Berthold Zilly,
FU Berlin
Resumo:
O artigo considera os motivos do sucesso de Os Sertões como relato consagrado sobre a guerra de Canudos e os destinos da nação brasileira. Sua originalidade não consiste nos fatos referidos nem nas reflexões científicas e antropológicas sobre eles, mas no modo plástico, sugestivo e emocionante pelo qual os eventos são evocados e presentificados. A história é descrita e narrada mediante intenso uso da retórica e imagens de caráter bíblico e mitológico, como alternância de painéis imóveis e cenas dinâmicas. Tanto na composição geral como na construção sintática, o livro configura-se como encenação pictórica e teatral. A solidariedade do espectador-narrador vacila entre a inevitável civilização e a utópica comunidade de Canudos, entre a condenação e a apoteose do sertanejo insubmisso, entre a aceitação da sua morte e sua imortalização no plano simbólico, resultando numa visão trágica da história.
PALAVRAS-CHAVE: Euclides da Cunha, Os Sertões, ciência e literatura, pictorização e teatralização, encenação da história, visão trágica.
Abstract:
The paper inquires upon the reasons for the continual success of Os sertões as a hallowed narrative about the Canudos War and the destiny of Brazil as a nation. The work owes its originality not so much to the facts it narrates nor to the scientific and anthropological views expressed about such facts, but rather to the pictorial, suggestive, moving way in which they are remembered and made present. The story is described and narrated with the intensive use of biblical and mythological imagery and rhetoric, and of alternating static and dynamic scenes. Os sertões constitutes itself as a vividly pictorial and dramatic tour de force, both from the perspective of its composition and of its syntactical structure. Empathy felt by the spectator-narrator sways between unavoidable civilization and Utopian Canudos community, between disapproval, and glorification of the rebellious backlanders, between the acceptance of their elimination and the wish for their becoming immortals at the symbolic level--the work as a whole leading to the formation of a tragic view of history.
KEYWORDS: Euclides da Cunha, Os Sertões, science and literature, pictorialness, dramatization, staging history, tragic view.
Muitos livros em um só
Geralmente é aceita a tese de que, não fosse o livro de Euclides da Cunha, a guerra de Canudos teria caído no semi-esquecimento do grande público, como tantos outros conflitos, movimentos populares, guerras civis e externas, revoltas, quilombos, greves - acontecimentos quase sempre caracterizados por massacres contra os de baixo, bastando uma rápida comparação com a Balaiada, a guerra do Paraguai, os Mucker, o Contestado ou o Caldeirão. E realmente o centenário da guerra no sertão parece ter comprovado abundantemente esta tese, pois, apesar das muitas pesquisas de José Calasans sobre "Canudos não euclidiano",[2] raramente se fala sobre o evento sem que se mencione o nome do escritor, apesar das muitas e em grande parte fundadas críticas à parcialidade de seu depoimento, à falta de tratamento profissional das fontes e ao caráter datado de muitas de suas avaliações. Se o mito Canudos, como evento-chave da história brasileira, se deve em grande parte a Euclides, este, por sua vez, também virou mito, como explicador, intérprete, preceptor do Brasil, de modo que temos aí dois mitos complementares, quase simbióticos, alimentados pelo mesmo fascínio do heroísmo fracassado.
Naturalmente poder-se-ia especular sobre o que seria da memória de Canudos sem essa obra canônica da literatura brasileira. Talvez Canudos, mesmo sem Os Sertões, não fosse tão esquecido assim, pois, mesmo antes da publicação desse sucesso literário de primeira hora, este conflito ocupou e preocupou os ânimos dos letrados e dos não- letrados do Brasil. Foi a primeira guerra brasileira a ter uma cobertura quase contínua no noticiário da imprensa nacional e mundial, suscitando a publicação de numerosos livros e outros escritos, antes e independentemente de Os Sertões, mais do que qualquer outro acontecimento comparável na história do país até aquela data, além de ser tema de destaque na literatura popular. Foi um movimento realmente de dimensões nacionais e internacionais, pondo em cheque, depois das primeiras expedições punitivas derrotadas, a segurança do Estado e o crédito do Brasil, com dimensões tais que finalmente metade do Exército brasileiro foi mobilizado, ficando vitorioso apenas depois de humilhantes reveses e à custa de muito sangue derramado.[3]
O que pode, porém, ter tornado a memória de Canudos particularmente atraente, tanto para os letrados como para os sertanejos, embora por motivos diversos, é o fato de o povo marginalizado de uma região marginalizada do Brasil ter fundado uma comunidade, uma pequena cidade, esboçando um modelo social baseado em suas próprias experiências, na cultura regional e no catolicismo popular, sem ajuda nenhuma das elites ou do governo, até mesmo contra a sua vontade. E era um modelo viável, funcionando razoavelmente em termos econômicos e morais, dando dignidade aos sertanejos, sem no entanto ser agressivo, sem ameaçar de propósito outras formas de convivência e os poderes constituídos, sem intenções subversivas, embora questionando, objetivamente, o mandonismo circundante. Irradia, desde os primeiros tempos até hoje, um fascínio por essa pobre comunidade do sertão, por esse projeto social alternativo, baseado num catolicismo popular e na prática da auto-ajuda e do mutirão, que não teve tempo nem liberdade de amadurecer, de mostrar todo o seu potencial emancipatório ou, eventualmente, o que também não se pode excluir, antiemancipatório. Este fascínio se deve, ao que parece, justamente aos atributos promissores, a esse brilho utópico, ao fato de em Canudos o povo do sertão ter surgido pela primeira vez no cenário nacional como sujeito político, como dono de sua própria história, o que transparece até nas fontes mais anticonselheiristas, como o relatório do frei capuchinho João Evangelista de Monte Marciano.[4]
Se, por outro lado, o aniquilamento de Canudos foi um evento estrondoso, importantíssimo para a consolidação da República, se foi quase uma catástrofe fundadora ou um crime fundador do Brasil republicano e moderno, através de cuja memória os brasileiros até hoje buscariam as suas identidades regional, nacional, social, religiosa, isto não se deve apenas ao livro de Euclides, pois todos os que escreviam e formavam a opinião pública na época sabiam que se tratava de um evento crucial e determinante para a história do país, sendo bastante difundida a opinião de que se tratava de um crime mesmo, de modo que o grande mea culpa dos letrados brasileiros já começara bem antes do aparecimento de Os Sertões.[5]
Antes dos letrados, o povo, tanto no sertão como nas cidades e dentro do próprio Exército, já tinha começado a ficcionalizar o sertão, a comunidade e a guerra de Canudos, incitado por seus múltiplos aspectos inexplicáveis, por fenômenos aparentemente sobrenaturais como as "cidades mortas" ou "cidades encantadas" (p. 299), pelo carisma do Conselheiro, pela invisibilidade dos jagunços, pela longa e espantosa resistência dos defensores, que infligiram repetidos reveses ao Exército. O caráter novo, inédito, incompreensível dos acontecimentos instigava a imaginação popular, a criação de boatos, lendas, poemas, canções, narrativas dramáticas, uma literarização primitiva, essencialmente oral, abundantemente aproveitada pelos literatos eruditos, nomeadamente por Euclides da Cunha.[6]
Claro que o livro euclidiano eclipsou todos os outros escritos sobre o assunto, anteriores e posteriores, tendo até os cineastas de hoje dificuldades para rivalizar com ele. Euclides da Cunha conseguiu a proeza de dar à história de Canudos uma forma hegemônica - não definitiva naturalmente, pois esta não existe -, fascinante e impenetrável, perturbadora e imponente, controversa e monumental, mantendo a guerra viva na memória coletiva, como chaga aberta e desafio para refletir sobre a Nação e a Civilização, como estímulo para projetar o futuro. Por que razão seu relato histórico é até hoje mais sugestivo, impressionante, rico em significados e alusões, irritante, instigante e atual do que outros, apesar de tantos elementos errados, datados, superados? Por que este livro é moderno, apesar de seus muitos recursos estéticos, princípios ideológicos e esquemas interpretativos antiquados, alguns dos quais antiquados já para a época? Muitas respostas pertinentes, embora não exaustivas, foram dadas a estas perguntas que, no fundo, colocam a questão da qualidade artística da obra euclidiana. O que faz de Os Sertões uma obra de arte? O que faz de Os Sertões Os Sertões? O que dá à obra seu valor científico, historiográfico, literário? O conteúdo ou a forma, a postura ética ou o estilo imponente?[7]
Se o livro de Euclides da Cunha entrou nos cânones da literatura nacional e universal,[8] isto se deve relativamente pouco a seu valor documental ou historiográfico no sentido acadêmico, já que o autor passou menos de três semanas no campo de batalha, o que é pouco para uma guerra que durou onze meses e que teve antecedentes de décadas, senão de séculos. Além disso, Euclides deu às fontes um tratamento pouco apropriado, menos de historiador que de jornalista, quando muito de ensaísta, tendo sido leviano ou mesmo irresponsável algumas vezes, se pensarmos naquilo que afirma sobre as prédicas do Conselheiro, as quais comenta, obviamente sem tê-las lido, como se seguisse o lema tácito de certos críticos literários: "Não li, não gostei."[9] Quase todas as informações factuais e muitas das avaliações e reflexões contidas em Os Sertões encontram-se também em outros autores, de modo que, sem exagerar, podemos afirmar que, se o livro de Euclides não existisse, saberíamos o mesmo que sabemos hoje sobre a guerra de Canudos, não perdendo praticamente nada a respeito dos fatos e muito pouco a respeito das hipóteses e conclusões, algumas das quais nos são, hoje em dia, inteiramente datadas e dispensáveis, como, por exemplo, as idéias sobre as correspondências entre raça e civilização. Não só Euclides da Cunha não foi o primeiro a escrever um livro sobre Canudos, como foi também um dos últimos autores contemporâneos a fazê-lo e uma das últimas testemunhas oculares da guerra no sertão.[10] E sabia que, cinco anos após o término da guerra, já se havia dito quase tudo sobre ela no plano dos acontecimentos, de modo que sua originalidade estaria em enquadrá-la na história da Civilização, concebida por ele como luta de raças, conforme escreveu na nota preliminar. Apesar de toda essa parafernália científica, Os Sertões provavelmente teria sido rejeitado então - que se dirá hoje! - como tese de doutorado ou livre-docência em história ou ciências sociais, caso já houvesse naquele tempo uma dessas faculdades no Brasil.
Como se explica, pois, o extraordinário êxito do livro de Euclides junto ao público letrado, à opinião pública em geral, aos críticos literários e aos próprios historiadores, que durante décadas deixaram de empreender pesquisas de maior vulto sobre Canudos, já que Euclides haveria escrito o livro definitivo sobre o assunto? Talvez uma das razões desse sucesso seja justamente o caráter abrangente do livro, seu caráter de summa, ao mesmo tempo que sua indefinição, ou melhor, sua multiplicidade de gêneros, essa capacidade de reunir quase todas as informações, atitudes, formas possíveis de outros enunciados - relatos, poemas, pichações, artigos e livros sobre a guerra - e ainda aspectos de vários tipos de texto: crônica, lenda, depoimento, diário, tratado geográfico, etnográfico e historiográfico, registro de formas simples populares,[11] mas também romance, ensaio, discurso forense e político, oração fúnebre, amalgamando tudo num estilo relativamente coeso, próprio, inconfundível. Por conseguinte, quanto às três formas básicas da literatura - a epopéia, o drama, a lírica -, o livro as reúne todas, como muitos críticos têm apontado, enfatizando principalmente os traços de epopéia e tragédia nele contidos, sendo a versificação embutida em Os Sertões objeto de estudo recente de Augusto de Campos.[12] É um livro-síntese, reunindo diversos gêneros, temas, pontos de vista, métodos de pesquisa e ideologias. Síntese quase enciclopédica, mas de sistematização duvidosa, incoerente, polissêmica, sugestiva, ativando a imaginação do leitor. O autor expõe com a maior clareza sua própria falta de clareza, radicaliza suas hesitações e contradições, exacerba os paradoxos.[13] É muitos livros em um só.
Entre a ciência e a literatura
É provável que algumas circunstâncias exteriores tenham contribuído para fixar o movimento do Conselheiro na memória regional e nacional: ele se desenrolou numa região pouco extensa, num raio de cerca de 50 km, numa capital em que tudo se concentrou e que foi justamente Canudos, tendo como chefe uma figura carismática e como atividade preponderante algo que sempre fascinou os poetas populares e eruditos: a guerra. Assim, na percepção dos não-canudenses, as notícias se configuraram numa quase identidade de arraial, movimento, comunidade, líder, luta. Pois antes da luta Canudos interessava pouco, tanto aos contemporâneos como à posteridade. Mesmo em nosso tempo, em que a historiografia valoriza tanto os estudos do cotidiano, pouco se comemorou o centenário da fundação de Canudos em 1993, ao contrário do centenário de sua destruição em 1997, emocional e literariamente mais gratificante. É que, como todos os artistas sentem, a essência das coisas e das pessoas se revela em suas crises, nos paroxismos, nas reviravoltas, nos extremos, nos começos e mais ainda nos fins,[14] nas mortes e principalmente nos massacres, nem tanto no dia-a-dia pacato, banal, ordeiro. Os crimes hediondos do fascismo alemão exercem um lúgubre fascínio nos historiadores, que bem menos se interessam pelos anos mais tranqüilos da República de Weimar. Canudos para nós é Canudos na guerra, o que já é uma visão um tanto literarizada, pois cientificamente, academicamente, ou seja, do ponto de vista estritamente historiográfico e sociológico, a Canudos anterior à guerra talvez seja ainda mais interessante, principalmente com o fim de analisar e imaginar o que a comunidade do Conselheiro teria sido e poderia vir a ser, caso não tivesse sido extinta, uma vez que as condições de luta, se por um lado acentuam certos traços de uma entidade social, por outro lado alteram, desfiguram e apagam outros. Do ponto de vista estético, porém, a guerra é um tema bem mais interessante do que a paz, de modo que é assunto predileto em grande parte da literatura universal, desde Homero e Heródoto à Bíblia.[15]
Pois bem, a história de um lugar, de um período curto e de um personagem dominador é mais concreta, mais palpável, mais sugestiva do que a de uma série de acontecimentos disseminados entre regiões, períodos e líderes diversos, como por exemplo os outros conflitos acima mencionados. Essa concentração nos planos do espaço, do tempo, do pessoal faltou à maioria dos conflitos comparáveis.
Deste modo, a própria realidade vem ao encontro de sua literarização e, principalmente, de sua teatralização.[16] Pois fica evidente que a guerra de Canudos preenche, aproximativamente, vários requisitos do drama clássico, as unidades de lugar, de tempo, de enredo, sobretudo se abstrairmos a forma rigorosa dessas unidades, que foi bem mais uma invenção do classicismo francês do que um requisito da poética aristotélica. A unidade de tempo talvez seja menos patente no caso da guerra de Canudos, pois esta durou evidentemente mais de um dia, mas mesmo assim, no plano cronológico, o evento se presta a ser lembrado intensamente, pois ocupa menos de um ano, bem menos do que as guerras do Paraguai ou do Contestado. Os onze meses da luta no sertão são marcados, fora longos períodos de trégua ou de uma guerra de trincheiras relativamente imóvel, por alguns poucos clímax incisivos, em que as diversas expedições e, no caso da quarta, com suas diversas sub-expedições, se concentram com desfechos curtos e dramáticos de suspense. Essa mesmice, pelo menos relativa, de lugar e de tempo ajuda a memória coletiva, a imaginação, a narrativa reflexiva do historiador assim como a narrativa evocadora do escritor.
Se a unidade é óbvia no plano do enredo, ou seja, da guerra, ela o é bem menos no plano dos personagens dramáticos. A figura do Conselheiro, no entanto, embora pouco visível para os observadores de fora, paira sobre toda a guerra, reforçando prática e simbolicamente a unidade do povo de Canudos, mesmo porque esse líder espiritual e profano é uma espécie de encarnação do sertanejo como tipo social, como coletividade, sendo na verdade o sujeito principal, o protagonista dos acontecimentos. Se o líder camponês é uma presença contínua durante toda a guerra, o Exército, por outro lado, não se encarna do mesmo jeito em uma só pessoa, tendo cada nova expedição um novo comandante, sendo a quarta expedição constituída na verdade por várias expedições, até com vários comandantes, tendo na última fase o ministro da Guerra como eminência parda perto do campo de batalha. De modo que há uma certa assimetria entre o pessoal dos dois partidos beligerantes, pois a coesão e a continuidade dos canudenses, personificadas no Conselheiro, não tem a contrapartida de uma tropa única, com comando único através das quatro campanhas.
Euclides da Cunha, por sua vez, oscila entre dois modos de ver a realidade, um, analítico, outro, impressionista, sem que sejam excludentes, embora haja uma tensão entre eles. Muitas vezes estes dois modos se complementam de maneira feliz, a fim de formar uma seqüência ou até uma simbiose expressiva e sugestiva, como, por exemplo, no trecho que se refere a um item do subcapítulo III, "Higrômetros singulares" , dentro do capítulo "O Homem", que lembra um poema de Rimbaud: "Le dormeur du val" ("O adormecido do vale"). Várias vezes, como também no caso citado, esses dois modos de ver se relacionam como seqüência de ilusão-desilusão. O olhar ingênuo se deixa iludir à primeira vista, é corrigido por uma segunda visão ou pela ciência, que por sua vez é auxiliada pelo olhar desprevenido do viandante, dotado porém de sensibilidade artística. Pois a ciência pode fracassar ou errar, induzindo o observador a enganos ou se mostrando simplesmente inoperante. É quase um fio condutor do livro a idéia de que o sertão e, muito especialmente, o sertão de Canudos, bem como a guerra aí ocorrida fogem aos padrões científicos e se mostram, devido a suas contradições, impenetráveis e imperscrutáveis ao discernimento racional, não cabendo, portanto, nas categorias de pensadores como Hegel ou Humboldt. Esta insuficiência da abordagem científica exigiria uma complementação pelas artes.
Para dar conta dessa realidade que não se deixa equacionar cientificamente e ao mesmo tempo para fazer jus ao seu caráter enigmático e paradoxal, avesso às interpretações racionalistas e coerentes, o autor lança mão de métodos e recursos não científicos, literários, até ficcionais, almejando o ideal do "consórcio da ciência e da arte".[17] Não uma ficção científica, naturalmente, mas uma ficção histórica, com alternância entre ciência literarizada e literatura com rigor científico. Entenda-se por ciência toda procura, combinação e apresentação sistemática e metódica de conhecimentos, inclusive nas ciências sociais. A literarização abandona ou atenua a sistematização, o rigor metodológico, a verificabilidade, para dar vazão à subjetividade e à fantasia, ambas contidas e controladas, porém, pela busca ansiosa, quase fanática da Verdade. Parece impossível servir com a mesma fidelidade as duas amas, à ciência e à literatura, consideradas as diferenças entre ambas quanto a meios e fins, criando-se a necessidade de se dar prioridade, senão exclusividade, a uma delas. E para Euclides da Cunha a opção pela literatura é clara, embora não sem hesitações, ainda que esta opção talvez seja mais clara para nós, leitores, do que para ele mesmo. Ainda que não fale de literatura como programa na "Nota Preliminar", onde expõe suas metas de historiador científico, aproxima-se dela na fórmula do narrador sincero (p. 86), do observador empático e quase participante da história, segundo o lema de Taine: "Il veut sentir en barbare, parmi les barbares, et, parmi les anciens, en ancien" (p. 86). E se decide pelo ensaio poética e retoricamente elaborado, belo, sublime, mas também apelativo, amargo, sarcástico ou emocionante, encenando, sim, a história, mas sempre de modo controlado, com "fantasia exata".[18]Mais uma vez: por que as contínuas incursões na literatura e até na ficção? Não é apenas uma questão de gosto estético, mas também uma postura intelectual. A estrita preponderância da função referencial obrigaria o autor à objetividade, à sobriedade, a um estudo atilado e paciente das fontes históricas, à pesquisa sistemática e sobretudo à coerência intelectual, a um ponto de vista relativamente invariável. Isto excluiria visões contraditórias, boatos, lendas, notícias falsas, como aquela do suposto assassinato da mulher e da mãe do Conselheiro, e ainda a empatia com os jagunços, a plurivocidade, o multiperspectivismo. A coerência intelectual e ideológica, indispensável num livro didático ou acadêmico, é substituída pela coerência estética e estilística.
Para atingir a sugestividade almejada, o autor, ao se servir de recursos literários, faz também empréstimos a outras artes, principalmente à pintura e ao teatro, evocados através da linguagem, criando quase uma espécie de Gesamtkunstwerk, uma obra de arte totalizadora, intermedial, intersemiótica, embora construída com palavras escritas apenas, dentro da literatura cientifizada ou da ciência literarizada. Em vez de escrever e narrar objetivamente situações e eventos, ele o faz como se falasse de obras plásticas ou obras cênicas, representando essas situações e eventos. Euclides encena conscientemente a história.[19] A tarefa do historiador poético é menos a pesquisa de detalhes factuais e sua conexão causal, como seria de se esperar de um pensador positivista, do que a (re-)construção de situações e peripécias decisivas ou típicas, memoráveis, elucidativas ou simplesmente imponentes. O autor recorta a seqüência dos acontecimentos em quadros e cenas, descritas com intensa plasticidade e poder de presentificação, sustendo volta e meia o decorrer do tempo, parando a fugacidade dos momentos para melhor fixá-los, evidenciando tão bem a simultaneidade dos fatos quanto sua sucessão, o que explica o uso freqüente, ao lado do pretérito perfeito, do imperfeito, surpreendente num relato rico em eventos sucessivos e dramáticos, e do presente histórico, inusitado num relato histórico-cientifico, avivando, agilizando muitas vezes esses quadros estáticos, transformando-os em cenas dramáticas. Ou seja, ele usa técnicas narrativas ora pictoriais, ora teatrais, como se conduzisse o leitor por uma exposição de desenhos, pinturas e esculturas que de repente começassem a se mover, transformando-se em episódios de um drama ou em cenas de um filme a desenrolar-se diante de nossos olhos. Assim o texto, ora mais descritivo, ora mais narrativo, nos põe diante de uma seqüência de imagens caracterizadas por processos alternantes de aceleração e desaceleração.[20]
Para suprimir todas as dúvidas sobre as intenções pictórico-teatrais de seu texto, Euclides usa e abusa de metáforas pertencentes às artes plásticas, não sendo menos numerosas aquelas de origem teatral.[21] Claro que muitas dessas metáforas, sendo de uso corrente, encontram-se um pouco gastas e empalidecidas, mas sua extraordinária cumulação evidencia a preocupação pictorial e encenatória do autor, sua intenção de visualizar e, em menor grau, de sonorizar os fatos relatados em seus estados de mobilidade e imobilidade, embora o faça em vários trechos também sem a utilização dessas metáforas.[22]
Euclides apela do mesmo modo para as ciências, a fim de evidenciar e presentificar o narrado: a medicina, a geologia, a matemática. No entanto a literatura continua a fornecer o material principal para caracterizar a história e o mundo, através da velha metáfora do livro, juntamente com outras metáforas a ele ligadas, tais como: página, palimpsesto, libelo, cronista, lenda, romancear. A realidade se presta não só para ser pintada ou encenada; de certa forma ela já é quadro, teatro e literatura, restando ao observador ativo apenas a tarefa de registrar em palavras aquilo que lê e vê, ou seja, as imagens, as cenas, as páginas da História, desempenhando o papel de copista, de cronista, de testemunha, de narrador sincero. A meio caminho entre a pintura e a literatura narrativa, a teatralidade como tipo de apresentação da História exerce um papel central entre a imagem e o relato de eventos, entre a pura visualização e o discurso explicativo. Ao mesmo tempo o teatro trabalha com a expressão acústica e, eventualmente, até com a olfática, sendo portanto uma das artes mais abrangentes e sensoriais, impressionando todos os sentidos da percepção humana. Não é por acaso que, apesar de seu pendor cientificista, Euclides foi tachado aqui e ali de barroquizante, dada a grande predileção do barroco pela teatralidade. Realmente, essa teatralidade pictorial ou essa pictoriedade teatral, como se queira, tem algo de barroco, época que também praticou abundantemente a mistura das artes, dos gêneros de textos e a visualização através de palavras.[23]
Retórica a serviço da representação pictorial e teatral
Outro traço, não exatamente barroco mas se adequando a ele, é o caráter profundamente retórico de Os Sertões, a sua oralidade oratória, altamente erudita, trabalhada, estilizada. A retórica é basicamente uma técnica verbal de caráter pragmático, proveniente da Antigüidade, mas é no barroco que ela recebeu uma configuração especial, uma grandiosidade pomposa, muito influente nas letras portuguesas e brasileiras, a tendência para o exagero, as hipérboles, a redundância, a sinonímia rica, a festa verbal, os epítetos ornamentais. Ecoam na prosa euclidiana o fausto, a pompa, a solenidade de um Antônio Vieira, secularizado, pelo menos à primeira vista, mais próximo do discurso político e judicial, sendo o plano judicial metafórico, uma alegoria de uma instância e de um juízo moral. Se há retórica, também há paródia de retórica, principalmente da retórica belicista do governo, do Exército e da imprensa, máquinas propagandísticas ativas e eficientes (como, por exemplo, nas páginas 291 e 292).[24]
Essa teatralidade tenciona direcionar o olhar, o ouvido e o intelecto do leitor para uma recepção extremamente sensorial, visual, acústica, emocional, associativa, graças a uma força quase irresistível de evocação, presentificação e memorabilização. Centenas de reticências convidam, induzem, seduzem o leitor a mobilizar a sua fantasia, a ser um co-autor, acrescentando detalhes ou preenchendo lacunas. Assim, o leitor dificilmente consegue se livrar daqueles quadros lancinantes e emocionantes. Pois Euclides, como quase todos os autores, não quer apenas ser lido, quer também induzir o leitor a determinado tipo de leitura para ter certeza de que sua mensagem é percebida corretamente.[25]
Apoiando-se em Tucídides e Taine, o autor pretende ser objetivo e crítico como o primeiro, o pai da historiografia sistemática, mas também empático como o segundo, apesar de seu positivismo. Na verdade, o narrador sincero da nota preliminar assume, retroativamente, o papel de um observador participante, de um pesquisador antropológico, tarefa para a qual convida também o leitor-espectador, sensibilizando-o, empolgando-o, indignando-o, persuadindo-o a tomar uma atitude.
Numa das primeiras resenhas sobre o texto alemão de Os Sertões no jornal Süddeutsche Zeitung,[26] o crítico chamou Euclides de "Heródoto do sertão". Inicialmente, fiquei intrigado, primeiro porque o próprio Euclides nunca fez alusão a Heródoto, que eu saiba, segundo porque essa fórmula poderia ser entendida como restrição à sua universalidade, mas depois me lembrei daquilo que Walter Benjamin afirma sobre Heródoto em seu famoso ensaio sobre Leskov, O Contador de histórias. Segundo ele, o historiógrafo grego pertenceria à tradição daqueles contadores de histórias que, diferentemente dos que mergulham na história da terra natal, têm algo a contar porque, tendo viajado muito, fizeram experiências dignas de serem comunicadas. E o forte de Heródoto é justamente a narração cênica, o uso das elipses, o enigmático de muitas dessas cenas, a freqüente falta de explicações, a disposição do autor de integrar na narração vozes alheias, boatos, lendas, mitos, sem necessariamente passá-las pelo crivo do juízo crítico, como faria Tucídides, este, sim, citado por Euclides nas notas à segunda edição (p. 584). Tanto Heródoto quanto Euclides abrem mão de uma posição firme e coerente, admitindo tendencialmente diversas versões do acontecido, anedotas, lendas, boatos, narrativas subjetivas ou fantasiosas da história, aproximando-se um pouco da visão de João Ubaldo Ribeiro: "O segredo da Verdade é o seguinte: não existem fatos, só existem histórias",[27] sem que Euclides abandone o conceito da História una, com maiúscula, apesar de todos os seus meandros e contradições. Essa História e essa busca da verdade não se fazem só de histórias, mas também de imagens, tanto as concretas, sejam estas quadros, desenhos ou trechos de filmes, quanto aquelas evocadas pela magia da palavra.[28]
Deste modo, volta e meia Euclides abandona o arcabouço científico para se entregar à contemplação pictorial e teatral. Há um trecho programático na página 177, linha 580, onde, depois de um parêntese, hoje quase ilegível, de cunho evolucionista, social-darwinista e racista, o autor interrompe repentinamente o discurso científico, obviamente insatisfeito com suas próprias considerações, tidas hoje como pseudocientíficas:Deixemos porém, este divagar pouco atraente. Prossigamos considerando diretamente a figura original dos nossos patrícios retardatários. Isto sem método, despretensiosamente, evitando os garbosos neologismos etnológicos."Sem método"! Esse pouco caso que de repente faz da ciência pode ser lido também como auto-crítica.E prossegue:
Sejamos simples copistas. Reproduzamos, intactas, todas as impressões, verdadeiras ou ilusórias, que tivemos quando, de repente, acompanhando a celeridade de uma marcha militar, demos de frente, numa volta do sertão, com aqueles desconhecidos singulares que ali estão abandonados - há três séculos."Impressões, verdadeiras ou ilusórias" - expressão mais digna de um artista finissecular que de um cientista e historiador escrupuloso, preocupado com os fatos. O período acima pode ser entendido como esboço de uma estratégia estética, relegando as pretensões científicas a segundo plano. Ele finaliza o subcapítulo sobre a evolução étnica da população sertaneja, relativizando curiosamente seu raciocínio, baseado nas teorias antropológicas então vigentes. O subcapítulo seguinte (subcapítulo III do 2° capítulo, O Homem ) tem um caráter central e antológico em todo o livro e abre com a famosa frase: "O sertanejo é, antes de tudo, um forte". Todo este trecho é apresentado como a descrição de um quadro. A realidade é imaginada como um desenho, uma pintura, uma escultura que o autor, feito copista, só precisaria reproduzir, ou melhor, traduzir intersemioticamente das artes plásticas para a arte poética. O cronista-cientista capitula diante do pintor-encenador-escritor, tendência assinalada por Gilberto Freyre já nas reportagens de Euclides para o Estado de S. Paulo:
"Porque mesmo nestas notas de reporter elle se mostra o escriptor que procura fazer parar as figuras, nos seus momentos artistica, ou melhor, esculpturalmente mais expressivos e tambem mais dramaticos, para os descrever parados e em plena pompa de suas linhas." [29]
Assim Euclides pára, sustém e fixa o fluxo da história, dividindo-a e subdividindo-a em situações apresentadas como quadros ou cenas que se movem, quase moovies. Os quadros mais ou menos estáticos predominam naturalmente nas duas primeiras partes, mais descritivas, "A Terra" e "O Homem", enquanto que a partir de "A Luta", quando a dramaticidade se intensifica, predominam as cenas. Porém os quadros são sempre dramáticos, enquanto as cenas, até o final do livro, têm sempre algo de pictorial ou estatuário, produzindo oxímoros que resultam da simultaneidade de paralisação e dinamismo. Pensemos, por exemplo, no jagunço negro levado para a degola (p. 536). É conhecida a predileção pelas estátuas e pelo estatuário na cultura do final do século, como aponta o crítico francês Jean Starobinsky. Parece contraditório falar de tendências pictoriais e teatrais ao mesmo tempo, já que a pintura significa estagnação e o drama, movimento. No entanto a epopéia reúne as duas tendências, intercalando na narração de eventos sucessivos longas descrições de quadros e imagens, como ocorre freqüentemente na Ilíada, por exemplo, na famosa descrição do escudo de Aquiles. Em Euclides, porém, já o dissemos, o movimento é flagrado em quadro imóvel, mas de uma imobilidade tensa, dinâmica, prestes a desatar-se, quase explosiva, como, por exemplo, na descrição dos quadros da natureza morta.[30] Os pequenos quadros e os grandes painéis, às vezes panorâmicos, aspiram a mover-se, e as cenas de intensa movimentação são flagrantes, chapas batidas em peripécias, de modo que a arte dramática se torna pictorial e a arte plástica, dramática.[31] Os quadros são cheios de ações, colisões, conflitos contidos prestes a estourarem, graças ao estilo tenso, contorcido, algo expressionista.
Parece-me que o pendor à pictoricidade não é apenas um recurso literário e individual típico de correntes literárias da última virada de século, como o naturalismo e o parnasianismo, e não só um velho recurso retórico para captar o ânimo dos ouvintes. Ele se relaciona com a postura científica do autor. Também na ciência costuma-se isolar partes de um todo para se estudar movimentos, vibrações, ondas, sons, transformações ou fenômenos complexos ou imperceptíveis ao olho ou ao ouvido humanos, processos extremamente rápidos ou lentos, grandes ou pequenos, indo do átomo até às galáxias. Tais processos físicos ou biológicos são transformados em fragmentos momentâneos que são desacelerados ou até parados, já que em sua velocidade original não poderiam ser observados ao vivo; ou são partes da realidade que têm que ser diminuídas ou aumentadas. Quando se trata de seres vivos, o cientista estuda-os depois de mortos, como faz o anatomista, ou mata-os para examiná-los, como faz o entomologista ou o botânico, que leva as plantas secas a seu herbário para melhor analisá-las, o que também significa desenhá-las. O médico bate chapas, o físico faz um oscilograma, o biólogo desenha figuras, todos fotografam ou filmam, com câmera lenta ou acelerada, a fim de captar aquilo que o olho desamparado não vê. No videoteipe é possível mesmo congelar as imagens para estudá-las. Para retratar e realçar de maneira minuciosa ou abstrata os traços essenciais da realidade, fixando ou compondo imagens que de outro modo escapariam a seu olhar, o cientista e o desenhista demonstram, portanto, certas afinidades. E se Euclides tentou o "consórcio da ciência e da arte", não pensou apenas na literatura, mas também no casamento da ciência com a pintura e o teatro, uma pintura e um teatro transfigurados e traduzidos em literatura.
Enriquecida de elementos pictóricos, essa teatralidade não é a mesma da peça de teatro, mas uma teatralidade desenvolvida pela magia da palavra, reforçada por uma oratória ora contemplativa, ora inflamada, ora objetiva, que evoca todas as cenas na mente do leitor, transformado tanto em espectador quanto em encenador, já que é levado a imaginar plasticamente as sugestões do texto. O evocador deste teatro é ao mesmo tempo historiador com atitude de professor, poeta, advogado e acusador perante o tribunal da Civilização e da Posteridade. Em última análise, essa retórica evocadora de quadros e cenas teatrais visa a captar e emocionar o público, constituído dos letrados do Brasil e do mundo. Sentado por assim dizer num vasto anfiteatro ao redor do autor, este público escuta com atenção aquele que declama em voz alta o texto do livro. A arte está aí a serviço da verdade histórica e esta, a serviço da ética política: construção de uma nação civilizada, com direito à vida e à cidadania para todos, e condenação, pelo menos moral, dos assassinos e seus cúmplices, inclusive a indústria bélica européia.
Um drama em cinco atos
Olhemos a composição do livro em sua macro-estrutura. É interessante observar que na edição Aguilar, organizada por Afrânio Coutinho em 1965 e reeditada em 1996, as personagens do livro s±o apresentadas como dramatis personae, ou seja, como personagens de um drama, embora sejam pessoas reais.[32] Realmente a obra é construída de certo modo como um drama em cinco atos, que assim se configuram:[33]
"A Terra", "O Homem", "A Luta": I ato,
"Travessia do Cambaio": II ato,
"Expedição Moreira César": III ato,
"Quarta Expedição": IV ato,
"Nova fase da luta", "Últimos dias": V ato.Ou seja, o primeiro ato seria a exposição do teatro da guerra - metáfora corriqueira na época - e também dos personagens, dos possíveis motivos do conflito e de seu início em Uauá, terminando com a frase significativamente profética: "Estava pronto o cenário para um emocionante drama da nossa história" (p. 284). Na primeira parte deste ato, a própria terra prepara o palco para os homens, os índios, os bandeirantes, os jesuítas, os vaqueiros, os canudenses e os soldados. A terra e seus deuses também intervêm na ação, ajudando os sertanejos, como o fizeram oferecendo-lhes montanhas que funcionam como fortalezas e bastiões. A história natural funciona como cenógrafo, ao passo que a história humana exerce o papel de diretor de teatro, havendo uma estreita cooperação entre os dois. As viagens que o narrador faz, principalmente em A Terra , produzem uma série de quadros e cenas que contempla, preferencialmente a partir de duas tribunas elevadas, dois miradouros, que ajudam a organizar o espaço: o alto da serra de Monte Santo e o morro da Favela. Na apresentação do principal protagonista humano, o sertanejo, o autor dificulta seu próprio trabalho, apresentando o homem do sertão como pouco teatral ao compará-lo com o gaúcho, este, sim, vistoso, garboso, dramático. O livro realiza, portanto, a teatralização de um tipo não teatral. No fundo, a guerra nada tem de grandioso, sublime ou heróico; apesar disso, é encenada como uma grande tragédia. O não-herói, o sertanejo, vai-se revelando como herói único, ao passo que os soldados, treinados para vencer, vão-se revelando ineptos ou criminosos. E só têm algo de heróico quando deixam de ser soldados, quando deixam de matar, por exemplo para salvar a vida de uma criança (p. 561).
Com crescente tensão dramática, o segundo ato nos apresenta a primeira batalha séria, iniciada pela expedição Febrônio de Brito. É uma pequena peça de teatro em si, como todos os atos dessa tragédia que é o livro como um todo, terminando desta vez em farsa: "Os lutadores embaixo seguiam como atores infelizes no epílogo de um drama mal representado. Toda a agitação de dous dias sucessivos de combates e provações tinha o repentino desfecho de uma arruaça sinistra" (p.312). É interessante observar que Euclides atribui de vez em quando aos próprios partidos beligerantes intenções teatrais, um comportamento de espectadores ou até de encenadores. Assim, nos primeiros atos os sertanejos vaiam os soldados, ao passo que no último estes, sim, é que vaiam aqueles. No final do epílogo do segundo ato são mostrados apenas os sertanejos, carregando seus mortos para casa.
O terceiro ato já apresenta uma primeira grande peripécia: a catástrofe da expedição Moreira César, que também se desenrola ela mesma como um drama, com exposição, colisões, retardamentos, subperipécias e um desenlace vergonhoso para o Exército. Tanto este como o inimigo tendem a uma visão teatral dos acontecimentos, como se pode verificar, por exemplo, através do discurso indireto livre do primeiro recontro, ilusoriamente promissor para a tropa:
Foi uma diversão gloriosa e rápida. O inimigo furtara-se ao recontro. Volvidos minutos, a ala tornou à linha da coluna entre aclamações, enquanto o antigo toque de 'trindades' era agora o sinal da vitória, soava em vibrações altíssimas. O comandante-em-chefe abraçou, num lance de alegria sincera, o oficial feliz que dera aquele repelão valente no antagonista, e considerou auspicioso o encontro. Era quase para lastimar tanto aparelho bélico, tanta gente, tão luxuosa encenação em campanha destinada a liquidar-se com meia dúzia de disparos. (p. 345)Mas o desfecho foi uma desilusão:
...toda a população de Canudos contemplava aquela cena dando ao trágico do lance a nota galhofeira e irritante de milhares de assovios estridentes, longos, implacáveis... Mais uma vez o drama temeroso da guerra sertaneja tinha o desenlace de uma pateada lúgubre. (p. 363)A derrota do Exército é uma tragédia, à qual, no entanto, os jagunços reagem como se fosse uma farsa. A partida da tropa de Canudos é descrita quase como uma instrução para um camera-man:
O desfecho foi rápido. A última divisão de artilharia replicou por momentos e depois, por sua vez, abalou vagarosamente, pelo declive do espigão acima, retirando. Era tarde. Adiante até aonde alcançava o olhar, a expedição, esparsa e estendida pelos caminhos, estava, de ponta a ponta, flanqueada pelos jagunços... (p. 363)O ponto de vista fictício desse camera-man não é, como de ordinário, favorável ao Exército, mas aos sertanejos, que vêem a tropa fugindo. E, sendo este ato no fundo outro drama, possui, como todo drama completo, um epílogo, que é uma decoração teatral da via de fuga do Exército, quase uma via crucis, uma exposição blasfêmica e infernal dos caídos encenada pelos conselheiristas, um anticemitério, devendo servir de espantalho para futuras expedições que não tardarão a aparecer. Citemos o ponto alto desse preparo teatral:
[...] Um pormenor doloroso completou esta encenação cruel: a uma banda avultava, empalado, erguido num galho seco, de angico, o corpo do coronel Tamarindo. Era assombroso... Como um manequim terrivelmente lúgubre, o cadáver desaprumado, braços e pernas pendidos, oscilando à feição do vento no galho flexível e vergado, aparecia nos ermos feito uma visão demoníaca. [...] (p. 368)Segue o IV ato, decisivo, embora ainda não traga a decisão final, pois termina com um retardamento causado pelo revés ocorrido no grande assalto de 18 de julho, que por sua vez é narrado no V subcapítulo, de importância central, sendo o mais longo do livro e o único com título próprio: "O assalto". Também este ato é estruturado como um drama. Em sua exposição, o próprio Exército inicia o dia 14 de julho teatralmente, com uma salva, comemorando um feriado internacional e nacional. A este seguem-se outros dias de festa, antecipando a comemoração da vitória tida como certa. Assim termina a exposição da página 446: "Toda a 1a coluna penetrava, reunida, a arena do combate." Depois de muitos percalços e vaivéns, uma peripécia muito especial: novo revés da tropa, sem que isto signifique uma vitória dos canudenses, pois seu resultado é uma continuação do empate que já durava desde fins de junho e se transforma numa guerra de trincheiras, parecida com a de Verdun, vinte anos mais tarde, com imobilidade da frente de combate por mais de três meses. A batalha de 18 de julho, já prenunciada na primeira parte (ver os "higrômetros singulares", ou seja, o soldado e o cavalo mumificados, na p. 112), que deveria trazer a decisão final, funciona como o clássico retardamento do drama, aumentando o suspense. Este revés, no mínimo uma semi-derrota, é apresentado pelo comandante-em-chefe como vitória diante dos olhos da nação, sendo esta aparência desfeita, porém, pela ironia sarcástica do autor.
O V ato do drama - "Nova fase da luta" e "Últimos dias" - apresenta ação menos heróica e mais metódica do Exército, sendo seus verdadeiros heróis os comboios de burros comandados pelo ministro. Os sertanejos têm aí atuação mais lancinante e heróica, e o desenlace definitivo está repleto de avanços, recuos e retardamentos, que aumentam o suspense. Afinal, a relação entre vaiadores e vaiados é invertida por meio de uma cena (p. 505) onde caem as torres da igreja nova, símbolos e ao mesmo tempo baluartes reais da combatividade e da resistência dos sertanejos.
A batalha como ficção real e a ambigüidade do espectador-narrador
A cena mais espetacular, porém, chamada pelo próprio autor de "ato de uma tragédia" e narrada sistematicamente em metáforas teatrais que vão-se tornando denominações próprias é o "complemento do assédio" no dia 24 de setembro de 1897 (p. 524, especialmente a partir da linha 142, até a p. 526, linha 202).[34] Esta cena é vista como espetáculo não só pelo autor como também pelos próprios protagonistas, ou seja, pelo Exército, configurando, portanto, um drama não apenas metafórico, mas real. É o ponto no qual a tendência da própria história de se apresentar como peça de teatro se mostra mais evidente. A cena correspondente, ou seja, a batalha que resulta no fechamento do sítio de Canudos, tem início na página 523, linha 82; mas até a linha 141 da página 524 ela é narrada epicamente, de modo plástico e ilustrativo, é verdade, mas ainda não exatamente como uma peça de teatro, como ato de tragédia (p. 525, linha 154). A partir da linha 142, porém, o narrador enfoca também a parcela temporariamente ociosa do Exército, ou seja, aquela que observa o combate como se estivesse no teatro, a partir do acampamento nos morros circundantes. A narração é feita parcialmente do ponto de vista desses espectadores, criticando-o ao mesmo tempo, de modo implícito. Transcrevamos aqui esta cena, em sua parte expressamente teatralizada (linhas 142-202):[35]
Esta refrega, atroando ao norte, ecoava no acampamento, alarmando-o. Atestadas de curiosos, todas as casinhas adjacentes à comissão de engenharia formavam a platéia enorme para a contemplação do drama. Assestavam-se binóculos em todos os rasgões das paredes. Aplaudia-se. Pateava-se. Estrugiam bravos. A cena - real, concreta, iniludível - aparecia-lhes aos olhos como se fora uma ficção estupenda, naquele palco revolto, no resplendor sinistro de uma gambiarra de incêndios. Estes progrediam constrangidos, ao arrepio do sopro do nordeste, esgarçando-lhes a fumarada amarelenta, ou girando-a em rebojos largos em que fulguravam e se diluíam listrões fugazes de labaredas. Era o sombreado do quadro, abrangendo-o de extremo a extremo e velando-o de todo, às vezes, como o telão descido sobre um ato de tragédia.
Nesses intervalos desaparecia o arraial. Desaparecia inteiramente a casaria. Pelo rasgão enorme, de alto a baixo aberto, divisava-se uma nesga do arraial - bandos estonteados de mulheres e crianças correndo para o sul, em tumulto, indistintos entre as folhagens secas da latada. As baterias da Favela batiam-nos de frente. Os grupos miserandos, entre dous fogos, fustigados pela fuzilaria, repelidos pelo canhoneio, desapareciam, por fim, entaliscados nos escombros, ao fundo do santuário. Ou escondiam-nos outra vez, promanando da combustão lenta e inextinguível e rolando vagarosamente sobre os tetos, os novelos do fumo, compactos, em cúmulos, alongando-se pelo solo, empolando-se na altura, num tardo ondular de grandes vagas silenciosas, adensando-se e desfazendo-se à feição dos ventos; chofrando a frontaria truncada da igreja nova, deixando lobrigar-se um pedaço de muramento esboroado, e encobrindo-o logo; dissolvendo-se adiante sobre um trecho deserto do rio; espraiando-se mais longe, delidos, pelo topo dos outeiros...
As vistas curiosas dos que pelo próprio afastamento não compartiam a peleja, coavam-se naquele cendal de brumas. E quando estas se adunavam impenetráveis, em toda a cercadura de camarotes grosseiros do monstruoso anfiteatro explodiam irreprimíveis clamores de contrariedades e desapontamentos de espectadores frenéticos, agitando os binóculos inúteis, procurando adivinhar o enredo inopinadamente encoberto.
Porque a ação se delongava. Delongava-se anormal, sem o intermitir das descargas intervaladas, o tiroteio cerrado e vivo, crepitando num estrepitar estrídulo de tabocas estourando nos taquarais em fogo. De sorte que por vezes pairava no ânimo dos que o escutavam, ansiosos, o pensamento de uma sortida feliz dos sertanejos, saindo pelas tranqeiras rotas ao norte. Os ecos dos estampidos, variando de rumos, torcidos em ricochete pelos flancos das colinas, subindo de intensidade no nevoeiro compacto, desviavam-se. Estalavam-lhes perto, à direita e à retaguarda, dando a ilusão de um ataque do inimigo escapo e precipitando-se em tropel, num revide repentino. Trocavam-se ordens precípites. Formavam-se os corpos de reserva. Cruzavam-se inquirições comovidas...
Ouvia-se, porém, longínquo, um ressoar de brados e vivas. Corria-se aos mirantes acasamatados. Retomavam-se os binóculos. Uma rajada corria, em sulco largo e límpido, pela cerração adentro, talhando-a de meio a meio, e desvendando de novo o cenário.
Era um desafogo. Vozeavam aclamações e aplausos. Os jagunços recuavam.
Por fim se viu, estirando-se ao caminho do Cambaio, uma linha de bandeirolas vermelhas.
Estava bloqueado Canudos.Segue então até a linha 218 uma espécie de epílogo, que resume em linguagem referencial os resultados desta refrega e os detalhes do fechamento do cerco, culminando no balanço final: "A insurreição estava morta" - a última e dramática frase do penúltimo capítulo de Os Sertões.
Trata-se de um combate vivenciado não só pelo narrador, mas também pelo próprio autor, que àquela data estava em Canudos. Neste trecho o narrador não identifica sua presença no campo de batalha, não aparecendo na primeira pessoa do singular ou do plural, como é o caso raras vezes. Mas ele não é o único espectador. Este combate se presta perfeitamente a ser descrito e narrado como uma cena de teatro, porque há espectadores de verdade. Um dos partidos beligerantes se divide em dois grupos: um que age, que luta e outro que observa, torce pela vitória dos companheiros, desejando a derrota dos inimigos. Aquele que se pode dar ao luxo de transformar a batalha em espetáculo e a si mesmo em espectador pertence, naturalmente, ao partido que está com a vantagem militar, o Exército. Diante da vitória iminente, a guerra se apresenta aos soldados sob um aspecto lúdico, de modo que metade do Exército pode-se transformar em público, considerando a guerra quase como um divertimento, um jogo esportivo, um passatempo. Em princípio o grosso do trabalho está feito e a guerra, decidida, embora ainda não de fato.
Nesta cena, podemos observar mais uma vez a imbricação entre pictoricidade e dramaticidade. Há uma sucessão rápida e dramática de eventos, que são sustidos, contidos ou paralisados para poderem ser descritos como quadros. Esta tendência descritiva na narração de uma seqüência de fatos se manifesta no uso sistemático do imperfeito como tempo gramatical do passado, em vez do pretérito perfeito, como seria de se esperar num relato sobre um drama. Além do imperfeito expressar a repetitividade e a rotina de muitas situações de combate, ele também desacelera a velocidade dos eventos, permitindo um olhar contemplativo e preocupado com detalhes, paciente e exato da realidade, além de manifestar certa subjetividade, o gesto explicativo, deítico, convidando o leitor a acompanhar pormenorizadamente os acontecimentos. Por vezes o uso do imperfeito parece até estranho, um oxímoro sintático, por assim dizer, como por exemplo nas linhas 154-159, que citamos outra vez:
Diante dos espectadores estendia-se, lisa e pardacenta, a imprimadura, sem relevos, do fumo. Recortava-a, rubro e sem brilhos, - uma chapa circular em brasa - um Sol bruxuleante, de eclipse. Rompia-a, porém, de súbito, uma lufada rija."Rompia-a, porém, de súbito [...]" é uma combinação estranha de um advérbio expressando rapidez e surpresa e um tempo gramatical que enfatiza o caráter lento, estagnado ou processual de uma situação, criando assim a ilusão da simultaneidade entre o desenrolar da cena e sua observação pelo espectador-narrador. Estranha igualmente é a expressão "lufada rija", um verdadeiro oxímoro, já que "lufada" expressa um processo dinâmico, ao passo que "rijo" caracteriza situação estática, fixa, estagnada. Também se poderia dizer que "lufada" representa o elemento dramático e "rija", o elemento pictorial.
Esta cena é um resumo de toda a guerra: de um lado os sertanejos encurralados, acuados, bombardeados pela artilharia dos soldados-espectatores e combatidos pela infantaria do lado oposto, derrotados quase, morrendo, mas lutando sozinhos como leões contra o agressor, que tem como aliados o país inteiro e o resto do mundo. E o tiro de misericórdia não tardará a chegar. Esta vitória parcial é a condição decisiva e o prenúncio da vitória definitiva do Exército. A partir da linha 142 da página 524, o narrador assume o ponto de vista dos soldados-espectadores, embora não haja aí uma identificação emocional com estes. Pois os não-combatentes entre os soldados comportam-se como espectadores de uma peça sobre um conflito entre dois grupos inimigos, como se aquilo fosse um combate de teatro, fictício, uma farsa ou um dramalhão, uma luta de boxe, com mocinhos e vilões, entre os quais as simpatias fossem claramente repartidas. Só que no teatro ou no esporte ninguém morre de verdade. É um grande erro encarar esta cena real como uma ficção estupenda. E no fim do combate, no fechamento do cerco a Canudos, que sela sua derrota, os próprios soldados também se comportam no palco como espectadores, aclamando-se a si mesmos: "Ouvia-se, porém, longínquo, um ressoar de brados e vivas" (p. 526), aplausos que logo depois se fundem com os dos companheiros nos camarotes.
Essas exclamações, não citadas literalmente, são as únicas palavras, rudimentares, que se podem ouvir. Pois esse espetáculo, que se desenrola sob os olhos do comandante-em-chefe, dos oficiais e dos soldados que não combatem naquela hora, bem como do "narrador sincero" Euclides da Cunha e do leitor, é um espetáculo mudo. Não se ouvem diálogos, como normalmente os há no teatro, porque realmente nunca houve diálogo, comunicação ou negociação entre o Exército e a comunidade de Canudos, e, sim, vaias e palavrões; mas também não se ouvem as palavras trocadas dentro de cada partido beligerante por causa da distância, o que dá prioridade à percepção visual da cena, muda, exceto o ruído de canhões e fuzis que substituem as palavras. A ausência das vozes humanas facilita também a estetização do combate, pois não se ouvem gritos de dor ou de luto.
Poder-se-ia especular sobre a função das palavras do próprio narrador, que só a posteriori se mostra eloqüente diante dessa tragédia silenciosa, ou seja, apenas enquanto cronista-espectador, mas não como personagem-espectador da cena. Como tal permanece mudo. Como testemunha, o autor deve ter presenciado os acontecimentos sub specie aeternitatis, ou, pelo menos, sub specie historiae, e não como agente ou participante ativo. Observava tudo tendo em mente a futura narrativa, através da qual recuperaria a palavra paralisada na época. Parece-me que tanto no trecho em questão, como em todo o livro, de modo geral, à medida que se transforma em narrador, Euclides retoma e amplia o papel do coro da tragédia clássica, comentando os acontecimentos, lamentando as vítimas, acusando os vencedores, sensibilizando os espectadores-leitores, invocando os valores da Nação e da Civilização, clamando pelo Destino, dirigindo-se à posteridade e apelando para o juízo da História.
Implicitamente, pelo menos, o narrador reprova as manifestações de triunfo. É evidente a falta de competência ética e estética dos soldados-espectadores, que não apenas se comportam diante desse combate real como se fosse uma peça de teatro, mas atuam nesse teatro como se fosse ele uma farsa ou um dramalhão, de qualquer forma um espetáculo de entretenimento. O narrador e com ele os letrados do Brasil e de todo o mundo também assumem a perspectiva de espectadores, sendo vizinhos e cúmplices dos soldados, esperando e desejando com eles a vitória do Exército, embora ao mesmo tempo com certa distância. De modo que os leitores, assim como o narrador, ficam dilacerados entre duas perspectivas e atitudes: a dos espectadores-soldados e a de espectadores destes soldados-espectadores. Pois estes representam um espectáculo dentro do espetáculo, desempenhando o papel escandaloso de público indigno, mal-educado e bárbaro. Euclides cria, portanto, uma espécie de metateatro, encenando criticamente a batalha teatralizada pelos soldados-espectadores. Ele nos faz sentir o mesmo constrangimento que nos acometeria se, na peripécia de um drama de Sófocles, um espectador ao nosso lado começasse a falar alto, a apoiar um dos partidos conflitantes, vaiando, dando gargalhadas, batendo palmas. O que nos irrita tanto quanto ao narrador é que seus co-espectadores não sentem, não avaliam, nem entendem o que acontece no palco. O que se desenrola diante de seus olhos e dos nossos, nas ruínas fumegantes de Canudos, é um fato real, uma tragédia, como já apontamos, em que não há necessariamente personagens bons e maus, amigos e inimigos claramente distribuídos, como ocorre em geral numa comédia, num jogo, numa luta de gladiadores, numa ficção. A reação desses espectadores incultos e insensíveis, não está à altura nem do gênero nem do tema, pois eles não têm consciência do trágico, como o autor, nem se dão conta de que no palco da guerra está-se destruindo o "cerne de uma nacionalidade", a "rocha viva da nossa raça" (p. 559). Eles não se emocionam com a desgraça dos vencidos, com a derrota de uma comunidade heróica, que tinha como fim a instalação de um projeto social fascinante, ao mesmo tempo condenado e admirado um pouco às escondidas pelo próprio Euclides, e, graças à sua força de persuasão, também por nós, seus leitores.
O distanciamento implícito do narrador em relação aos soldados-espectadores, que revela sensibilidade estética e até alguma compaixão para com os perdedores, não deixa de ser problemático por outro lado. O narrador invisível e com ele nós, seus leitores, somos induzidos a ver o ocaso de Canudos com um olhar teatral e a criticar-nos ao mesmo tempo, justamente porque, além do horror e do luto, sentimos também prazer estético, mais refinadamente que os soldados, é certo, um prazer mesclado de consciência de culpa. Nem por isso, entretanto, o narrador-espectador intervém junto a seus companheiros militares, nem solta nenhum grito de protesto, nem roga para que sejam poupadas pelo menos as mulheres e as crianças. Afinal, ele pertence, como nós, ao mesmo partido beligerante. Esta vacilação entre a perspectiva dos espectadores-soldados e a rejeição indignada desta mesma perspectiva, entre a camaradagem do narrador para com os militares e a condenação implícita destes expressa a ambigüidade dos intelectuais progressistas, que muitas vezes defendem o povo emocional e verbalmente, aliando-se na prática às classes dirigentes, seja por ideologia ou necessidade profissional, seja por ambição. O narrador não se distancia dos soldados enquanto combatentes: estes têm que lutar, que matar, que vencer, o que não lhes dá o direito de vaiar, patear, dar brados e vivas.[36] No entanto, depois da luta, teriam que se vestir de luto como o próprio narrador, como o autor, como nós, leitores. Se a matança tem que acontecer, que seja praticada com sentimento de culpa; esta, sim, seria uma atitude digna diante de uma realidade que por si só é uma tragédia e que só como tal poderia ser representada. Se a Nação teve que cometer um crime, que pelo menos se redima através do respeito pelos caídos.
A percepção da guerra como teatro, tradicional recurso literário que se encontra também, embora em grau menor e mais incipiente, nos outros escritos da época sobre Canudos, é fomentada pelo uso de armas de longa distância e especialmente pela artilharia, que no caso está ao lado dos espectadores, do narrador e de certa forma também do leitor. A perspectiva do narrador é muito semelhante à do soldado artilheiro, que, embora combatente, pode contemplar com certa serenidade e isenção o teatro da guerra, metáfora internacionalmente usada na época, já que as conseqüências de sua ação militar não o afetam diretamente, sobretudo quando dispõe de superioridade total de armamento. É este o caso do Exército em Canudos: só um dos partidos beligerantes dispõe de canhões, através do quais, a partir dos camarotes dos espectadores, envia a morte ao palco da batalha, sem que as vítimas possam replicar. Foi também a superioridade das armas de longa distância que permitiu aos americanos transformar a guerra do Golfo em espetáculo televisado.
Há outro motivo dessa teatralização, que aproxima o escritor-historiador do estrategista: ambos necessitam de uma visão de conjunto da multiplicidade aparentemente caótica dos acontecimentos simultâneos e sucessivos, a fim de poder organizá-los e ordená-los mentalmente no espaço e no tempo; o militar, para dirigi-los, o autor, para narrá-los. Isto vale de modo especial para Euclides da Cunha, tenente reformado e companheiro desde a Escola Militar de muitos oficiais em Canudos, não podendo se abster, por este motivo, de dar palpites em muitos trechos de seu livro aos comandantes das expedições. Em Os Sertões há vários enfoques na narração de combates: há o olhar de baixo, do participante envolvido no caos, não entendendo nada do que está acontecendo, visão esta cuja versão extremada seria aquela que tem Fabrice del Dongo da batalha de Waterloo em La Chartreuse de Parme, de Stendhal; mas há também a visão aquilina do perito militar, para o qual a teatralização é um instrumento de organização dos acontecimentos confusos e opacos. E justamente a batalha de 23/24 de setembro é narrada em três trechos, cada vez de uma maneira diferente:
a) numa perspectiva de dentro do campo de batalha, com enfoques variáveis tanto a partir do ponto de vista dos sertanejos como daquele dos soldados, enfim, a partir de Canudos; aí há pouca visão de conjunto, embora o narrador seja onisciente e ficcional, pois é claro que o autor não entrou no arraial naquele dia (p. 523, linha 82, até p. 524, linha 141);
b) como espetáculo visto a partir de um ponto de vista fixo, ou seja, de cima, do quartel-general, que ficava a leste de Canudos, com o bairro Casas Vermelhas tomado naquele dia pela tropa, ao norte, e os canhões do Morro da Favela ao sul, sendo os últimos defensores de Canudos abatidos a meio caminho; tal encenação, proporcionada pelos próprios fatos, dava uma perfeita visão estratégica e global da guerra, incluindo a reação dos soldados não combatentes; embora visto por eles como ficção, há nesse episódio relativamente pouca ficcionalização, pois o narrador, sem ser onisciente, só conta o que o autor realmente poderia ter visto (p. 524, linha 142, até p. 526, linha 202, com epílogo até linha 218);
c) como visão de conjunto, mas focalizando apenas a ação coletiva dos defensores de Canudos, representada como espécie de corrente de águas ou maré, sem metáforas teatrais, sem abranger o Exército e sua visão da batalha (p.529, linha 1, até p. 531, linha 89).
Epifania e escárnio - epílogo
A força das imagens euclidianas também se deve a seu caráter alusivo de imagens quase arquetípicas ou de cenas antiquíssimas do imaginário ocidental, que são relembradas mais ou menos conscientemente pelos leitores. É curioso observar que este autor, que se considerava ateu e que, como jornalista, se desculpava junto a seus leitores por ter assistido a uma missa,[37] se tenha valido tão amplamente de recursos estilísticos, mitos e motivos de origem religiosa, bíblica ou pagã, imagens primordiais da Humanidade. A forte impregnação religiosa do livro não se deve portanto unicamente a sua temática, ou seja, uma guerra contra um movimento camponês sócio-religioso, mas também ao efeito estético e quase retórico almejado pelo autor, que escreve um livro vingador, de ataque.[38] Sua intenção é freqüentemente a de impressionar, comover, entristecer ou indignar o leitor. Quando o narrador evoca, por exemplo, o que acontece com a cortina sobre o teatro da guerra, com essa "imprimadura, sem relevos, do fumo", percorre-nos um calafrio vindo das profundezas de nossa cultura e de nossa emocionalidade:Recortava-a, rubro e sem brilhos - uma chapa circular em brasa - um Sol bruxuleante, de eclipse. Rompia-a, porém, de súbito, uma lufada rija. Pelo rasgão enorme, de alto a baixo aberto, divisava-se uma nesga do arraial [...].A sugestividade da cena se deve a seu fundo bíblico, a sua ligação com os acontecimentos na hora da morte de Jesus, narrados assim pelo evangelista Lucas: "E era já quase a hora sexta, e houve trevas em toda a terra até a hora nona, escurecendo-se o sol; e rasgou-se ao meio o véu do templo".[39] E na versão do evangelista Mateus:
"E Jesus, clamando outra vez com grande voz, rendeu o espírito. E eis que o véu do templo se rasgou em dois, de alto a baixo; e tremeu a terra, e fenderam-se as pedras. E abriram-se os sepulcros, e muitos corpos de santos, que dormiam, foram ressuscitados[...]".[40]O paralelismo é patente: a batalha ocorre um ou dois dias depois da morte do Bom Jesus, comunicada ao leitor duas páginas antes, de modo que se pode dizer, aproximativamente, que à sua morte se seguiu o eclipse. A vinculação cronológica entre a morte do Conselheiro e o rasgar-se do véu sobre a "Jerusalém de taipa" é ainda mais estreita, chegando a ser quase simultânea na consciência do narrador e dos soldados naquele dia, já que durante a batalha o Exército não sabe da morte do Conselheiro que é, no entanto, muito provável.[41] Justamente no fim do dia 24 é que surge o boato de que ele teria morrido (p. 532), o que vem a ser confirmado no dia 2 de outubro por Antônio Beatinho (p. 564). Isto significa que os espectadores, incluindo o narrador-espectador, poderiam ou até deveriam pensar que a agonia do arraial fosse acompanhada ou precedida da morte de Antônio Conselheiro, associando o fim de Canudos com o de seu líder-fundador. Pois o movimento de Canudos realmente morrera: "A insurreição estava morta". Embora hiperbolicamente - pois a guerra ainda durará cerca de duas semanas, além das possíveis dúvidas a respeito do caráter insurrecional da comunidade -, a última frase deste sub-capítulo traduz uma verdade profunda. Realmente, em linhas essenciais, o Conselheiro e seus seguidores morreram no dia do complemento do assédio, tendo sido este fato que tornou impossível a fuga dos últimos sobreviventes, dando garantia absoluta e irrevogável da vitória do Exército. O dia 23 de setembro selou a condenação do fim de Canudos enquanto movimento e comunidade. Em termos dramatúrgicos, tem sua lógica o fato deste trecho finalizar o capítulo "Nova fase da luta", que trata da decisão da guerra.
Em termos de ação do Exército, o capítulo seguinte, "Últimos dias", é simplesmente um epílogo, levando-se em conta que o final do enredo não só já está inexoralmente delineado pela trama do livro como é conhecido pelo leitor, porque se trata de uma história real, extra-literária e bem divulgada. Como todo bom dramaturgo, porém, Euclides não abre mão de retardamentos, aumentando o suspense, evidenciando e até exagerando as dificuldades da vitória final, principalmente o heroísmo do sertanejo: "O inimigo desairado revivesceu com vigor incrível" (p. 529). Também é uma espécie de ressurreição. É curioso que a batalha que leva ao complemento do cerco e é tão teatralmente vivida pelos soldados e encenada tanto por estes como pelo autor, tendo terminado aparentemente com o triunfo total do Exército, é curioso que esta batalha na realidade continue. No capítulo seguinte o leitor se dá conta de que o final do capítulo anterior ("Nova fase da luta"), que parecia coincidir com o fim da batalha decisiva, foi apenas um truque do autor. Como o fio dos acontecimentos continua, ele não pode ignorá-lo, retomando-o no final do capítulo seguinte, intitulado "Últimos dias". Em outras palavras, ao desenlace daquele "ato de tragédia" (p. 525) não corresponde nenhuma pausa no plano dos eventos reais, ou seja, dos combates.
Por que esta interrupção do fluxo narrativo? Certamente para dar maior destaque ao fechamento do cerco, que, na verdade, como o leitor surpreso verá em seguida, não ocorre no final do dia, mas já no começo da tarde, nem dá um ponto final à "refrega" (p. 524), concluindo, porém, uma fase da guerra e coroando os esforços do Exército, iniciados já em fins de junho, portanto há três meses. Tal sucesso merece o realce, o ponto de exclamação que só um hábil encenador da História como Euclides da Cunha saberia dar. Este corte do fluxo narrativo, porém, também é acompanhado de uma mudança na técnica, pois o resto da batalha, contado no capítulo seguinte, deixa de ser apresentado como cena de teatro, embora continue sendo encenado, ou seja, narrado de modo plástico e presentificador. As metáforas teatrais cedem lugar a metáforas aquáticas e marítimas, como já apontamos. O conjunto dos defensores de Canudos age como "uma vaga revolta", desencadeando-se num "tumulto de voragem" contra os sitiantes, que formam uma espécie de barragem contra o "torvelinho furioso" dos canudenses (p. 529/530), o que é quase um prenúncio da barragem que o Exército e o DNOCS vieram a construir posteriormente, no final dos anos sessenta, a fim de represar, em vão aliás, as vagas revoltas da memória de Canudos.
Se a continuação da batalha do dia 23 de setembro, após o fechamento do cerco, não mais é narrada de forma teatral, isto se dá também porque os soldados-espectadores se vêem repentinamente forçados a abandonar a platéia e os camarotes, dada a combatividade ressurrecta dos canudenses. Os espectatores são forçados a se transformar em combatentes, substituindo o olhar curioso anterior pela ansiosa preocupação de se proteger das balas daqueles que, embora aparentemente vencidos, resistiram de maneira tão feroz que seu "paroxismo estupendo acobardava os vitoriosos" (p. 531).
O destino dos canudenses está, porém, selado, é só um "estrebuchar dos vencidos" (p. 527). No final, prosseguindo as reminiscências bíblicas, ocorre até uma espécie de ressurreição simbólica e caricaturesca do "Messias de feira" (p. 372), empreendida pelo Exército: "Desenterraram-no cuidadosamente. [...] e a face horrenda, empastada de escaras e de sânie, apareceu ainda uma vez ante aqueles triunfadores" (p. 572). No caso bíblico, os fariseus e as autoridades romanas pelo menos não profanaram o crucificado, permitindo a José de Arimatéia sepultá-lo dignamente. E depois, quando Jesus sai do túmulo, retorna à vida e passa a ser eterno, tendo a sua epifania. Ao contrário, a saída do túmulo que o Exército proporciona ao "Bom Jesus" de Canudos é uma profanação, um sacrilégio, uma paródia de ressurreição. Na visão dos Canudenses e talvez até na de Euclides, o Anticristo se arroga funções divinas, desenterrando o Conselheiro, não para provar que ele está vivo, mas para certificar-se de que está morto. E a epifania acontece como duplo escárnio, tanto por meio da visão da cabeça decepada e ostentada como também através da fotografia, ambas usadas como meios de identificação e análise, mas também também para fins sensacionalistas.[42]
Os dois objetos têm, no entanto, destino não calculado pelo Exército, testemunhando contra ele próprio. Levar a cabeça do Conselheiro para a grande cidade a fim de expô-la publicamente, como dá a entender Euclides, e ao mesmo tempo para submetê-la a exame científico é uma encenação macabra e indigna da missão civilizatória reclamada pelos militares, relevando-os no mesmo nível bárbaro dos canudenses. Já apontamos que estes, após sua vitória sobre a terceira expedição, a de Moreira César, haviam alinhado, em "encenação cruel", "nas duas bordas da estrada, as cabeças, regularmente espaçadas, fronteando-se, faces volvidas para o caminho", assim como tinham "erguido num galho seco, de angico, o corpo do coronel Tamarindo", "feito uma visão demoníaca" (p. 368). O Exército tenta apresentar o Conselheiro também como visão demoníaca, além de troféu de guerra e prova de morte do "famigerado e bárbaro" agitador (p. 572). Anos mais tarde, o crânio do Conselheiro foi destruído num incêndio ocorrido na Faculdade de Medicina de Salvador. A fotografia, porém, sobreviveu, virando a peça mais conhecida e divulgada do álbum do fotógrafo Flávio de Barros.[43] E paradoxalmente, numa curiosa analogia com outro libertador malogrado das massas camponesas da América Latina, o Che, a fotografia desse mártir, embora encomendada por seus assassinos, assemelhando-se a representações populares de Cristo, propagou a imagem do Conselheiro como ícone das esperanças de salvação e renovação, dentro e fora do âmbito religioso, contribuindo para sua imortalidade. Basta pensar no movimento dos sem-terra, que considera o fundador de Canudos como um dos precursores da organização do povo do campo na luta por sua libertação. No caso do líder sertanejo, a fotografia é o único retrato autêntico que existe, de modo que um personagem importante da história brasileira sobrevive em termos imagéticos apenas como morto, ainda que extremamente ativo e influente. É com o desfile do crânio ante os atores e leitores, espetáculo bárbaro de triunfo guerreiro e ao mesmo tempo ritual de pesquisa científica, que tanto o Exército como Euclides concluem suas encenações da guerra de Canudos, sendo que a encenação do escritor engloba criticamente a de seus colegas militares.[44] Com sua força imagética e teatralizadora, a história literarizada transforma o passado em história, esconjurando o esquecimento, transfigurando e eternizando eventos e personagens. Graças, em grande parte, ao livro de Euclides da Cunha, esse demiurgo da memória, o Conselheiro e seu povo tiveram imediata ressurreição e repetidas epifanias, que foram confirmadas mais uma vez em 1997, no centenário de Canudos. A cada releitura de Os Sertões, ficamos comovidos, escandalizados e entristecidos ao ver evocados diante de nossos olhos e ouvidos, através da magia verbal presentificadora do escritor-orador-encenador Euclides da Cunha, os painéis e as cenas daquele fascinante projeto social e de seu trágico malogro.
Notas:[1]Este artigo se baseia em várias palestras minhas sobre temas afins, a primeira sobre "Metáforas pictoriais e teatrais em Os Sertões", proferida na Casa das Culturas do Mundo (Haus der Kulturen der Welt), em Berlim, em julho de 1995, por ocasião de um simpósio intitulado "História como encenação, o caso de Os Sertões de Euclides da Cunha". Dei outras palestras sobre a temática na Universidade Federal do Ceará e no IFCS da Universidade Federal do Rio de Janeiro, em setembro de 1996, na Casa Euclides da Cunha, em São José do Rio Pardo, e na Universidade Federal do Paraná, na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, na USP e na PUC de São Paulo, na Universidade Federal do Sergipe, no Museu da República do Rio de Janeiro, em agosto, setembro e outubro de 1997. Alguns ítens centrais foram discutidos com meus colegas do grupo de trabalho interdisciplinar e internacional sobre Literatura e História, "Clíope", num simpósio organizado pelo Centro Ángel Rama da USP e realizado em Campos do Jordão (SP), em agosto de 1997. Agradeço a eles, a Haroldo de Campos e a Isabel Lustosa por suas valiosas perguntas e sugestões.
[2] Por exemplo em: José Calasans, "Canudos não euclidiano: fase anterior ao início da Guerra do Conselheiro", in: José Augusto Vaz Sampaio Neto et alii, Canudos. Subsídios para a sua Reavaliação Histórica. Rio de Janeiro, Fundação Casa de Rui Barbosa, 1986, p. 1-21. Ver também Robert M. Levine, Vale of Tears: Revisiting the Canudos Massacre in Northeastern Brazil, 1893-1897, Berkeley, Los Angeles, Oxford, University of California Press, 1992, p. 1-10, 59-65. Em seu compreensível e necessário ceticismo crítico em relação às fontes, Marco Antonio Villa me parece ir longe demais, quando chama o impacto de Os Sertões de "danoso"; se o foi, isto é resultado de certas leituras inadequadas deste clássico, que não levam em conta a sua literariedade (ver Marco Antonio Villa, Canudos: O povo da terra. São Paulo, Ática, p. 7, ver também p. 8-13, 246-265). Mais complacente com Euclides da Cunha se mostra Frederico Pernambucano de Mello (Que foi a guerra total de Canudos, Recife: Stahli; Zürich: Stähli, 1997, por exemplo na p. 233).
[3]Para se ter uma idéia da avalanche de publicações sobre Canudos, na época e depois, ver: José Augusto Vaz Sampaio Neto et alii, Canudos: Subsídios para a sua reavaliação histórica, Rio de Janeiro, Fundação Casa de Rui Barbosa/Monteiro Aranha, 1986, p. 259-423. Ver também nota 10 deste artigo.
[4]Frei João Evangelista de Monte Marciano, Relatorio apresentado pelo Revd. Frei João Evangelista de Monte Marciano ao Arcebispado da Bahia sobre Antonio Conselheiro e seu sequito no arraial dos Canudos. Bahia: Tipografia do "Correio de Noticias", 1895; edição facsimilada, apresentação de José Calasans Salvador: Centro de Estudos Baianos da Universidade Federal da Bahia, 1987. Publicado também em: E. Diatahy B. de Menezes / João Arruda (orgs.): Canudos. As falas e os olhares, Fortaleza: UFC, 1995, p. 126-139.
[5]É curioso que no mesmo ano da guerra de Canudos tenha acontecido outro ato fundador da República, desta vez no plano cultural, ou seja, a criação da Academia Brasileira de Letras, vinculada de certa maneira ao conflito, já que pelo menos dois autores entraram na ilustre assembléia de imortais graças a livros sobre essa mesma guerra civil: não só Euclides da Cunha, mas também o general Emídio Dantas Barreto.
[6] Aí também Euclides parece dar preferência a relatos pictoriais e cênicos, por exemplo na p. 218 a "lenda arrepiadora" do suposto "assassinato da esposa e da própria mãe" por parte de Antônio Conselheiro, que é um pequeno dramalhão. E na p. 227 é relatada, no presente histórico, uma cena que podemos imaginar como fixada por um pintor primitivista, e em cuja facticidade o "narrador sincero" parece acreditar, devido à seriedade e confiabilidade dos informantes, pois garante ter ouvido "o estranho caso a pessoas que se não haviam deixado fanatizar"; e é só no final do episódio que se revela seu traço ficcional, não comentado pelo narrador: "Ao chegar à Santa Cruz, no alto, Antônio Conselheiro, ofegante, senta-se no primeiro degrau da tosca escada de pedra, e queda-se estático, contemplando os céus, o olhar imerso nas estrelas... A primeira onda de fiéis enche logo o âmbito restrito da capela, enquanto outros permanecem fora ajoelhados sobre a rocha aspérrima. O contemplativo, então, levanta-se. Mal sofreia o cansaço. Entre alas respeitosas, penetra, por sua vez, na capela, pendida para o chão a cabeça, humílimo e abatido, arfando. Ao abeirar-se do altar-mor, porém, ergue o rosto pálido, emoldurado pelos cabelos em desalinho. E a multidão estremece toda, assombrada... Duas lágrimas sangrentas rolam, vagarosamente, no rosto imaculado da Virgem Santíssima...". Estamos citando da seguinte edição: Euclides da Cunha, Os Sertões, edição crítica de Walnice Nogueira Galvão, São Paulo, Brasiliense, 1985.
[7] Uma caracterização concisa e convincente da composição e do estilo de Os Sertões se encontra em Franklin de Oliveira, Euclydes. A Espada e a Letra. Uma Biografia Intelectual. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1983, especialmente os capítulos: "Um problema de ontologia literária" (p. 13 ff.) e "O Universo verbal de Os Sertões" (p. 47 e seguintes). A fantasia euclidiana é chamada de "exata", oxímoro tipicamente euclidiano (p. 26).
[8] Numa pesquisa da revista Veja, publicada em 23 de novembro de 1994, quinze conhecidos intelectuais brasileiros foram consultados sobre os livros considerados mais representativos do país, tendo Os Sertões recebido o maior número de votos. Em janeiro de 1995, a tradução alemã desta obra, publicada em outubro de 1994 sob o título Krieg im Sertão (editora Suhrkamp, de Frankfurt am Main), ficou em terceiro lugar na Bestenliste, a lista mensal dos melhores livros recém-publicados em língua alemã, através de pesquisa realizada pela emissora de televisão alemã Südwestfunk entre 35 críticos alemães, suíços e austríacos. Isto é admirável, em se tratando de um mercado editorial como o alemão, que conta com setenta mil novos títulos por ano, entre os quais dez mil são de ficção. Nas Universidades dos Estados Unidos, Rebellion in the Backlands, traduzido por Samuel Putnam, publicado pela primeira vez em 1944 pela Chicago University Press, é um must nos cursos de letras, antropologia e história, sendo um longseller desde 1944, com mais de doze edições.
[9] Euclides comenta fontes que não leu, utiliza-se de fontes sem crédito, reproduz boatos, transcreve diários de soldados que deixa no anonimato, não fazendo nenhum esforço para preservar algumas das fontes das quais lança mão, como esses diários, cartas de jagunços ou as prédicas do Conselheiro. Tem mais zelo documental quando se trata de reproduzir poesia popular, fontes marginais para um historiador profissional. Sobre a relação de Euclides da Cunha com suas fontes, ver Leopoldo Bernucci, A Imitação dos Sentidos. Prógonos, Contemporâneos e Epígonos de Euclides da Cunha. São Paulo, Edusp, 1995.
[10] Ver, por exemplo, Paulo Emílio Matos Martins, "O rei dos jagunços e a historiografia de Canudos" in: Manoel Benício, O Rei dos Jagunços. Crônica de costumes sertanejos sobre os acontecimentos de Canudos. Rio de Janeiro, Jornal do Commercio/Fundação Getúlio Vargas, 2a ed., 1997, p. XI-XVII (1a ed. de 1898).
[11] André Jolles. Formas Simples: Legenda, Saga, Mito, Ditado, Caso, Memorável, Conto, Chiste. Tradução de Álvaro Cabral. São Paulo, Cultrix, 1976.
[12] Augusto e Haroldo de Campos. " Os Sertões" dos Campos. Duas vezes Euclides. Rio de Janeiro, Sette Letras, 1997.
[13] Walnice Galvão escreveu que ele permite a leitura de dois livros em um só: "A repetição incessante de afirmações contraditórias oferece a possibilidade de se ler dois livros num só. Num deles, os rebeldes são heróicos, fortes, superiores, inventivos, resistentes, impávidos. No outro eles são ignorantes, degenerados, racialmente inferiores, anormais, atributos que impregnam também, por extensão, seu líder Antônio Conselheiro e o próprio arraial onde viveram." (Walnice Nogueira Galvão, "Os Sertões para estrangeiros", in: W.N.G.: Gatos de outro Saco. Ensaios Críticos. São Paulo, Brasiliense, 1981, p. 62-84, p. 81). Também em relação a numerosos outros aspectos, concernentes tanto ao conteúdo quanto à forma, este livro reúne, muitas vezes de forma paradoxal e sem mediação, atitudes divergentes ou opostas, do que resulta uma grande tensão intelectual, emocional e estilística. É uma colcha de retalhos com elementos variadíssimos, heterogêneos e cambiantes, mas ao mesmo tempo uma colcha de retalhos surpreendentemente coerente e unida.
[14] Na realidade social, os começos são muitas vezes menos claros que os fins, também no caso de Canudos. Pois o Conselheiro veio formando seu séquito durante vinte anos, até que este se transforma aos poucos em comunidade, que foi assentada duas vezes por ele como "cidade", em Bom Jesus (hoje Crisópolis) e em Canudos (denominada por ele Belo Monte, talvez uma reminiscência do nome de um morro perto de Quixeramobim, sua cidade natal no Ceará).
[15] Machado de Assis entreviu o caráter virtualmente literário dos acontecimentos de Canudos, sugerindo numa crônica da Gazeta de Notícias, de 14 de fevereiro de 1897, que algum Coelho Neto os romanceasse. Ver Clímaco Dias, "Canudos: poesia e mistério de Machado de Assis", in: Revista Canudos, Salvador: UNEB, Ano I, n° 1, p. 91-103, especialmente p. 101.
[16] A distinção entre a própria realidade e sua representação históriográfica e literária em Os Sertões e outros escritos é naturalmente esquemática, simplificadora e, em última análise, insustentável. Pois sabemos que para o narrador não existem fatos crus, independentes de sua representação escrita, iconográfica, fônica etc. Ainda que ele seja testemunha ocular ou auricular, ele não capta o fato em si, mas tem a sua disposição as impressões, coordenadas por informações ou experiências prévias, tudo isso se transformando logo em recordações, uma matéria bastante fluida e aberta a muitas interpretações. As fontes históricas já interpretam, alteram ou até inventam fatos, o que diminui a diferença entre fontes e análises históricas, sem eliminá-la de maneira alguma. Aqui porém não é o lugar apropriado para aprofundar esta discussão. Entenda-se por "a própria realidade" simplesmente, portanto, o conjunto de notícias que chegavam para as pessoas, as quais as transformavam em representações mais elaboradas, sejam lendas, sejam livros. Euclides tinha uma consciência clara desse processo, através do qual impressões, notícias, boatos se transformavam em imaginários mais ou menos ficcionalizados, processo que ele mesmo documentava, promovia ou criticava constantemente.
[17] Carta a José Veríssimo in: Walnice Nogueira Galvão / Oswaldo Galotti, Correspondência de Euclides da Cunha, São Paulo, Edusp, 1997, p. 143. Na mesma carta, escreve Euclides: "Eu estou convencido que a verdadeira impressão artística exige, fundamentalmente, a noção científica do caso que a desperta - e que, nesse caso, a comedida intervenção de uma tecnografia própria se impõe obrigatoriamente - e é justo desde que se não exagere ao ponto de dar um aspecto de compêndio ao livro que se escreve, mesmo porque em tal caso a feição sintética desapareceria e com ela a obra de arte" (ibidem, p. 144).
[18] Ver nota 7. Para elucidar um pouco a intrincada questão do(s) gênero(s) de Os Sertões, talvez seja útil rever Roman Jakobson e as seis funções por ele reconhecidas em qualquer ato comunicativo, inclusive na literatura: as funções expressiva, referencial, metalingüística, fática, apelativa (que chama de "conativa") e, para nós a mais importante, poética. Ora, em Euclides não há uma função claramente predominante; observamos antes um revezamento contínuo entre as funções expressiva, referencial, poética e apelativa, esta última como a função mais marcante, sendo as outras temporariamente menos marcadas, porém sempre presentes. O próprio Euclides parece não ter muita certeza sobre qual a função que seria preponderante em seu livro. Na nota preliminar, dá a entender que seja esta a referencial, ou seja, o relato objetivo sobre um contexto extralingüístico, mas já na primeira parte, a mais científica e que deveria ser a mais objetiva, sobre a terra, o leitor se dá conta de que não se trata aí de um estudo puramente acadêmico, longe disso, pois o autor volta e meia se empolga pelos gongorismos de um Rocha Pita ou pelas perspectivas majestosas que se desdobram ao Sul, trocando-as pelos cenários emocionantes daquela natureza torturada... (p.103); daí a impressão dolorosa que nos domina ao atravessarmos aquele ignoto trecho de sertão - quase um deserto -, quer se aperte entre as dobras de serranias nuas ou se estire, monotonamente, em descampados grandes... (p.105). O próprio autor chama de concepção aventurosa (p.103) a este tipo de geografia e geologia. Já assinalamos o episódio do soldado aparentemente adormecido. Mesmo nesta parte mais científica do livro há forte presença das funções expressiva, poética e apelativa. Por outro lado, seria problemático, a meu ver, construir uma oposição entre essas funções, principalmente entre a referencial e a poética, como às vezes se faz. Pois o que seria desta última sem a relação com a realidade histórica extraliterária? Suponhamos que Os Sertões fosse um livro puramente ficcional, um romance histórico ou que a fantasia aí corresse simplesmente tão solta como em As Minas de Prata, de José de Alencar, ou que a guerra de Canudos nem tivesse acontecido, de modo que o livro abrisse mão da pretensão de verdade histórica. Creio que a obra não teria então o mesmo impacto que tem, mesmo ao nível puramente literário. Não é possível dissociar totalmente a função referencial da poética. Ver Roman Jakobson, "Lingüística e poética" in Roman Jakobson, Lingüística e Comunicação, São Paulo, Cultrix, 1969, p. 118-162.
[19] Foi-me útil e instigante o uso que o recém-falecido historiador francês Georges Duby faz do conceito de "encenação" em seu livro sobre uma batalha na Idade Média em que se defrontaram os exércitos francês e alemão: Georges Duby, 27 juillet 1214. Le dimanche de Bouvines. Paris, Gallimard, 1973. Ele enxerga essa batalha e a memória iniciada por ela como um antropólogo, colocando as duas coisas em seu contexto cultural. A apresentação desse evento é interpretada nas fontes e na historiografia posterior como encenação e mitificação, dando a entender que já os próprios protagonistas agem teatralmente, visando o efeito sobre os homens e sobre Deus, ostentando status e importância, sendo empreendida uma segunda encenação pelos cronistas e historiógrafos, que narram e analisam o evento para louvar ora a monarquia, ora a nobreza e os cavalheiros, ora a Igreja, ora o Exército, ora a nação, conforme interesses posteriores, quer dizer, vendo a história de uma perspectiva teleológica, criando uma coesão grupal através dos tempos. As metáforas teatrais usadas por Duby, no entanto, parecem ser dele mesmo, o que contradiz um pouco sua pretensão antropológica de compreender a batalha através do ambiente cultural da época e de épocas posteriores. A interpretação das fontes e dos estudos historiográficos como encenação obedece em grande parte ao desejo de ordenar e presentificar o evento de maneira plástica e ao mesmo tempo crítica para o leitor hodierno, tanto o especialista como o leigo. Duby combina, portanto, a crítica das fontes com um discurso organizador e evocador sobre o evento em toda a sua sensorialidade e concretude, o que explica talvez o grande êxito de seus livros, cuja aceitação vai muito além do mundo acadêmico. Pois a análise empreendida pelo autor das encenações feitas por testemunhas, cronistas e historiadores resulta também numa encenação, embora criticamente refratada, mas de leitura agradável. Como historiógrafo, Euclides tem algo desse olhar participante e antropológico de Duby, enquanto como testemunha encena e teatraliza a guerra de Canudos muito mais consciente e sistematicamente do que faz Guilherme de Brito, testemunha ocular e principal cronista, com a batalha medieval. O verdadeiro diretor de teatro, que introduz inclusive as metáforas teatrais na narração do evento, no caso da batalha de Bouvines, é o próprio Duby, que, como bom conhecedor do teatro clássico, limita a duração do enredo a um só dia, o que Euclides não pode fazer, já que seu assunto é uma guerra total, embora o faça em certos trechos com determinados episódios da guerra, como, por exemplo, as batalhas de 3 de março, 18 de julho e 23/24 de setembro de 1897.
[20] Ora, essa junção de poesia com pintura é naturalmente um antiqüíssimo recurso literário, aparecendo por exemplo no ditado de Horácio "Ut pictura poesis", ou seja, que a poesia seja como a pintura, sendo igualmente antiga a relação entre prosa narrativa e teatro. A representação de uma realidade factual ou ficcional como se fosse a descrição de obras pertencentes às artes plásticas ou cênicas é um antigo recurso literário para impressionar e empolgar intensamente o leitor através de todos os seus sentidos, sua imaginação, emocionalidade e memória, sendo muito usada por autores do final do século passado, tanto do naturalismo como do parnasianismo.
Cabe chamar a atenção para o fato de o próprio Euclides da Cunha ter sido desenhista e fotógrafo do sertão; se as tomadas fotográficas se perderam, conservaram-se boa parte de seus croquis, geralmente vistas panorâmicas de Canudos ou perfis das montanhas circundantes. Ver Euclides da Cunha, Caderneta de Campo, São Paulo: Cultrix, 1975, p. 10 e 55, onde fala dessas atividades; ver também os croquis reproduzidos a partir das páginas 53 e 126, no mesmo livro. Parece que a morfologia da terra fascinou o desenhista mais do que o próprio arraial.
[21] Eis uma lista, incompleta, dessas metáforas pictoriais (a) e teatrais (b):
a) Quadro, imagem, pintura, desenho, escultura, estátua, estatuário, arquitetura, copista, natureza morta, debuxo, moldura, molduragem, rendado, cariátide, relevo, imprimadura, sombreado, focalização das imagens, linhas esculturais, plástica estupenda, primor de estatuária, modelado em lama, fotografia, trágicas exposições, modelar, fotografar, estereografar, colher em flagrante, pintar, desenhar, arquitetar, malear, rebater-se, esbater-se, talhar;
b): teatro, drama, dramático, protagonista, anfiteatro, espetáculo, enredo, ação, prelúdio, cenário, palco, gambiarra, telão, ato de tragédia, coturno, camarotes, comparsa, papel, perfil, figura, ator, episódio, episódio truanesco, tragédia, trágico, peripécia, desenlace, desfecho, manequim, divertimento, lance teatral, platéia, espectador, binóculo, intervalo, aclamações, aplauso, aplaudir, salva, ovações, vaia, corrimaça, vivas, arena, epílogo, encenação, agitar os binóculos, patear, estrugiam bravos, desenrolar-se, representar um drama, apoteose. Naturalmente, várias dessas metáforas, como, por exemplo, "apoteose", têm duplo sentido, o que não enfraquece o caráter teatral da narração, pelo contrário. A apoteose, por exemplo, caracteriza duplamente o sertanejo, como imagem teatral, definitiva, que se grava na memória do espectador; mas também como tipo social transfigurado, glorificado, consagrado. É verdade que volta e meia as expressões de origem teatral, na medida em que os eventos são apresentados não como um drama metafórico, mas como um drama real, vão perdendo parcial ou totalmente sua função metafórica, para tornar-se denominações próprias, por exemplo na representação da batalha (p. 524-526).[22] Um parêntese: se Euclides tivesse conhecido o cinema, certamente teria também usado metáforas provenientes dessa nova arte. Pois nas entrelinhas ela está presente, de modo que em vários trechos se pode falar até de um olhar cinematográfico, principalmente em cenas panorâmicas, usando perspectiva panorâmica, travelling, zoom, focalização de determinados objetos, close-up, viradas para a direita, para a esquerda etc. É como se o autor tivesse extrapolado da câmara e do binóculo, ambos mencionados diversas vezes no livro e usados pelo próprio autor, para algumas das potencialidades do cinema moderno, ainda incipiente na época.
[23] Ver Monika Bosse / André Stoll (org.) Theatrum Mundi. Figuren der Barockästhetik in Spanien und Hispano-Amerika. Literatur - Kunst - Bildmedien. Bielefeld, Aisthesis, 1997. Ver também o estudo clássico sobre os topos das literaturas ocidentais: Ernst Robert Curtius, Europäische Literatur und lateinisches Mittelalter, Bern und München, Francke, 1969, especialmente p. 148-154.
[24] Sobre a retórica no Brasil do século XIX, ver Roberto de Oliveira Brandão, "Presença da oratória no Brasil do século XIX", in: Leyla Perrone Moisés (org.), O Ateneu: Retórica e Paixão: Comemoração do Centenário de "O Ateneu" (1888-1988), São Paulo, Brasiliense/Edusp, 1988, p. 213-226.
[25] É o que o teórico da literatura alemão Wolfgang Iser chama de leitor implícito, ou seja, um conjunto de dispositivos e condições de recepção oferecidos pelo texto ficcional aos leitores e que servem como orientação prévia, fazendo ao mesmo tempo parte da própria estrutura dos textos. Estes, por sua vez, só ganham realidade nos atos de leitura ou pelo menos na possibilidade de serem lidos, o que significa que em sua composição, em sua estrutura já estão presentes as condições de atualização e recepção que permitem reconstituir o sentido do texto na mente, na consciência receptiva do leitor. Este já está prefigurado no texto, como fôrma estruturada a ser preenchida pelo ato de leitura, como potencial de efeitos: Wolfgang Iser, Der implizite Leser, Kommunikationsformen des Romans von Bunyan bis Beckett. München, Fink, 1972.
[26] Hanno Zickgraf, "Herodot des Hinterlandes. Euclides da Cunhas gewaltiges Epos vom 'Krieg im Sertão'", in: Süddeutsche Zeitung, München, 9/11/1994.
[27] É o mote do romance Viva o Povo Brasileiro, de João Ubaldo Ribeiro (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1984, p. 6).
[28] Sabemos que o fato em si não existe para nós, ele nos chega quase sempre sob a forma de linguagem ou de imagem, nunca como fato bruto, a não ser que tenhamos sido testemunhas, mas mesmo assim não podemos segurá-lo, fixá-lo, pois ele já se transforma em algo inconsistente, ou seja, em recordação. Esta sim, podemos fixá-la.
[29] Gilberto Freyre, "Introdução" in: Euclydes da Cunha, Canudos: Diário de uma Expedição, Rio de Janeiro, José Olympio, 1939, p. XVII.
[30] Ver por exemplo a descrição das cabeças-de-frade, p. 124.
[31] Que eu saiba, o tema "Euclides e a fotografia" ainda não foi explorado. Euclides levou consigo para Canudos uma máquina fotográfica moderna, portátil, mas nunca se teve conhecimento de fotos suas. Por outro lado, há fortes indícios de que, ao escrever Os Sertões, tinha diante de si pelo menos algumas fotos de Flávio de Barros, como, por exemplo, a de Antônio Conselheiro exumado, a do jagunço preso, a do cadáver humano nos destroços do arraial e a de Canudos em chamas.
Quanto à relação entre poesia e artes plásticas, talvez seja útil reler Lessing, Laokoon: na estética clássica, as artes plásticas não devem mostrar as peripécias, os paroxismos, os lances mais dramáticos de um acontecimento, mas seus momentos anteriores ou posteriores, os prenúncios ou os resultados do clímax ou da catástrofe. A literatura e o teatro escrito, que é também literatura, podem, sim, mostrar tudo, pois aí a percepção é mediatizada pela palavra e pela imaginação, não sendo a mente do leitor cercada, assediada, bombardeada de todos os lados e através de todos os sentidos, o que deixa mais liberdade à imaginação, no sentido de atenuar ou intensificar as imagens ouvidas ou lidas, quer dizer, (re)produzidas individualmente. Em nosso século, este princípio da estética clássica parece ter perdido a validade, pois, desde as vanguardas ou talvez mesmo antes delas, o choque virou um efeito premeditado e portanto um recurso estético, tanto na cultura erudita como na cultura de massas, principalmente nesta última. Exemplo recente: Céu de Estrelas, filme de Tatá Amaral, de 1996, adaptação do romance homônimo de Fernando Bonassi, que justamente despreza essa estética clássica, levando para a tela, de modo meio voyeurístico, todos os lances horripilantes do livro, justamente como a reality TV, que pretende porém desmascarar.
[32] Ver Euclides da Cunha. Obra Completa (org. Afrânio Coutinho), 2 vols., Rio de Janeiro, Aguilar, 1966, 2a ed. 1995, vol. II, p. 77-87. Ver também o ensaio de Afrânio Coutinho: "Os Sertões, obra de ficção", no mesmo volume, p. 57-62.
Deixaremos de lado em nossa análise os inegáveis traços épicos de Os Sertões, apontados por muitos críticos, mas que já constituem outro tema. Também o aspecto da tragicidade será propositalmente ignorado, embora coubesse bem aqui, já que está ligado ao teatro. De qualquer forma, em se tratando de tema tão extenso, mereceria um estudo à parte. Mas é claro que as freqüentes caracterizações de Os Sertões como drama e tragédia, por um lado, e como epopéia, por outro, estão intimamente ligadas à dualidade, enfatizada por nós, entre representação ora pictorial, correspondendo à epopéia, ora teatral, correspondendo à tragédia. No plano sintático, esta dualidade se manifesta em forma de alternância entre os pretéritos perfeito e imperfeito.
[33] Karsten Garscha, professor de literaturas românicas na Universidade de Frankfurt am Main, chama o livro de "tragédia em 5 atos, quatro expedições e a fase final da luta": Karsten Garscha, "Ein Meilenstein. Euclides da Cunhas monumentaler brasilianischer Klassiker Krieg im Sertão" in Frankfurter Rundschau, 29/11/1994, suplemento literário "Literatur-Rundschau".
[34] Não é fácil determinar com absoluta certeza a data dessa batalha. É provável que tenha acontecido, no essencial, a 23 de setembro, alongando-se até o dia seguinte, pois o dia 23 geralmente é indicado como o dia do fechamento do cerco (ver José Augusto Vaz Sampaio Neto et alii, Canudos. Subsídios para a sua Reavaliação Histórica. Rio de Janeiro, Fundação Casa de Rui Barbosa, 1986, p. 73). No apêndice do mesmo livro, porém, a "Cronologia da Campanha de Canudos" indica o dia 24 como data de fechamento deste cerco, o que não é de se admirar, porque essa cronologia se baseia em Os Sertões. Nos mapas anexados ao mesmo livro, a linha do "cerco 23 de setembro" passa bastante longe das Casas Vermelhas, expugnadas na batalha por nós analisada. Parece mesmo que a operação toda levou dois dias, ocupando no segundo dia, 24 de setembro, muitas casas ao norte de Canudos, justamente na área das Casas Vermelhas, bairro de que fala Euclides (linha 96). O escritor poderia assim ter concentrado a batalha de dois dias de duração real, na cena citada, em um só dia, por motivos óbvios de estética e de suspense. Ver também o depoimento de outra testemunha ocular, Henrique Duque-Estrada de Macedo Soares: A Guerra de Canudos, Rio de Janeiro, Philobiblion, 1985, p. 178 ff. Como jornalista, o próprio Euclides aponta o dia 23 de setembro como dia do fechamento do cerco, escrevendo, no dia 24, em carta ao Estado de S. Paulo: "Completo hontem o cerco de Canudos, a luta correrá vertiginosamente, agora. Os successos de hoje o indicam", Euclydes da Cunha, Canudos. Diário de uma Expedição. Introdução de Gilberto Freyre, Rio de Janeiro, José Olympio, 1939, p. 91. Em seu caderno de notas, Euclides é menos claro (ver Euclides da Cunha, Caderneta de Campo. Introdução, notas e comentário por Olímpio de Souza Andrade, São Paulo, Cultrix, 1975, p. 55 e 56). É provável que o cerco se tenha fechado mesmo no dia 23, mas que se tenha cingido mais estreitamente e se tornado realmente estrangulador, mais tangível e observável para os não combatentes apenas no dia seguinte, data em que chegou, pela primeira vez, um grande contingente de prisioneiros ao acampamento do Exército (ver Euclides da Cunha, Os Sertões, p. 531 e p. 532).
Um coronel-escritor que documentou a guerra de Canudos, Dantas Barreto, indica o dia 23 de setembro como data do fechamento do cerco (Dantas Barreto, Destruição de Canudos, Pernambuco, Jornal do Recife, 1912, p. 250 e 251): "A 23 o batalhão de policia do Amazonas, ao mando do capitão do exercito Candido Mariano, e ainda, dirigido pelo tenente-coronel Siqueira de Menezes, tomou a estrada da Varsea da Emma e o sitio ficou desde logo completo, forte, capaz de resistir a qualquer tentativa de evasão e vice-versa. Para garantia de semelhante operação nos restavam alguns batalhões que constituiam a reserva necessaria. O facto foi, então, communicado para diversos pontos do paiz e todos sentiram a alegria expansiva que decorrera dessa manobra feliz. O desenlace de tão encarniçada luta estava claro; a ninguem era dado imaginar um elemento perturbador, que o desviasse do seu termo fatal". Parece que estas poucas frases sóbrias e secas se referem aos mesmos acontecimentos que Euclides da Cunha narra tão sugestiva e teatralmente em quatro páginas do seu livro (p. 523-526). A comparação revela toda a virtuosidade na dramaturgia e na retórica presentificadora de Euclides da Cunha. Dantas Barreto se dá plena conta da importância do evento para a guerra toda, mas não a traduz, em sua narrativa, em composição e estilo. É sensível à teatralidade da destruição final de Canudos, que chama de "cena da emocionante tragedia" (p. IV), sem, no entanto, salvo raras veleidades literárias, traduzir na narração a teatralidade dos acontecimentos. O mesmo vale para os relatos de outros oficiais.
A imaginação rememorativa de Euclides portanto fundiu os combates dos dois dias num só. Se o fechamento do cerco aconteceu mesmo no dia 23, isso se deu relativamente longe do miradouro do narrador, situado perto do quartel general, a leste do arraial, ao passo que os combates observáveis a partir daquele lugar, a construção do cerco, trazendo a luta para dentro de Canudos, aconteceram no dia 24. O detalhe meramente factual da data importa pouco para a exposição de quadros e a narração de cenas. A oscilação entre as duas datas traduz a ambigüidade de Euclides entre duas posturas: a do cronista objetivo, que não pode negar que o sítio de Canudos se completou em 23 de setembro, e a do narrador presentificador e encenador da história, que prefere nos exibir uma cena mais densa, mais plástica e apta para ser teatralizada.
[35] Desde Fernando Nery, organizador da edição de 1933 da Editora Francisco Alves, alguns editores deram a esse trecho o entretítulo de "Cenário da tragédia", pois na verdade ele é apresentado como um ato de tragédia. A introdução de entretítulos por parte de alguns editores e tradutores, valendo-se dos ítens nos sumários de cada uma das oito partes do livro e de palavras-chaves dentro do próprio texto - tradição naturalmente seguida por Afrânio Coutinho na edição da Aguilar, e, até certo ponto, também por mim, na tradução alemã - reforça a teatralidade inerente do livro. Ver Walnice Nogueira Galvão, "Introdução" in: Euclides da Cunha, Os Sertões, edição crítica de Walnice Nogueira Galvão, São Paulo, Brasiliense, 1985, p. 23.
[36] Manifestações de escárnio e triunfo contra os canudenses já foram censuradas anteriormente pelo narrador (p. 505 e 506, por exemplo).
[37] Ver Euclides da Cunha, Canudos. Diário de uma Expedição, Rio de Janeiro, José Olympio, 1939, p. 74, onde, num tom semi-irônico, o autor se desculpa por ter assistido a uma missa a que fora convidado por dois frades franciscanos alemães em Cansanção, a meio caminho entre Queimadas e Monte Santo: "Não me apedrejeis, companheiros de impiedade; poupae-me, livres pensadores, iconoclastas ferozes!".
Sobre a presença de imagens e motivos bíblicos em Os Sertões, ver também Walnice Nogueira Galvão, "Os Sertões, o canto de cólera", in: Nossa América. São Paulo, Memorial da América Latina, n° 3 1990, p. 88-103, assim como Flávio Aguiar, "A Volta da Serpente. Um Estudo sobre Os Sertões de Euclides da Cunha", artigo ainda inédito.
[38]Euclides da Cunha, Os Sertões, edição crítica de Walnice Nogueira Galvão, São Paulo, Brasiliense, 1985, notas à 2a edição, p. 583. Ver também a seguinte declaração de intenção estética e moral do autor: "Mas que entre os deslumbramentos do futuro caia, implacável e revolta; sem altitude, porque a deprime o assunto; brutalmente violenta, porque é um grito de protesto; sombria, porque reflete uma nódoa - esta página sem brilhos..." (ibidem, p. 538).
Se a guerra não tem o brilho esperado, sobretudo pelo lado das tropas legais com seus desmandos ilegais, como, por exemplo, a degola dos prisioneiros masculinos, é claro que as páginas de seu relato expressam este brilho, servindo de arma contra a indiferença e o esquecimento, justamente para que não se cumpram previsões pessimistas como estas: "Ademais, não havia temer-se o juízo tremendo do futuro. A História não iria até ali." (ibidem, p. 537 e 538) ou: "O Sertão é o homizio" (ibidem p. 538) ou: "A animalidade primitiva, lentamente expungida pela civilização, ressurgiu, inteiriça. Desforrava-se afinal. Encontrou nas mãos, ao invés do machado de diorito e do arpão de osso, a espada e a carabinha. Mas a faca relembrava-lhe melhor o antigo punhal de sílex lascado. Vibrou-a. Nada tinha a temer. Nem mesmo o juízo remoto do futuro." (ibidem, p. 538).
[39] "O Evangelho segundo S. Lucas", 23 (44-45) in: O Novo Testamento de Nosso Senhor Jesus Cristo. Traduzido para o português por João Ferreira de Almeida. Lisboa, Depósito das Escrituras Sagradas, 1963, p. 178.
[40] "O Evangelho segundo S. Mateus", 27 (50-52) in O Novo Testamento de Nosso Senhor Jesus Cristo. Traduzido para o português por João Ferreira de Almeida. Lisboa, Depósito das Escrituras Sagradas, 1963, p. 66.
[41] Mas nem no dia 28 de setembro Euclides da Cunha sabia disso com toda a certeza: Euclides da Cunha. Caderneta de Campo. Introdução, notas e comentário de Olímpio de Souza Andrade. São Paulo, Cultrix, 1975, p. 69. Em "fins de setembro corria com alguma insistência o boato da morte de Antônio Conselheiro [...]. Entretanto, desde 2 de outubro foi a notícia confirmada pelos prisioneiros, que asseveravam ter ido para o céu o lendário asceta" (Henrique Duque-Estrada de Macedo Soares. A Guerra de Canudos. Rio de Janeiro, Philobiblion, 1985, p. 229 e p. 230.
[42] A foto do Conselheiro morto deve ter sido o ponto alto de uma mostra sensacionalista: "Terminada a guerra, tratou o Exército de dar ampla divulgação ao material fotográfico de Flávio de Barros, tornando-o objeto de exposição pública. Em 2 de fevereiro de 1898, apenas quatro meses após o final dos combates, a Gazeta de Notícias trazia o seguinte texto de propaganda: "Campanha de Canudos [...] Curiosidade! Assombro!! Horror!!! Miséria!!!!" e convidava seus leitores a assistirem a "cenas de toda a guerra de Canudos tiradas no campo da ação pelo fotógrafo expedicionário Flávio de Barros, por consenso do comandante em chefe das tropas" (Cícero Antônio F. de Almeida. Canudos. Imagens da Guerra. Os Últimos Dias da Guerra de Canudos pelo Fotógrafo Expedicionário Flávio de Barros. Rio de Janeiro, Museu da República/Lacerda Editores, 1997, p. 26/27; sobre a foto do Conselheiro ver p. 80 f.; sobre a política informacional do Exército ver p. 24/25).
É claro que o Exército, assim como a mídia da época também encenavam a guerra, tentando impor, não apenas através de palavras, mas também de imagens, a sua versão dos acontecimentos. Sobre a cobertura da guerra na imprensa brasileira da época, ver Walnice Nogueira Galvão. No Calor da Hora: a Guerra de Canudos nos Jornais, 4a Expedição. São Paulo, Ática, 1977. Sobre a cobertura de guerra na imprensa européia da época, ver Berthold Zilly, "Canudos telegrafado" in O Movimento Sócio-Religioso de Canudos (1893-1897) (vários autores). Volume I: História, Religião, Sociedade. Fortaleza, Secretaria de Cultura do Estado do Ceará (no prelo).
[43] Ver Cícero Antônio F. de Almeida. Canudos: Imagens da Guerra, op. cit., 1997, p. 80 e 81.
[44] Isto, se abstrairmos do último subcapítulo (p. 573), que consiste de uma única frase nada imagética e pouco feliz, semi-hermética, já que se refere a um nome nem tão célebre na época e totalmente datado hoje: Maudsley.
Berthold Zilly, nascido em 1945, formado em letras neolatinas e germânicas; doutor pela Universidade Livre de Berlim (FU Berlin) com tese sobre Molière, publicada sob o título Molières 'L'Avare': Zur Kritik der bŸrgerlichen Gesellschaft im 17. Jahrhundert" ("O Avarento" de Molière: Sobre a crítica à sociedade burguesa no século 17) , SchŠuble Verlag: Rheinfelden, 1979; professor de língua portuguesa e literatura latinoamericana no Lateinamerika-Institut da mesma Universidade desde 1974; autor da traducao de Os Sertões para o alemão, que saiu em 1994 pela editora Suhrkamp, Frankfurt am Main, sob o título Krieg im Sertão (Guerra no Sertão); professor visitante na UFC, Fortaleza (1978-80), na USP, Sao Paulo (1997) na UFRRJ, Rio de Janeiro (1998-99).
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