Erosão

 

Conto de Rubem Mauro Machado  

 

Estando na Rua da Praia, resolveu visitar a antiga repartição. Diversas vezes ensaiara a visita: passava diante do prédio austero, tantos anos um outro lar e onde entrava desempenado e seguro, o próprio dono, via-se tolhido por estranho pudor. Era como se a aposentadoria, ao mudar sua condição, houvesse, simultânea e duplamente, conferido caráter sagrado ao recinto, profano a ele. Relembra a emoção do último dia, as palavras do chefe, a oferta dos colegas (trazia o relógio no pulso), o incontido esforço para não chorar, a voz que não saía. Na calçada, enquanto os colegas davam tapinhas nas costas, diziam aparece, vem visitar a gente, esta será sempre a sua casa dissera o chefe, ele apenas pensava em quantos dias seria de bom-tom esperar para o regresso. Duas semanas, talvez um mês. Antes disso, o anseio da volta o humilharia, pela sensação da certeza de o saberem gratuito, disponível. Considerou depois tais prazos pequenos e os espichou. Estabelecia datas fixas no calendário que, desanimado, acabava adiando. Adquiriu o hábito do chimarrão. Cuia na mão, ainda metido dentro do pijama de listras azuis, folheava longamente o jornal, lendo até os pequenos anúncios. Depois fazia a barba, esticando cuidadosamente a pele do rosto diante do espelho, a ver se não sobrara algum toco. Nas tardes bocejantes de domingo, recebia a visita do filho casado, que vinha com o bando tomar café com eles. Escutavam futebol no rádio de pilha. Certos dias, a mulher insistia para que ele saísse, fosse dar uma volta. Punha gravata, rumando para o centro. Parava nas bancas de jornal, para ver manchetes dos vespertinos e capas de revistas. Passo lento, mãos nos bolsos, seguia a esmo pela Rua da Praia, observando a multidão nas calçadas. Tomava um cafezinho no Rian e se desse sorte de topar com conhecido o papo fluía, comprido e animado, sobre o futebol e sua política ou o próximo aumento do funcionalismo. Se só, permanecia encostado no pilar, a observar o vaivém das mulheres de vestido curto, antes que seus passos o carregassem até o Cacique, para ver cartazes de filmes. Era dali que, como por instinto, tomava o rumo do antigo trabalho. Parado na esquina, na calçada fronteira, contemplava durante algum tempo o prédio grande e antigo, pedindo pintura: um exilado. Ali plantado, desenvolvia elocubrações angustiadas, nas quais sentia-se rejeitado, merecedor de atenções rápidas e forçadas, hipócritas, como se todos se perguntassem no íntimo, o que é que esse sujeito veio fazer aqui. Rememora os colegas curvados nas suas mesas, as conversas de todos os dias, o chefe largado na cadeira, rabiscando num bloquinho, o ar distante; a pausa para o cafezinho trazido pela servente preta e gorda, as considerações acesas sobre o último o ou próximo Grenal. Absurdo, eram todos seus amigos, aquela era sua casa, iriam recebê-lo de braços abertos, o próprio chefe o havia dito. O problema estava todo nele. Era como sentia agora, uma vez mais junto ao poste, indeciso, no estudo do bastião que precisa tomar. Besteira, pensou, vou atravessar a rua e dar um abraço no pessoal, é tudo que preciso fazer. Mas olhou no relógio e sentiu que a hora já não seria propícia. Volto amanhã mais cedo e vejo a turminha, diz consigo, satisfeito com a firmeza da nova decisão. Retrocedeu aliviado, em passos calmos, até a Praça da Alfândega. Sentou num banco, na sombra, em frente dos cinemas. Saboreou a brisa e o movimento da tarde, observando que as pessoas, a cruzar em todos os sentidos, eram formigas que houvessem perdido o rumo e inventassem trilhas malucas, até decidiu ser hora de voltar para casa. Encaminhou-se para o ponto do ônibus. No mercado público comprou manteiga, tomate e ovos. Entrou na fila comprida do ônibus, certo de que o haveriam de estar esperando a mulher com a janta pronta, o chinelo macio, a televisão ligada.  

(De Jacarés ao sol, Editora Ática, S. Paulo, 1976)


Rubem Mauro Machado, 55 anos, é jornalista e tradutor. Começou na imprensa em Porto Alegre, trabalhou vários anos em São Paulo e, desde 1974, reside no Rio de Janeiro. Tem oito livros publicados, entre eles A Idade da Paixão (José Olympio), prêmio Jabuti de Romance 1986. Recentemente publicou o romance Lobos, pela Record.


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