isso, também como são extraordinariamente familiares ao estilo tchekoviano. De fato, o clima generalizado de introspecção e prostração serve, antes de tudo, como um tributo a um inquietante desvelamento da fragilidade da natureza humana. Essa complexidade temática insinua-se já na escolha das epígrafes (emprestadas de fontes tão distintas de desolação e predestinação como no poema de Jorge de Lima e nas escrituras do Antigo Testamento); no uso de uma pequena e provinciana cidade de Minas Gerais como metáfora de toda a Humanidade; e no elenco de infelizes personagens.

Dessa maneira, o título do livro, (os sobreviventes), sugere personagens ambiciosas, mas inocentes, todas genericamente estigmatizadas como sobreviventes e envolvidas, quase literalmente, entre enigmáticos parênteses. Esse recurso reforça visualmente a alienação, tanto como parte da existência moderna, como modus operandi das personagens. Assim, cada uma das histórias de Ruffato carrega títulos sugestivos. Por exemplo, "Carta a uma Jovem Senhora" e "Um Outro Mundo", claramente supõem distância (de paixões, em tempo e espaço); outras, sugerem uma antiga questão não resolvida, como nos enganosamente simples títulos "A Solução", "O Segredo", "A Expiação" e, por último, "Aquário", que traz implícito o descontentamento com a limitação da liberdade.

Certamente, a macrocósmica Cataguases, além de tela de fundo incolor, e, como tal, unificadora espacial, é despretensiosa o bastante; e mesmo suas raízes etimológicas indígenas - um indefinido amálgama de densas florestas e vales - confirmam sua insignificância. Como tal, Cataguases é também propícia às grandes maquinações mentais, que caracterizam as personagens de Ruffato, mergulhadas, quase sempre, em seus (melo)dramas individuais, que vão inspirar, senão o envolvimento e compaixão, pelo menos a atenção do leitor.

O livro de Ruffato possui uma atmosfera seletiva, subjetiva de solidão e dor, envolvida mais no mistério que no suspense, mais na morte que na agonia. Os temas recorrentes, como as variações do amor perdido ou a (infeliz) volta ao lar (após uma longa ausência), originam-se necessariamente de uma visão múlipla de pessoas e acontecimentos. Enquanto a insatisfação continua a fluir, a opressão manifesta-se patentemente no uso de um elaborado vocabulário, nas variações de tipologia e numa pontuação não convencional, com alusões ao Concretismo.

O autor, sempre atento à profundidade psicológica que caracteriza seu estilo, abre o livro com "A Solução", uma história de operárias que convivem com a pobreza e a pressão social, que namoram e sonham com um príncipe encantado. Elas são embelezadas, em grande parte, por uma efêmera intertextualidade e, especialmente, uma inquietante recordação. Elas são Cinderelas brasileiras, cujos clichês familiares dicotomizam-se em papéis convencionais dentro de variações imemoráveis, comuns a um dos mais antigos temas. O amor, ou o que convencionalmente identifica-se como ele, entretanto, confirma-se como uma ilusão.

Em "O Segredo", Ruffato brilha na sua catártica história, reconstruindo a vida de um professor, um cooptado poeta lírico, colaborador de jornais, ex-seminarista e protótipo de um pacato cidadão do interior. Reflexão, nostalgia, lembrança, escapismo e tédio são filtrados em doses desiguais na sua selecionada biografia. Mas, quando sua mente delira no que é o mais elaborado tour de force da coletânea, a personagem é lançada, não sem certa dose de surrealismo, diante de uma cruel combinação de auto-de-fé, do julgamento das Bruxas de Salém, da representação da Paixão em Oberaummergau, e de uma familiar junta militar, pela qual é condenado em nome de toda a cidade - numa metáfora dos excessos do pós-64.

Já em "Carta a Uma Jovem Senhora", o protagonista revê seu passado, durante uma perturbadora noite ociosa, distante de uma vida familiar, distante do aconchego da vida doméstica: num espartano quarto de hotel. É o ressentimento de um antigo e não correspondido amor que causa sua angústia, dor que ele tenta sublimar escrevendo uma carta, que mais tarde será destruída, como se simbolicamente estivesse destruindo o objeto do título da história. É a moderna cantiga de amor de João, um diálogo catártico de uma só pessoa, com Laura (a memória dela) servindo de catalizador.

A história seguinte, "A Expiação", é uma narrativa em três tempos. "Ritual" retrata um impressionante personagem, o jovem Zé, e sua angústia em relação ao assassinato do pai e o subsequente funeral. Enquanto isso, subtramas vêm à tona, em torno de uma outra tragédia, a do pobre Jair, que, segundo seus próprios relatos, perde seus filhos já crescidos para o tráfico de drogas e sua mulher, atropelada. "Tocaia", a última parte de "A Expiação", explica a primeira parte da história, que se torna epílogo.

Para o velho e franco Zé Pinto, de "Um Outro Mundo", sempre manifestando seu desgosto pela rebeldia adolescente por meio de suas próprias atitudes não convencionais, covardia e preconceito formam a ordem-do-dia, quando ele relata sua vida com uma marcante insatisfação. Suas lamentações cristalizam-se no câncer da mulher e na morte de seu cão fiel, e nem as recordações de uma antiga paixão diminuem sua dor. No fim, ele vê a morte como um fato inevitável, um alívio para os problemas da vida - quase um paraíso à espera, ainda que certamente um outro mundo.

(os sobreviventes) termina com "Aquário", outra vez retornando a um tema catártico de um funeral. Aqui, entretanto, o autor usa o tema da morte junto com outro tema, o da volta. O protagonista, Carlos, é chamado pela mãe, de São Paulo para Cataguases. A razão: o pai morreu. Quase como consequência de um amplo diálogo com a mãe (no papel quase silencioso, mas eficaz, de inquisidora), Carlos repensa sua vida, entre parênteses, ao responder às perguntas sem fim. Questionado sobre o comportamento não convencional da irmã ou sobre o significado da felicidade e do amor, Carlos permanece além das desavenças familiares, tão comuns nas outras histórias. Além disso, ele foi o único da família a deixar, em tempo, o lar e suas influências. Seus momentos de selecionada biografia retratam-no tolerante, mesmo aceitando os muito diferentes dele, mas dificilmente otimista. Sua recusa em julgar os outros o transforma em um personagem ainda mais admirável. Carlos é a quintessência do Filho Pródigo, feito de carne e osso numa história sem fim. De repente, a exaltação da submissão e da conformidade tem seu lado positivo. E, convenientemente, a última linha de "Aquário" (e da coletânea) é uma metáfora apropriada: "É... é uma noite longa... longa... que parece não acabar nunca... nunca..."

Luiz Ruffato nos oferece um cosmo espontâneo, necessariamente intermediado in media res. É um espaço distorcido pela infelicidade e facilmente reconhecível, um mundo isolado de sobreviventes, com e sem parênteses. O leitor precisa somente olhar pelo espelho literário para ver-se, ver-se por inteiro. Finalmente, é uma convincente e bem-vinda sequência de "Histórias de Remorsos e Rancores", o primeiro livro de contos do autor, preservando um estilo denso e machadiano.

(Tradução: Maria Cecília Marques)

* - Este texto, originalmente, constitui o prefácio do livro (os sobreviventes) de Luiz Ruffato


Malcolm Silverman é professor de Literatura Brasileira na San Diego State University. Autor, entre outros, de Protesto e o Novo Romance Brasileiro


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