Paulo Azevedo Bezerra
Universidade Federal Fluminense - USP
Resumo
Este estudo analisa o processo de desintegração do mundo épico, com a crescente intervenção da atualidade na narração, a destruição da distância entre o narrador e o objeto da narração e o papel do riso nesse proceso e na formação da prosa romanesca, em particular na obra de Luciano de Samosata.
Résumé
Cet étude analise le procès de desintegration du monde épique, en la croissante intervention de l'actualité dans la narration, la destruction de la distance entre le narrateur et l'object de la narration et le rôle du rire dans ce procès et dans la formation de la prose romanesque, particulière dans l'Ïuvre de Luciano de Samosate.
Resiumé
Nache issledovaine analiziruet protsess razlozheniya epitcheskovo mira, rastuchee prisutstvie sovremennosti v rasskaze, unitchtozhenie rasstoianiya mezhdu raskaztchikom i predmetom povestvovaniya, rol smekha v etom protsesse i v stanovlenii romannoi prozi i delaet osobennii aksent v tvortchestve Lukiana.
Até bem recentemente, o estudo do romance parecia ser um campo mais ou menos uniforme e, a despeito de pequenas variações de autor para autor, o fenômeno ficava circunscrito exclusivamente ao universo burguês. Isto se devia à concepção de Hegel, segundo quem o romance é a epopéia da vida burguesa, logo, estava ligado ao gênero épico que Hegel considera expressão da totalidade nacional. Georg Lukacs, apesar de ter evoluído da posição de jovem hegeliano que marca o seu livro Teoria do romace para as posições do marxismo, na questão do gênero romanesco não fugiu ao ramerrão hegeliano e até seus últimos dias não mostrou evolução considerável em relação ao seu primeiro livro. Jamais se debruçou sobre a linguagem, questão essencial que está para o romance como o trigo está para o pão. Caberia a Mikhail Bakhtin, teórico maior de quem se comemorou o centenário de nascimento em 1995, mudar radicalmente o eixo da discussão em torno do romance; para ele o romance é um gênero específico, dotado de leis próprias, de estrutura interna totalmente diversa da estrutura épica, e longe de ser uma epopéia é produto direto da desintegração e extinção desse gênero.
Ora, para Bakhtin o que caracteriza a epopéia é, em primeiro lugar, o fato de ter esse gênero como objeto exclusivo o passado heróico nacional, em segundo lugar ter como fonte o lendário nacional que dá o tom, fornece o ponto de vista, é produto coletivo e afasta o autor como entidade criadora individual e, em terceiro, ser narrado de uma distância épica absoluta entre narrador e mundo narrado, o que priva o narrador de qualquer iniciativa lingüística, ideológica ou psicológica em relação ao que narra. O mundo épico conhece uma ideologia única, una e acabada, que é igualmente obrigatória e indiscutível para os heróis, o cantor épico e os ouvintes. O mundo épico possui apenas uma linguagem, indivisa e acabada.Graças a ela os homens são enformados e individualizados por diferentes situações e destinos mas não por diferentes verdades.Nem os deuses estão separados dos homens por diferentes verdades: deuses e homens usam a mesma linguagem, praticam a mesma cosmovisão, desfrutam do mesmo destino, estão igualmente exteriorizados (Vopsóssi literaturi i stétiki [1]). O narrador épico clássico é imanente, narra de dentro do próprio gênero na condição do descendente que trata com absoluta reverência o material discursivo e se identifica integralmente com o assunto e a matéria narrada. Narra com a finalidade única e exclusiva de perpetuar a forma épica no seu imobilismo, sem jamais abrir qualquer brecha na unicidade que caracteriza o gênero. Quando alguma brecha se insinua e no gênero se vislumbra alguma busca de ponto de vista sobre si mesmo, começa o desvio da norma e esta entra em processo de desintegração. O gesto expressivo de cunho romanesco surge aí como desvio da norma narrativa, o gênero ainda muito tenro patina, tropeça aqui e se levanta ali, comete "equívocos" que só acusam a sua natureza subjetiva de novo gênero em gestação Começa pelo desvio da norma para depois problematizar a própria norma. Logo, estamos diante de dois procedimentos narrativos de natureza e fonte bem diversas: a epopéia é produto do lendário, da memória coletiva anônima, e o narrador narra de um ponto de vista que recebeu desse lendário, sem jamais tomar nenhuma iniciativa de ordem lingüística ou ideológica, ao passo que o romance é produto da iniciativa pessoal do autor, e toda a matéria narrada, por maior que seja a sua imbricação com a história coletiva, é produto da iniciativa individual e individualizante do autor, que lhe imprime a sua marca pessoal, o seu tom, o seu estilo individualizado. Impossivel conciliar ou apagar as diferenças entre duas instâncias tão diferentes como o narrador da epopéia e do romance para que se possa admitir o romance como epopéia da vida burguesa.
Qual seria,então, o papel do riso nesse processo?
Ao contrário da epopéia, que opera exclusivamente com o passado distante e absoluto, a prosa já nasce representando a realidade contemporânea, corrente e mutante, uma realidade em formação, traduzida no dia-a-dia do "baixo", uma realidade "menor", uma vida, como diz Bakhtin, "sem princípio nem fim". E essa realidade já vinha sendo objeto de representação da vastíssima e riquíssima esfera da criação, que Bakhtin chama de cultura popular do riso. É nessa cultura que o teórico vê as autênticas raízes folclóricas do romance.
O presente, a atualidade como tal, o "eu mesmo", o "meu contemporâneo" e o "meu tempo" foram inicialmente objeto do riso ambivalente, riso ao mesmo tempo alegre e destruidor. É justamente neste campo que se forma uma atitude radicalmente nova face à linguagem, à palavra. Ao lado da representação direta - da ridicularização da atualidade viva - florescem a parodização e o travestimento de todos os gêneros elevados e de todas as imagens elevadas do mito nacional. Aqui o "passado absoluto", dos deuses, semideuses e heróis é "atualizado" especialmente nas paródias e no travestimento; esse passado é tirado do seu pedestal, rebaixado e representado no nível da atualidade, no clima do dia-a-dia dessa atualidade, na linguagem baixa da atualidade (Vopróssi literaturi i stétiki).
Nesse processo de aproximação de tempos e rebaixamento dos símbolos elevados, o riso destrói toda distância épica, hierárquica. Ao aproximar da realideade atual da representação aquele passado distante povoado por deuses, semideuses e heróis, ele o familiariza com essa atualidade, e nessa familiarização o torna objeto de riso e crítica. Tudo o que é cômico é próximo, o riso tudo aproxima, é uma modalidade de conspiração, e os que riem formam uma epécie de confraria de conspiradores. O riso aproxima o objeto e permite sondá-lo de todas as suas facetas, destrói o medo e a reverência diante do objeto, do mundo, estabelece um contato familiar com esse objeto e com isto cria a condição para que ele seja estudado com absoluta liberdade. O respeito excessivo, religioso, a reverência diante do objeto impede que se tenha em relação a ele uma atitude crítica, que se possa vê-lo nos aspectos também negativos. Em suma, a atitude religiosa, excessivamente reverente diante do objeto impede o seu tratamento dialético. É preciso que crie a perspectiva de destemor no trato com o mundo para que se tenha face a ele uma atitude efetivamente realista e crítica. É essa a funcão fundamental do riso na construção do objeto de representação na prosa, no romance.
O processo de formação da prosa como gênero romanesco passa pela desintegração do universo épico, e nesse processo destacam-se duas modalidades narrativas que o teórico soviético considera essenciais: os diálogos socráticos e a sátira fundada por Menipo de Gádara no século IV a.C., ou sátira menipéa, além da vasta produção do riso na comédia de Aristófanes, logo, no gênero dramático. Nesse gênero, Aristófanes dá a maior contribuição no sentido de destruir aquela distância que caracterizava o gênero épico, ao pôr todos os objetos da representação do velho gênero elevado em contigüidade e no contato mais direto com a realidade concreta do seu mundo e a atualidade em formação. Representando sob a ótica desse mundo em formação, o comediante recria a imagem dos deuses da velha mitologia de forma totalmente atualizada, deslocando-os do alto da sua seriedade para o contato imediato com a realidade viva, onde eles são experimentados, tocados, ridicularizados, parodiados, apresentados como indivíduos comuns atingidos pela sorte ou os azares do homem comum; em suma, são eles deslocados do seu pedestal e transformados em objeto de zombaria e riso geral. Paralelamente, os representantes do poder econômico e os símbolos da hierarquia social dominante e de todas as instituições do saber elevado se tornam objeto de paródia e riso. O riso corrosivo de Aristófanes, ao aproximar da sua atualidade, ao colocar aquelas imagens elevadas em contigüidade com um novo mundo em formação se constitui numa contribuição importantíssima para o surgimento da prosa.
A sátira menipéia, que teve em Luciano de Samósata (125-180 d.C., aproximadamente), a expressão maior, o gênero mais revolucionário da prosa antiga. Produto direto da cultura do riso, ela subverte a hierarquia dos objetos da representação, a hierarquia do espaço e do tempo, dos acontecimentos históricos, suprime todos os resquícios de barreiras hierárquicas, sociais, etárias, sexuais, religiosas, ideológicas, nacionais, lingüísticas, em seus diálogos não existe nenhuma forma de reverência, regra de decoro, etiqueta, medo, e reina a mais absoluta liberdade de expressão. Nesses diálogos, o riso desempenha um papel de magnitude até então desconhecida. A ausência total de formas de reverência põe o mundo literalmente de pernas para o ar, cria a impressão do mais absoluto caos na ordem universal das coisas. Desaparece a sensação de seriedade no comportamento das personagens e na sua relação com o mundo, tudo é alvo de rebaixamento grosseiro e inversões ousadas, nas quais os momentos elevados do mundo, da vida e função dos deuses, dos heróis e das grandes personalidadees históricas e da expressão da ideologia oficial aparecem invertidos, com uma faceta claramente oposta àquela com que anteriormente se manifestavam. O caos que toma conta do mundo representa a negação do seu status habitual, o presente está em processo de formação e o passado é uma categoria que ainda não desapareceu mas não serve mais de modelo. O riso aproxima e dá o tom a tudo, sua ambivalência vislumbra uma nova perspectiva de construção do universo e assume, em casos particulares, conotações utópicas. A expepcional familiaridade do riso afasta a possibilidade de representação do passado e todo o espaço da representação se constitui numa zona de contato familiar entre o mais sagrado e o mais profano, o mais alto e o mais baixo, o mais sublime e o mais grotesto. Como predomina a familarização entre os objetos representados, tudo é dado no contato imediato, não há qualquer restrição espácio-temporal para o enredo, que se desloca com total liberdade de fantasia do céu para a terra, do olimpo para o inferno, do presente para o passado, e vive-versa. O reino de além-túmulo é o espaço do congraçamento universal, aí todos os heróis do passado absoluto e distante, dos tempos lendários, sagrados e históricos e os contemporâneos vivos debatem de modo livre e familiar. Surge, assim, um modelo utópico de mundo ideal, onde cada indivíduo é dono de si mesmo e da sua palavra, que flui livre de qualquer tipo de injunção, uma vez que o comportamento humano está fora do alcance das regras de reverência, convívio e etiqueta e das leis que imperam no cotidiano histórico dos homens. É esse o espírito que predomina no extraordinário Diálogo no reino dos mortos [2] de Luciano de Samósata, do qual tomo a liberdade de citar uma passagem bem ilustrativa do que estamos afirmando. Na sátira XVI desse Diálogo no reino dos mortos, o filsósofo vagabundo Dióneges de Sinope encontra Hércules, herói que é a consumação da beleza e da fôrça física e da bravura, além de ser um semideus, filho de Zeus e de Alcmena, mas mesmo assim morre como os simples mortais e torna-se um fantasma de fato como todos os outros. É isso que Diógenes finge não entender. No diálogo entre os dois instala-se um autêntico qüiproqüó: Diógenes, reconhecendo Hércules pelo arco e a pele de leão, não consegue enteder como o famoso herói morreu sendo filho de Zeus. Hércules explica que ali está apenas o seu fantasma, pois o verdadeiro Hércules está no Olimpo ao lado dos deuses e de Hebe. Isto só aumenta a confusão de Diógenes e a comicidade do texto:
Diógenes. Como é que pode? Fantasma de um deus? Dá pra ser metade deus e metade fantasma?
Hércules. Dá, pois não foi ele que morreu mas eu, a sua imagem.
Diógenes. Estou entendendo: ele te entregou a Plutão como seu substituto, e agora és um fantasma no lugar dele.
Hércules. É mais ou menos isso.
Diógenes. Então por que Éaco, sempre tão preciso, não notou que não és o verdadeiro e acolheu um Hércules trocado?
Hércules. Porque eu sou a cópia fiel dele.
Diógenes. É verdade: a semelhança é tal que de fato pareces ser ele mesmo. Mas não achas que saiu ao contrário, que não serás tu mesmo o Hércules enquanto teu fantasma vive com os deuses e casado com Hebe?
Hércules. És um atrevido e tagarela. Se não parares de me gozar, vou te mostrar de que deus sou fantasma.
Diógenes. Vejam só! Puxou o arco e já está querendo disparar! Eu já morri uma vez, de sorte que não tenho por que ter medo de ti.
O riso familiariza totalmente o espaço do diálogo, permitindo a franqueza cínica de Diógenes. No seu "desentendimento" está implícita a ridicularização da velha mitologia e dos seus símbolos maiores, da crença nos deuses e heróis de origem divina. O riso tem o poder excepcional de operar com a lei da gravidade, de pôr tudo no chão, em terra firme, e afirmar o primado do material sobre o espiritual, a vitória do corpóreo sobre o incorpóreo. É para essa vitória que conduzem os argumentos de Diógenes, que, fingindo não entender como Hércules pode ser metade divino e metade terrestre, ou seja, metade espírito e metade matéria, conduz de fato os seus argumentos no sentido de afirmar o primado do material sobre o espiritual, do humano sobre o divino. Voltemos, porém, à citação:
Diógenes. Agora estou entendendo tudo muito bem: Alcmena, como dizes, pariu ao mesmo tempo dois Hércules: um de Anfitrião, outro de Zeus, e vocês eram gêmeos de pais diferentes, só que ninguém sabia.
Hércules. Ah, não, tu não entendes nada: nós dois somos um só... Por acaso tu não sabes que todos os homens foram feitos do mesmo jeito, de duas partes, de uma alma e um corpo? Por que não pode ser possível que a alma, originária de Zeus, esteja no céu, e eu, a parte mortal, esteja no reino dos mortos?
Diógenes. Ora, respeitável filho de Anfitrião; tudo isso seria magnífico se tu fosses corpo, mas acontece que és um fantasma incorpóreo. Assim acaba saindo um Hércules triplo.
Hércules. E por que esse triplo?
Diógenes. Julga tu mesmo: o verdadeiro Hércules vive no céu, tu, o seu fantasma, estás aqui, ao passo que o corpo dele já se dissolveu e se transformou em pó: logo, são ao todo três. Agora precisas arranjar um terceiro pai para o corpo.
Hércules. Tu és mesmo um verdadeiro sofista, e além disso um atrevido. Quem és tu?
Diógenes. O fantasma de Diógenes de Sinope, já o próprio, juro por Zeus, não está com os deuses no Olimpo, mas vive ao lado dos melhores entre os mortos, rindo de Homero e de toda essa tagarelice pretensiosa.
Como podemos ver, o diálogo entre os dois afirma a prevalência humana (os melhores e mortais) sobre o divino, ao passo que este, sistematizado por Homero, é reduzido a mero objeto de riso do filósofo cínico e vagabundo Diógenes de Sinope. Assim, o Hércules, herói maior da mitologia, filho de Zeus e da mortal Alcmena, símbolo da fusão do baixo terrestre com o alto cósmico, vencedor de todas as lutas contra os monstros e gigantes e representantes do caos, imagem do justiceiro, dialoga em pé de igualdade com um filósofo vagabundo, que, segundoo historiador Diógenes Laértios, vivia "sem cidade, sem lar, banido da pátria, mendigo, errante, na busca diuturna de um pedaço de pão", que "evacuava, se masturbava e copulava em público". Posto em contigüidade com o representante do socialmente baixo no reino dos mortos, numa típica mèsalliance carnavalesca, o grande herói não consegue demonstrar sua condição superior e impor a verdade do seu discurso originário do alto cósmico, do alto Olimpo, e o diálogo termina com as palavras do outro, que o fecha afirmando o primado da materialidade do universo e a condição superior do homem materialmente mortal sobre a divindade imortal, rindo de Homero como herói-fundador do gênero épico e elevado e afirmando a condição mais realista e superior da sátira menipéia, do riso sobre a seriedade. Deste modo, a sátira de Luciano não se limita a rir do grande mito nacional, da velha mitologia como produto do imaginário elevado do mundo grego, que serviu de base ao gênero épico, não só ri do fundador formal desse gênero, mas se revela em luta contra o próprio gênero, em luta por seu próprio direito à condição de gênero aberto sem compromisso com modelos preconcebidos.
A luta da sátira menipéia, especialmente a de Luciano, contra os gêneros elevados representa, em termos de gênese, as primeiras escaramuças da prosa romanesca contra o gênero épico e suas imagens distantes, pela construção de ima imagem do homem em maior proximidade e contigüidade com a nova realidade em formação. E como não é possível construir nada de novo sem destruir o velho ou incorporar, dialeticamente, aqueles seus elementos dotados de vitalidade, a sátira menipéia investe contra as imagens essenciais dos gêneros elevados, especialmente o épico, os modos de ser e as formas de expressão desses gêneros.
Esse destronamento dos heróis da sua condição elevada estende-se a todo o universo antigo. Os heróis épicos acabam reconhecendo a inutilidade da empresa de Homero, e a ausência de vantagem da condição heróica. Aquiles diz que preferia trabalhar vivo para um agricultor pobre a reinar como herói sobre todos os mortos. No inferno carnavalesco de Luciano, o grande herói considera a glória fútil e desprezível por ser colocada acima da vida e não lhe trazer nenhum proveito. Porque entre os mortos reina a igualdade; não existem mais glória nem beleza, todos no inferno de Luciano são iguais e nada os distingue uns dos outros. Os mortos troianos não o temem, os mortos aqueus não lhe devotam respeito; todos os mortos gozam de direitos iguais, todos se parecem uns aos outros, heróis e covardes gozam entre eles da mesma consideração.
Sob os golpes demolidores do riso, desintegra-se o gênero épico e consolida-se gradualmente uma nova forma de representação do mundo. O riso destronante e ambivalente envolve numa sátira implacável toda a representação literária antiga, a história oficial, a atualidade em formação, na qual se percebe uma profunda sensação e presença do tempo histórico, das épocas que se alternam na história do homem e da sua imagem. A paródia luciânica da representação oficial e dos gêneros elevados cria outra realidade e projeta todo o objeto parodiado em uma imagem diametralmente oposta à imagem original. Estribada no riso amplo, iconoclasta, desrespeitoso e sem fronteira, a sátira liuciânica configura a morte do mundo antigo e seu sistema de representação. Trata-se de uma morte cômica, meio festiva, regada a muito riso, com o qual a humanidade se despede alegremente do seu passado.
Das cinzas da representação do mundo antigo brota a matéria romanesca, da crítica demolidora de todo esses sistema medra a prosa romanesca. Na destruição da distância absoluta que na epopéia separava narrador de mundo narrado, os pólos da representação se familiarizam, convivem na horizontalidade material do mundo,afirma-se a sucessão das gerações e cria-se uma nova imagem do mundo e do homem. O riso corroeu tudo o que havia de oficialmente sério, e lançou as bases em que medraria e se consolidaria o romance. É desse solo fértil que brotam o Satiricon de Petrônio, o O asno de ouro de Apuleio, os Contos de Cantuária de Chaucer, o Decameron de Bocaccio, o Gargantua e Pantagruel de Rabelais, o Dom Quixote de Cervantes e a picaresca espanhola, só para citar alguns exemplos. E tudo regado a muito riso, para a alegria de todos e a consolidação do romance como gênero específico.
Referências bibliográficas
1. Vopróssi literaturi i stétiki, Ed. Khudójestvennaia Literatura, Moscou, 1975. Traduzido para o português como Questões de literatura e estética, Ed. Hucitec, São Paulo. Retorna ao texto
2. Luciano de Samósata "Razgovóri v tsárstvie miórtvikh". Traduzido do grego antigo para o russo por S. Sriébrnii in Lukian. Ízbrannoie (Luciano. Seleta) . Ed. Khudójestvennaia Literatura, Moscou, 1987. Retorna ao texto
Paulo Azevedo Bezerra é professor de Literatura Brasileira na UFF e de Língua e Literatura Russa na USP; tradutor de Russo, com mais de 30 títulos publicados em Português, destacando-se as traduções que realizou de Bakhtin e de Vigotski; ensaísta; colaborador dos jornais Folha de São Paulo e O Estado de São Paulo.
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