ARIANO SUASSUNA: ESPAÇO REGIONAL, CULTURA E IDENTIDADE NACIONAL
A construção simbólica de uma identidade nacional permeia os vários níveis discursivos d´A Pedra do Reino, através da confluência de quatro noções básicas: a noção de raça, cultura, região e nobilitação. Estas noções recobrem a tríplice "demanda novelosa" do narrador-protagonista, Dom Pedro Diniz Ferreira Quaderna: a demanda religiosa (o sebastianismo), a demanda política e a demanda literária. As duas primeiras demandas se acoplam, na verdade, à última, pois o objetivo máximo de Quaderna é construir uma obra literária "completa, modelar e de primeira classe" (APR, p.147 e 274) que seja a "cristalização da nacionalidade brasileira" (APR, 274). Com ela, Quaderna disputa com seus dois mestres, o advogado Clemente Hará de Ravasco Anvérsio e o promotor Samuel Wandernes, o título de Gênio da Raça Brasileira, postulando para si até mesmo o título de Gênio Máximo da Humanidade. Esse projeto literário que se inscreve dentro do romance, motivando longas discussões teóricas acerca das questões de gênero, técnica, temática e enfoque a serem adotados, não é mais do que um artifício encontrado pelo narrador para explicitar a obra que ora escreve: O Romance d´a Pedra do Reino e o príncipe do sangue do vai-e-volta. Romance este que, à semelhança daquele que se afirma internamente como projeto, reúne todos os ingredientes propostos pelo candidato a "Gênio da Raça Brasileira" e a autor de um gênero literário novo, o Romance epopéico. Mais especificamente, "O Romance heróico-brasileiro, ibero-aventuresco, criminológico-dialético e tapuio-enigmático de galhofa e safadeza, de amor legendário e de cavalaria épico-sertaneja!" (APR, p. 342). Ou como explicita ainda Quaderna "uma espécie de Sertaneida, Nordestíada ou Brasiléia, parecida com a do senador Augusto Meira" (APR, p. 185). A busca da identidade nacional, que motiva a temática popular d´A Pedra do Reino e, de forma mais específica, as temáticas do messianismo e do cangaço, é uma preocupação constante do narrador Quaderna, mas não exclusivamente dele. Ao contrário, essa busca marca tanto as inquietações políticas, filosóficas e literárias do narrador, quanto as dos seus dois mentores intelectuais, Clemente e Samuel. Todos eles procuram reinterpretar a história do Brasil, delineando o que julgam constituir o cerne da nacionalidade brasileira e os traços constitutivos da cultura e do caráter nacionais. Com este propósito, cada um intenta escrever uma obra, a Obra da Raça Brasileira, onde possam dissertar sobre o assunto de suas polêmicas discussões. A obra de Quaderna constitui, na verdade, uma síntese conciliadora das concepções e dos estilos aparentemente antagônicos de Clemente e Samuel, figuras estereotipadas, de forma maniqueísta, e representativas no texto, respectivamente, do intelectual de esquerda (negro) e do intelectual de direita (branco). Para Samuel, defensor de um nacionalismo lusófilo, a obra deverá ter por tema o Brasil. Mas um Brasil visto sob uma perspectiva eurocêntrica, calcada na cultura e nos valores do colonizador ibérico. A definição de Brasil proposta por Samuel engloba três critérios básicos: raça, cultura e religião. Ou seja, a raça branca européia, a cultura mediterrânea e a religião católica. A estes critérios se juntam ainda o de fidalguia e nobilitação, já que o modelo político de que se utiliza para pensar a sociedade brasileira é a monarquia. Mais especificamente, a monarquia portuguesa. São esses critérios que informam o seu projeto literário, por meio do qual intenta reconduzir a arte e a cultura brasileiras a seu "verdadeiro caminho", "o caminho ibérico e fidalgo dos Conquistadores e sertanistas!" (APR. p. 138). Não é à toa que ele define o seu projeto literário como "uma espécie de sagração mítica da História de Portugal na História do Brasil, através das grandes figuras de nossos Heróis e Reis!" (APR, p. 162). Essa sagração mítica reatualiza a história da conquista e colonização do Brasil, tendo como suporte o mito do Eldorado e o mito sebastianista, perseguidos pelo colonizador português. Para a reapropriação desses mitos, Samuel recorre a duas figuras exponenciais da nobreza cavaleiresca lusitana: a do navegador e a do guerreiro, representados respectivamente pelo Infante Dom Henrique e por Dom Sebastião. Na perspectiva de Samuel, a temática da "Obra da Raça" deve se constituir, assim, uma legitimação dos valores que fundamentaram a colonização portuguesa no Brasil. Colonização vista ao mesmo tempo como uma empresa aventurosa, fidalga, cavaleiresca e divina. Clemente também reconhece que o assunto da "Obra da Raça Brasileira" deve ser o Brasil. A sua definição de Brasil, no entanto, se calca em critérios de raça e cultura radicalmente diferentes dos propostos por Samuel. Defensor de um nacionalismo xenófobo, ele só aceita como valores autenticamente brasileiros a raça e a cultura negro-tapuia. Com base nesses valores, contesta o nacionalismo eurocêntrico de Samuel, propondo como tema da "Obra da Raça" a mitologia negro-tapuia (principalmente a história de Zumbi dos Palmares), a qual empresta um caráter social revolucionário em contraposição à cultura hegemônica legada pela colonização européia. E advoga então que "o Gênio da Raça Brasileira será um homem do povo, um descendente dos negros e tapuias, que, baseado nas lutas e nos mitos de seu povo, faça disso o grande assunto nacional, tema da obra da raça!" (APR, p. 145). Samuel, ao contrário, para quem só tem valor o legado herdado da civilização ibérica, encontra na aristocracia colonizadora, a aristocracia açucareira de Pernambuco, o modelo de intelectual apto a preencher as condições de "Gênio da Raça Brasileira". Ao identificar o "Gênio da Raça Brasileira" com a fidalguia dos engenhos pernambucanos, Samuel proclama a supremacia intelectual de uma elite social, a oligarquia da cana-de-açúcar, postulando simultaneamente a hegemonia do espaço regional sob o qual esta elite se assenta: o Nordeste litorâneo, locus da classe senhorial açucareira. O seu projeto estético-nacionalista pressupõe, portanto, além dos critérios já assinalados, o critério de região. O privilégio concedido à classe oligárquica açucareira e à região litorânea se dá em detrimento de outra classe oligárquica, a algodoeira-pecuária, e de outro espaço regional, o sertão. As teses nacionalistas de Samuel e Clemente, se encaradas sob o ângulo mais amplo das discussões acerca do atraso e do subdesenvolvimento, podem ser vistas como paradigmas de duas atitudes em aparência opostas e igualmente equivocadas, que costumam marcar as reflexões dos intelectuais brasileiros e latino-americanos (ou das demais elites pensantes dos países colonizados) a respeito do problema da dependência cultural. Essas duas tendências examinadas por Antonio Candido em "Literatura e subdesenvolvimento" se traduzem respectivamente nas noções de cópia e rejeição. No primeiro caso, postula-se uma subordinação total e declarada aos padrões da cultura estrangeira. A idéia de cópia pressupõe, assim, uma imitação acrítica, uma aceitação indiscriminada do que existe de bom e de ruim na matriz cultural que se toma como modelo, afirmando uma dependência servil à cultura das metrópoles européias. No segundo caso, apregoa-se uma autonomia também declarada e absoluta face aos valores alienígenas. A idéia de rejeição aponta, pois, para a recusa intransigente de todo e qualquer contributo que vem de fora. Busca a todo preço uma originalidade (ilusória) "por obra e graça do temário local" (CANDIDO, 1987, p.156). Neste sentido, o que à primeira vista poderia parecer afirmação de identidade nacional termina por revelar-se uma forma de acentuar a "dependência na independência" (CANDIDO, 1987, p.157). A noção de rejeição constitui, desta maneira, uma contrapartida ideológica da noção de cópia. Sem se dar conta, manifesta-se igualmente devedora do mesmo colonialismo cultural que pretendia, em termos racionais, recusar. Na verdade, constituindo uma o inverso simétrico da outra, as duas posturas apresentam-se complementares e solidárias, quando focalizadas como dependência decorrente do atraso e da falta de desenvolvimento econômico, oferecendo-se como derivação do que Antonio Candido denomina "consciência amena do atraso" (CANDIDO, 1987, p.142). À semelhança de seus dois mestres, Quaderna classifica a obra que pretende escrever como uma "obra de gênio, decisiva para o destino do Brasil" (APR, p. 274). Na sua opinião, o "Gênio da Raça Brasileira" não pode ser apenas um representante das raças negra e tapuia, segundo quer Clemente. Nem tampouco, um representante da raça branca ibérica, conforme defende Samuel. Ao contrário, o "Gênio da Raça Brasileira" deve ser um mestiço: "um descendente de Cabras e Mamelucos, de Caboclos", como ele mesmo se considera. É, pois, no critério da miscigenação racial que Quaderna se apóia para comprovar o seu direito à autoria da Obra da nacionalidade do Brasil. Em seu discurso, a exaltação da mestiçagem racial é correlata à exaltação de um espaço regional que se contrapõe àquele privilegiado por Samuel. Ou seja, o sertão, a "civilização do couro", locus de uma "fidalguia castanha tida como a expressão mais autêntica da nacionalidade brasileira". É, portanto, da confluência das idéias político-literárias de Clemente e Samuel, em que se defrontam duas concepções aparentemente antagônicas acerca da identidade nacional, que surge o projeto literário de Quaderna e o Romance d´a Pedra do Reino. Projeto e romance erigidos em canto de louvor ao sertão e às glórias de seu povo: o "Povo Fidalgo-Castanho do Brasil".. Na própria conjunção dos elementos díspares que adjetivam o conceito de povo ("Povo Fidalgo-Castanho") depreendem-se as premissas ideológicas que informam o nacionalismo de Quaderna. Um nacionalismo que, calcado num critério de miscigenação étnico-cultural, procura fundir "harmonicamente" as bipolarizações de raça e cultura em torno das quais se constróem as concepções nacionalistas dos seus amigos e professores. Através desta fusão, as aspirações nacionalistas de Quaderna reatualizam a concepção de Gilberto Freyre acerca de uma nação brasileira luso-tropical, alicerçada na ideologia conciliadora de uma convivência democratizante entre os três povos que constituem o fundamento da nossa nacionalidade (o europeu, o africano e o indígena).. O conceito de "Povo Figaldo-Castanho" por meio do qual Quaderna explicita a sua concepção de nação brasileira remete, assim, à ideologia da "miscigenação abrasileirante e democratizante" que informa o discurso freyreano, podendo ser lido como uma variante dessa ideologia. É em torno desse conceito, em que são eclipsadas as contradições de raça, de cultura e de classe social, que o narrador Quaderna constrói a ficção de um Brasil cadinho. Ficção, cujos personagens travestem-se de fidalgos e de cavaleiros medievais. E assumem a exemplo dos personagens de seu romance a dimensão de heróis de epopéia.
A reinterpretação fictícia da história do Brasil conjuga, cordialmente, pela "alquimia idelógica" do narrador Quaderna, os dois extremos de uma cadeia social que nas perspectivas de Clemente e Samuel se querem separados: o povo e a aristocracia, os "mouros" negro-vermelhos e os brancos "fidalgos", a realidade "raposa e afoscada do sertão" e os brilhos da heráldica. Essa postura conciliadora vem ainda explicitada por uma metáfora muito cara ao narrador, a metáfora do jogo do baralho.. Quaderna transfere a significação simbólica heráldica e cavalheiresca dos naipes do baralho aos dois segmentos da sociedade brasileira que privilegia: o povo e a "aristocracia" rural. Empresta, ao mesmo tempo, a essa simbologia, uma conotação racial em conformidade à sua ideologia da miscigenação democrática. O jogo do baralho, com suas figuras e cores emblemáticas, passa a representar a fusão "cordial" das idéias sócio-políticas e raciais de Clemente e Samuel, cujas concepções antagônicas são respectivamente simbolizadas através de duas outras metáforas também extraídas do campo semântico do jogo: o jogo de damas e o jogo de xadrez. A metáfora do jogo do baralho funciona, assim, como uma espécie de "gommage des contradictions réelles", através da qual o narrador, assumindo o papel de equilibrador de contrários inconciliáveis, apaga as marcas do subdesenvolvimento e do atraso do sertão ("a realidade parda e afoscada dos famintos e miseráveis"), transfigurando-o num Reino de sonho e fantasia povoado de Reis, Rainhas, Valetes e Damas:
Ao mesmo tempo, essa metáfora reedita também a versão luso-tropical de uma "fidalguia castanha", que possibilita a Quaderna erigir as torres de seu "castelo" literário, para com ele recriar o mito sebastianista. Um "Sebastianismo castanho"(APR, p.182) que, por conjugar as concepções "comunistas" de Clemente e as concepções monarquistas de Samuel, se assenta sob o ideário de um "Monarquista de Esquerda" (APR, p.374-375), sendo, portanto, corolário da ideologia da miscigenação democrática que alicerça a busca da identidade nacional n´A Pedra do Reino. Sônia Lúcia Ramalho de Farias é doutora em Literatura brasileira pela PUC-RJ e professora da Universidade Federal de Pernambuco. É autora de Literatura e cultura: tradição e modernidade (org.) (EDUFPB/ Idéia, 1997) e de Representações do imaginário rural na ficção: messianismo e cangaço em José Lins do Rego e Ariano Suassuna (Editora da Universidade Federal da Paraíba prelo). |