Comentários de Livros
Mil olhos de uma rosa
Sônia Coutinho
Mil olhos de uma rosa
Carlito Azevedo
Mil olhos de uma rosa constitui-se, já por
sua depuração verbal, já por sua recusa a qualquer
tentativa de dar um sentido ao sem-sentido de nossos dias, num dos mais
indispensáveis livros de contos de nossa moderna literatura. E
esses dois elementos, depuração e recusa ao ilusionismo,
estão no cerne de cada escolha assumida e desenvolvida por Sônia
Coutinho.
A começar pelo perfil das personagens, pessoas solitárias,
sem entender bem como chegaram aí (há um Inimigo Oculto
conspirando?), sem vislumbrar como possam sair disso. Mas se a solidão
é uma, muitas são suas formas (mil olhos tem essa rosa doente
e contemporânea, para lembrar o poema de William Blake): ela pode
nascer da exacerbação do amor, l'amour fou, capaz
de levar à loucura ou ao crime; mas também surge de seu
extremo oposto, a diluição do amor em amizade erótica,
irresponsável, desenergizada, lamitié amoureuse
de que se fala em Camarão no jantar.
No conto "Joie de vivre" insinua-se que a arte, seu mundo de
cores e harmonias, em especial quando se trata, como é o caso,
da arte de Henri Matisse, pode ser uma fuga. Mas, em outro conto, a presença
aterradora de um Joseph Beuys encarando um coiote que é a própria
América mostra que a arte apenas aparentemente é fuga: arte
é risco. E a solidão tem a espessura da pintura metafísica
de um De Chirico, outra presença sutil e incontornável do
livro.
Apesar da exuberância da natureza no primeiro conto, que dá
título ao volume, também a onda ecológica não
constitui solução. Se no conto de abertura a narrativa
vegetal parece sobrepujar a narrativa policial que se
esboça, já no último conto, em sutil espelhamento
com aquele, nenhuma "verdade" se acende, romanticamente, da
presença da natureza.
Uma última e mais radical saída seria a morte, nossa única
questão filosófica, segundo Camus. Não à toa
são lembradas aqui a morte de Stefan Zweig, a de George Eliot,
e mais sutilmente, através da citação de uma casa
funerária chamada "Estrela da manhã", a "indesejada
das gentes" de Manuel Bandeira, ou a morte às cinco en
punto de la tarde do terrível refrão de Lorca.
Mas essa solução, talvez por ser a mais fácil, também
não interessa.
Talvez não haja solução, ou melhor, um dos méritos
da autora é saber que não cabe à arte oferecer soluções.
0 que há é a beleza, a coragem para a travessia.
Estranho paradoxo da arte: com sua força corrosiva, este novo livro
de Sônia Coutinho, nos estimula para a vida.
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