Wide Sargasso Sea:

uma fábula de fogo.

 

 

Maria Conceição Monteiro

Universidade Federal Fluminense


RESUMO:

Antoinette Cosway precisava de uma identidade para viver a sua própria sexualidade. Pela identidade descentrada, a sexualidade é mostrada através de uma narrativa que se expressa por elementos como escuridão, sol, sombra. céu, inferno, morte, vermelho, fogo, sabão ensaboando o corpo por baixo da camisola. Nessa linguagem vital e erótica, a heroína de Wide Sargasso Sea vive o que não pode ser vivido, o que não pode ser nomeado, na sociedade.

 

ABSTRACT:

Antoinette Cosway needed an identity to live her own sexuality. Due to a decentralized identity, Antoinette's sexuality is shown through a narrative which expresses elements such as darkness, sun, shadow, heaven, hell, death, red and soap soaping the body under the chemise. In this vital and erotic language, the heroine in Wide Sargasso Sea lives what cannot be lived, what cannot be named at a social level.


Wide Sargasso Sea, escrito por Jean Rhys e publicado em 1966, é a estória da esposa "louca" de Rochester em Jane Eyre (1847), de Charlotte Brontë. A estória se passa na Jamaica, alguns anos depois do Decreto de Emancipação de 1834. A heroína, Antoinette Cosway Mason, uma bela herdeira crioula, descende de uma família proprietária de escravos. Os negros, agora emancipados, a odeiam e os brancos da ilha a rejeitam. Criada pela negra Christophine e usando roupas inglesas, Antoinette vive entre duas culturas, mas não pertence a nenhum lugar: "Eu sempre me pergunto quem sou, onde é o meu país, a que lugar pertenço e por que nasci" (Rhys, 1966:85).[1]

A narrativa é dividida em três partes. Na primeira, a heroína é a narradora que focaliza a sua infância, a ausência de identidade e a forte presença da sexualidade. Na segunda, o focalizador/narrador é Rochester que descreve a sua chegada à Jamaica, o seu casamento com Antoinette e a conseqüência desastrosa desse ato. Na terceira, Antoinette retoma a narrativa, não mais na ardente Jamaica, mas na fria e distante Inglaterra.

A técnica da intersubjetividade narrativa e da mudança de focalização descentraliza a personagem. Esse deslocamento desafia o status do ego unificado e estável. Jean Rhys desenvolve uma forma de monólogo interior que expõe a violência social e os fatores que a geram.

Aparentemente uma vítima passiva, Antoinette resiste à violência sexual e à degradação através de sonhos, alucinações, memória e loucura. Através desses recursos narratológicos, a autora permite que a heroína crie e recrie o eu esfacelado, recusando de forma desafiadora a anulação de identidade.

Antoinette vive uma vida de exilada na sua terra. Ao contrário dos descendentes dos colonos, ela reconhece que a ilha pertence aos nativos. Daí o seu desejo de ser uma nativa, para sentir-se em casa, ter uma identidade. A protagonista vê em Tia, uma nativa, a sua imagem, o seu desejo de ser socialmente:

Ao correr, pensei que poderia viver com Tia, ser igual a ela. Não sair de Coulibri. Quando me aproximei vi a pedra afiada na sua mão, mas não a vi jogá-la. Não senti também. Senti somente alguma coisa molhada correr pelo meu rosto. Olhei para o seu rosto que se torcia e ela começava a chorar. Olhamos uma para a outra, sangue no meu rosto e lágrimas no dela. Era como se me visse no espelho (Rhys, 1966:38).

Antoinette precisava de uma identidade para viver a sua própria sexualidade. Pela identidade descentrada, a sexualidade é mostrada através de uma narrativa que se expressa por elementos como escuridão, sol, sombra, céu, inferno, morte, vermelho, sabão ensaboando o corpo por baixo da camisola. Nessa linguagem vital e erótica, a heroína de Wide Sargasso Sea vive o que não pode ser vivido, o que não pode ser nomeado, a nível do social

O primeiro sonho de Antoinette serve de "pre-texto" e prenúncio da presença de quem ainda se encontra ausente: um estrangeiro que virá despertar nela um forte impulso sexual: "Sonhei que estava na floresta. Não estava só. Alguém que me odiava estava comigo. Lutava e gritava, mas não conseguia mover-me". (Rhys, 1966:23)

O segundo sonho, uma continuação do primeiro, é mostrado como uma interrupção que precisava ser retomada para que o sonho pudesse ser compreendido, vivido:

Eu o seguia, cheia de medo, ainda assim, não fazia esforço para salvar-me e se alguém tentasse fazê-lo, recusaria. Chegamos à floresta. Estamos em baixo de árvores altas e escuras, sem vento. "Aqui" ela pergunta). Ele se vira para me olhar, seu rosto cheio de ódio. Gritei quando vi. Ele sorri sorrateiramente: "Aqui não, ainda não" (ele responde). E eu o sigo, chorando. "Aqui, aqui'"(Rhys, 1966:50).

Antoinette procura viver no sonho a sua sexualidade e é reprimida. Os sonhos, como "pre-textos", predizem a vinda de Rochester da Inglaterra. Chegando, no início, ele é atraído pela beleza de Antoinette e pelo dinheiro que o casamento com ela lhe iria proporcionar. Mas, desde logo a vê como um objeto estranho do seu desejo: "Me parece que ela nunca pisca. Esses longos, tristes olhos negros e estranhos" (Rhys, 1966:56). É essa estranheza de olhar, que ele passa a ler como uma sexualidade agressiva.

Jean Rhys revela, por meio dos sonhos da heroína, a questão de "gender" [2] e das culturas do colonizador e do colonizado. Antoinette procura realizar-se sexualmente, lutando contra a repressão e a opressão sexual do outro. Rochester a teme por perceber que Antoinette tem os mesmos desejos sexuais que ele, desejos que na mulher têm que ser sufocados, como acontece na mulher vitoriana, no anjo do lar.

Na mente de Rochester, moldada de conformidade com as normas puritanas do período vitoriano, Antoinette se torna uma figura temida e assustadora, um vampiro que quer sugar do outro o gozo e o prazer. Na verdade, o casamento deles lembra um pacto mercantil, entre império e colônia. Desse modo, é uma união que fica fora da cultura de Antoinette, algo que a exclui e a confina, como é feito com a própria sexualidade dela.

Observa-se que a heroína, figura temida e incontrolável, não se encaixava na concepção de mulher preconizada pela ideologia do império. Por isso mesmo ela é rotulada de louca, e, como tal, pode ser controlada por meio do confinamento. Essa imagem de loucura construída era a negação da diferença que Antoinette viera marcar.

Como diz Foucault em Madness and Civilization:

 

O asilo reduz as diferenças, reprime o vício e elimina as irregularidades. Denuncia tudo aquilo que se opõe às virtudes essenciais da sociedade [...] O asilo propõe-se a tarefa de homogeneizar a regra da moralidade e a sua extensão rigorosa a todos aqueles que tentaram dela fugir [...] Conseqüentemente, a loucura essencial e a realmente perigosa era aquela que se erguia das camadas mais baixas da sociedade . (FOUCAULT, 1991:149-50).

 

Observa-se que os termos normalidade e anormalidade em relação ao desempenho da mulher naquela sociedade sugerem insinuações favoráveis e desfavoráveis, respectivamente. Como assinala Richard Cardwell

esses termos adquiriram um significado moral e ideológico: normal (bom) e anormal (mau). Uma distinção binária se estabelece, privilegiando um termo e marginalizando o outro. O potencial da medicina de gerar um sistema de ordem e valores morais de utilidade social (isto é, de controle e autoridade) realizara-se. A construção binária de normal (saudável, bom, aprovado, aceitável) e anormal (degenerado, nocivo, rejeitado, inaceitável) passou a vingar. O método científico objetivo se transformara em uma questão de valor social e norma .(CARDWELL, 1996:173).

O casamento entre Antoinette e Rochester é construído com base numa troca desigual de propriedade e sexualidade, deixando à mostra uma relação entre senhor e escravo. Marido e mulher realizam o rito tradicional de posse que, embora desejada por mútua atração, gera repulsa. Rochester tem que abafar a sexualidade da mulher que se apresenta agressiva e forte.

Já a personagem de Charlotte Brontë, Jane Eyre, ao contrário de Antoinette, não permite um relacionamento mercantil. Busca viver o desejo em que a sexualidade não é mercadoria comprável. Antoinette busca, através do acordo comercial, uma identidade social que, talvez, o casamento pudesse outorgar-lhe.

Rochester, a princípio, sente-se extremamente atraído pelo lugar e faz dele um objeto focalizado, um "acting place" em vez de um "place of action" , ou seja, o lugar torna-se parte do eu que olha, havendo uma simbiose e sintonia, em vez de ser um lugar onde o focalizador comparece sem se envolver:

 

Era um belo lugar - selvagem, intocado, acima de tudo intocado, com uma estranha e perturbadora beleza secreta. O lugar mantinha o segredo. Rochester conclui: O que eu vejo é nada - quero o que ele esconde - isto deixa de ser nada . (Rhys, 1966:73).

 

Rochester procura expropriar e incorporar o outro. Pelo que foi dito, observa-se que à mulher é oferecida a alternativa de ser o outro, tal e como é imaginado pelo homem, isto é, de acordo com os estereótipos do patriarcado (YOUNG, 1990:3).

Antoinette temia viver, pois a viver e não ser nada, era melhor morrer. Mas, ao conhecer o poder da paixão, da sexualidade, pergunta a Rochester: "Por que me fizeste querer viver? " (Rhys, 1966:77).

Numa cena impregnada de erotismo, Jean Rhys mostra a paixão instintiva que desvela a condição de ser da mulher. Rochester revela ao leitor que viu Antoinette morrer muitas vezes:

À luz do sol, na sombra, ao luar, à luz da vela. Nas longas tardes quando a casa estava vazia. Tínhamos somente o sol por companheiro. Deixávamos o sol do lado de fora. E por que não? Logo ela ansiava pelo que se chama paixão. (Rhys, 1966:77).

Rochester percebia a sexualidade fogosa da mulher e fazia dela o seu objeto de desejo, sem permitir-lhe o papel de sujeito: "Numa tarde, a visão do vestido caído no chão me deixou sem respiração e com um desejo selvagem. Quando exausto, virei para o outro lado, sem uma palavra ou carinho" (Rhys, 1966:78).

Antoinette precisava viver a sexualidade, sentir o prazer, para encontrar a identidade. Busca encontrar-se em Rochester, mas ele a rejeita e, por não aceitar o desejo do outro, tira dela o próprio nome, chamando-a de Bertha. Nasce Bertha, morre a paixão dele. Ela busca reacender essa paixão e negar o novo nome: "Os nomes são importantes, quando ele deixou de me chamar Antoinette, eu vi Antoinette escapando pela janela, com o seu perfume, suas lindas roupas e o seu espelho" (Rhys, 1966:147).

Ele a vê agora como louca. Ao que parece, a narrativa procura mostrar que existe uma relação entre a loucura e a paixão amorosa. Ao dividir a mulher em duas, é Rochester quem se divide, optando por uma identidade social em detrimento da identidade essencial, daquilo que ele é, sem aparências. Christophine, que sabe do potencial da paixão de Antoinette, tenta convencer Rochester a aceitá-la:

Conheço essa menina. Ela nunca reivindicará o teu amor novamente, morrerá primeiro. Mas, eu, Christophine, te imploro. Ela te ama tanto. Ela tem o sol dentro dela. Ela tem sede de ti. Espere, talvez possas amá-la novamente. Um pouco. Como tu podes amar . (Rhys, 1966:129).

Rochester passa a ver Antoinette como louca e prostituta: "Preso a uma louca para a vida. [...] Ela tem sede por qualquer um - não por mim" (Rhys, 1966:135). A dedução que aqui se faz é que, se ela não se entregava a qualquer um, essa afirmação diz respeito a ele próprio e não a ela.

A sexualidade do louco podia ser retoricamente escondida sob o diagnóstico médico de histeria, mas a agressão social da prostituta era indisfarçável. De qualquer modo, a manifestação da sexualidade no lar vitoriano da classe média seria o mesmo que jogar um fósforo aceso dentro de uma jarra de álcool. A manifestação da sexualidade da mulher viria, automaticamente, obscurecer a distinção de que depende a noção de "gender", ou seja, ao homem era dado o direito de sentir o desejo, enquanto a mulher tinha que sufocá-lo. Por isso, era preciso dar a Antoinette o nome Bertha, o rótulo de louca e confiná-la.

Rochester leva Bertha para a Inglaterra, como forma de identificá-la com essa cultura, opondo-a a Antoinette e à sua cultura. Rochester sai espacialmente, mas não de si, e retorna ao seu espaço/lugar. Antoinette foi também a possibilidade de ele sair de si, mas preferiu aniquilá-la a se encontrar. Ela se protege no silêncio, depois de ter sido exilada tanto sexual quanto culturalmente. Ela não pertence nem ao mundo masculino dos negócios e poder, nem à esfera privada das esposas respeitáveis, ainda que confinadas. Se pertencesse, confirmaria e reduplicaria Rochester, não achando a sua identidade, a sua diferença.

Antoinette, depois de encarcerada no sótão da casa em Thornfield, deixa de ser reconhecida pelo próprio irmão: "Se eu tivesse usado o meu vestido vermelho ele teria me reconhecido" (Rhys, 1966:151). Ainda na loucura construída de Antoinette, ela tem consciência de que jamais poderá ser reconhecida fora do que ela é. Ela é vida fulgurante, daí o vestido vermelho e o fogo. O vestido vermelho, símbolo dessa sexualidade, tinha, para ela, um significado, era uma forma de reconhecimento.

A heroína tem o seu último sonho, marcado pelo fogo: "Estava vermelho e toda minha vida estava nele" (Rhys, 1966:155). Há aí o conflito de dois lugares, aquele em que ela vive: frio, morto, estranho, a Inglaterra; e aquele em que ela é: quente, viva, amorosa, a Jamaica. Nesse sonho ela revive toda a sua estória. O homem dos outros sonhos volta: "O homem que me odiava me chamava 'Bertha', 'Bertha'. Tia estava lá. Ela me chamava e quando hesitei, ela riu. 'Estás assustada ? ' (ela perguntou). Gritei 'Tia'! Pulei e acordei". (Rhys, 1966:155).

Acordou e percebeu que vivia prisioneira pelo crime de ser diferente, vivencial e culturalmente. No sonho, ela vaga pelos corredores e descobre um quarto com tapetes e cortinas vermelhas. Regressa ao mundo da infância, do convento, onde bordara o nome em fogo vermelho (Rhys, 1966:54). Descobre o quarto parecido com o "red room" onde Jane Eyre fora também confinada.

Observa-se que tanto Antoinette quanto Jane Eyre negaram o "red room" que simboliza a prostituição, mas não negaram a sexualidade.

A ligação entre essas duas personagens não reside somente na relação com Rochester, mas entre suas vidas, circunstâncias, atitudes e reações - paralelos tão fortes que se pode concluir que elas são irmãs, órfãs do patriarcado. A suposta insanidade de Bertha poderia ter sido a de Jane Eyre, e foi o aviso de Bertha que possibilitou o casamento de Jane com Rochester. Jane considera o aviso de Bertha e recusa uma relação com Rochester até que possa ser uma relação de iguais.

Jean Rhys faz a estória de uma personagem de Charlotte Brontë, mas são estórias diferentes, e só um olhar do século XX poderia perceber com tanta sensibilidade os conflitos que viveram essas personagens.

A narrativa mostra os conflitos do imperialismo e a subordinação cultural por meio dos sonhos da heroína, a quem foi negado um espaço no sistema do império, um sistema que depende da organização e controle de sexo e "gender" sob as formas dos mundos público e privado. Mas estas máscaras sociais vão se chocar com os projetos e identidades vivenciais.

A vida de Antoinette é marcada pela metáfora do fogo. Antoinette sonha que incendeia Thornfield. Acordando do sonho para a realidade, ela caminha pelos quartos da casa, deixando atrás de si um rastro de chamas. É como se o fogo vulcânico da paixão que a possui e consome extravasasse, envolvendo-a num manto de brasas. Agora o que arde e queima por dentro, também arde e queima por fora.

Vivendo a identidade, Antoinette sonha com a diferença. Vivendo a diferença, sonha com a identidade. O silêncio como ausência de palavras é o vazio de si mesma, o "no-self" que deseja ser movido com o espírito do fogo. O vazio que anseia em Antoinette é preenchido, metaforicamente, através do fogo, transcendendo as dimensões da cultura e da sexualidade. Através do fogo que a consome, Antoinette transcende os limites culturais e sexuais impostos pelo autoritarismo e pela intolerância dos homens.


Notas:

[1] Todas as citações foram traduzidas livremente do inglês pela autora. Retorna ao texto.

[2] O termo "gender" se refere às distinções sociais e culturais entre o homem e a mulher. O termo, em inglês, será mantido ao longo deste ensaio. Retorna ao texto


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

 

CARDWELL, Richard. `The Mad Doctors: Medicine and Literature in Fin de Siglo Spain'. Journal of the Institute of Romance Studies. Nottingham, vol.4, p.167-185, 1996.

FOUCAULT, Michel. `Madness and Civilization' In The Foucault's Reader. Edited by Paul Rabinow. London: Penguin Books, 1991.

RHYS, Jean. Wide Sargasso Sea. Middlesex: Penguin Books, 1996.

YOUNG, Robert. White Mythologies: Writing History and the West. London:Routledge, 1990.

 


Maria Conceição Monteiro é Professora Adjunta de Literatura Inglesa - UFF - Universidade Federal

Fluminense; Doutora em Literatura Comparada - UFF.

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