O FIM DO LIVRO E O LIVRO SEM FIM
1. INTRODUÇÃO Uma das formas de compreender o impacto que teve o computador em práticas sociais e culturais é pensá-lo enquanto a mais recente e eficaz das tecnologias marcadas por um intenso poder de reprodução ou clonagem. A televisão é, evidentemente, um bom exemplo dessa tecnologia, na medida em que reproduz e empacota imagens a serem distribuídas para consumo à distância, o que explica em grande parte o seu poder cultural e econômico. Mas é o computador que, enquanto máquina capaz de simular outras máquinas ou tecnologias, traduzindo em forma digital o seu conteúdo informativo, apresenta-se hoje como o instrumento de clonagem por excelência. Ter um computador em casa ou no trabalho significa ter à disposição uma máquina que não apenas reproduz imagens, mas ainda incorpora um número muito grande de atividades, funções e tecnologias. Na realidade, o computador pode ser pensado como uma máquina que elabora simulacros capazes de imitar ou reproduzir uma infinidade de outras máquinas ou funções, o que torna o seu usuário capaz de realizar atividades como ir às compras ou ir ao banco, enviar correspondência, enviar um fax, ouvir música, assistir a um filme, visitar um museu. Pode ser utilizado, ainda, como uma máquina de escrever para produzir um texto (o que acabou por tornar a tecnologia anterior obsoleta já que, ao imitar a máquina de escrever, o processador de texto o faz de forma mais eficiente) ou, com o auxílio de um scanner, para reproduzir um texto escrito. O que interessa examinar mais de perto no presente ensaio é o impacto cultural do computador enquanto máquina de clonagem de textos, ou seja, uma máquina capaz de reproduzir livros e bibliotecas. E interessa examinar ainda o que poderia ocorrer se, como no caso da máquina de escrever, o computador viesse a substituir a tecnologia anterior (o texto escrito, o livro) com vantagem. A pergunta a ser feita, nesse caso, diz respeito ao destino das tecnologias anteriores e, mais especificamente, à sua capacidade de sobrevivência. 2. AS BIBLIOTECAS ELETRÔNICAS
O empreendimento que veio a ser conhecido como Projeto Gutenberg pode ser visto como emblemático desse movimento de transladação do livro e do texto impresso para o meio eletrônico. O idealizador do projeto, Michael Hart, ao dar-lhe o título de Gutenberg, teria provavelmente como objetivo apenas prestar homenagem ao inventor da imprensa. Mas não deixa de ser um tanto irônico o fato de a homenagem a Gutenberg constituir também, e a despeito das boas intenções de Hart, uma ameaça à tecnologia do texto impresso. É que a transposição de textos de um meio a outro traria, inevitavelmente, a indagação a respeito da necessidade de, uma vez feita a transposição, manter vivo o original de uma cópia eletrônica que acabaria sendo, em muitos aspectos, melhor do que o texto primeiro. Jovem aluno universitário trabalhando no Laboratório de Pesquisa de materiais na Universidade de Illinois, Hart, já no início da década de setenta, não tinha dúvidas sobre o potencial que tem o computador de armazenar e reproduzir conhecimentos. Convicto de que milhões de computadores pessoais seriam em breve colocados no mercado, nada mais razoável, para o jovem pesquisador, do que utilizá-los para armazenar informação a ser disponibilizada para os usuários, de forma imediata e sem outro esforço que não o da digitação de alguns poucos símbolos. Motivado por um intenso idealismo democratizante (o acesso aos textos deveria ser gratuito e universal, a mão de obra para a reprodução dos textos tornada possível por doações, auxílios governamentais e pelo trabalho voluntário de, entre outros, alunos de pós-graduação), Hart decide iniciar a tarefa de transferir uma seleção de textos escritos para o meio eletrônico. Esta se tornava cada vez mais fácil em função de rápidos avanços tecnológicos (diskettes, cd-roms, internet, scanners, optical character readers). As vantagens da disponibilidade eletrônica de tais textos seriam logo evidenciadas, particularmente após o surgimento da Internet, que tornava possível a disseminação do conhecimento e da informação de forma imediata, abrangente, e a custo relativamente baixo. Profissionais, alunos e leitores em geral que, em qualquer parte do mundo, tivessem acesso a um computador equipado com um modem e a uma linha telefônica e quisessem consultar, por exemplo, os Provérbios Populares (Familar Quotations) de Bartlett (um dos primeiros textos que Hart transferiu para o meio eletrônico), não mais teriam que procurar o volume em bibliotecas ou livrarias. O texto estaria disponível na tela do monitor logo após o acesso ao endereço promo.net/pg. E a disponibilidade de acesso ao texto eletrônico, longe de estar limitada apenas às culturas dominantes, ocorreria também em áreas periféricas equipadas com um mínimo de tecnologia eletrônica, o que é um dado particularmente significativo para as nações do Terceiro Mundo, cronicamente afetadas pela indigência de periódicos, livros e bibliotecas. Como qualquer acervo bibliotecário, o acervo eletrônico idealizado por Hart não poderia deixar de ser seletivo. Os livros acumulados nos quinhentos anos da Era Gutenberg, mesmo que se pense esse acervo apenas em termos de textos canônicos, são excessivamente numerosos para ser transferidos para o meio eletrônico, agora ou no futuro. Forçado a escolher, entre os milhões de volumes disponíveis, os textos a serem transferidos, Hart optou pela ênfase em três categorias, todas tendo como denominador comum o interesse geral da informação a ser utilizada: textos de referência, literatura popular, literatura clássica. Entre os primeiros textos a serem transferidos estavam a Bíblia, a obra de Shakespeare, a Constituição Americana, a Carta dos Direitos Humanos e a Declaração da Independência. A essa seletividade de conteúdos correspondia uma outra, de natureza formal, que dizia respeito ao estilo a ser escolhido para o texto eletrônico. Como os textos deveriam ser acessíveis gratuitamente para o maior número possível de pessoas, inclusive àquelas que eventualmente não dispusessem de recursos tecnológicos mais sofisticados, os textos seriam traduzidos apenas em formato texto (ASCII). . Há, evidentemente, um preço
a pagar pelo idealismo democrático que impõe limites aos
conteúdos selecionados e ao formato dos textos. O formato texto,
por exemplo, tende a tornar a leitura mais cansativa do que outros formatos
com melhores recursos de visualização, o que pode desmotivar
o leitor. E há, ainda, dificuldades inerentes às próprias
tecnologias de reprodução de textos: leitores óticos
de letras (OCR) garantem precisão quase total (99%), mas erros
ainda ocorrem, como é o caso da freqüente leitura de um ponto
de exclamação (!) como se fosse um i. Quando tais
erros não são cuidadosamente revisados, evidentemente, a
edição eletrônica atenderia apenas ao leitor comum,
tornando-se inadequada para usos profissionais ou de pesquisa. E há,
finalmente, limitações relativas à seleção
de conteúdos, como é o caso da impossibilidade de publicações
recentes e importantes, que não pertencem ainda ao domínio
público e que são protegidas pelas leis de copyright.
Não custa lembrar que tais leis foram feitas justamente para proteger
o mercado do livro impresso, que se vê agora mais intensamente ameaçado
pelo meio eletrônico. Em alguns casos, torna-se até mesmo
necessário reforçar a proteção do meio impresso,
através da ampliação legal do tempo de vigência
de direitos autorais exclusivos, que definem o momento adequado em que
certos textos poderão fazer parte do domínio público.
Diane Krieger calcula que, nos Estados Unidos, com a aprovação
da nova lei de copyright que estendeu a proteção
do livro de 56 para 75 anos após a morte do autor, livros publicados
antes da década de trinta (clássicos do modernismo, por
exemplo) entram no domínio público apenas no momento atual,
quando podem finalmente ser transferidos para o meio eletrônico
(Krieger 1998, 8). Muitos desses problemas (a questão do formato
texto, certas questões de copyright, revisão dos
erros gerados por scanners) poderiam evidentemente ser resolvidos
com recursos econômicos, o que encareceria o produto eletrônico
final e, no caso do projeto Gutenberg, comprometeria a proposta idealista
de divulgação de textos a custos baixos. [1]
Entusiasmado com o andamento do projeto, apesar das dificuldades, Hart arriscou, em 1992, previsões futuras marcadas por um excesso de otimismo. Imaginou então que, ao final do ano 2001, dez mil volumes estariam disponíveis na rede. Já em 1997 tornou-se evidente que tal meta não seria atingida: o número de volumes então disponíveis na biblioteca totalizava apenas um décimo do número previsto (Krieger 1998, 2). O projeto, contudo, teve e tem inegável sucesso na medida em que se transformou em um modelo pioneiro para outras bibliotecas eletrônicas, várias delas tentando conscientemente detectar as falhas existentes no projeto modelo e procurar alternativas viáveis. É o caso de Wiretap (wiretap.area.com), que tem um acervo de centenas de textos clássicos, filosóficos, políticos e religiosos, e de projetos patrocinados por instituições como a Universidade de Virgínia, do Texas, e de Yale. É bem possível que o problema mais sério de acervos modelados de acordo com o Projeto Gutenberg seja não tanto a limitação imposta pelo idealismo de oferecer ao público um produto de baixo custo e, portanto, inevitavelmente marcado por limitações que só o poder econômico pode corrigir (revisão de textos, formato ASCII, etc.), mas, antes, o equívoco que resulta da percepção do computador como mera máquina reprodutora. É que o computador é também, e talvez principalmente, uma máquina produtora de seus próprios textos específicos (hipertextos), qualitativamente diversos dos textos escritos, o que coloca de imediato a questão das possíveis vantagens existentes na projeção de bibliotecas formadas não apenas por textos anteriormente existentes e traduzidos para o meio eletrônico, mas de hipertextos, ou seja, textos especificamente gerados a partir da nova tecnologia e, na prática e por motivos de ordem principalmente econômica, impossíveis de serem obtidos em outros meios. Uma das iniciativas mais ambiciosas inspiradas pelo Projeto Gutenberg é a proposta de criação da National Electronic Library (Biblioteca Eletrônica Nacional), idealizada em 1996 por Brian Hawkins, vice-presidente do setor de Planejamento e Administração Acadêmica da Universidade de Brown. A biblioteca, a ser disponibilizada através da Internet, seria administrada por uma agência com fins não lucrativos, e em um sistema de cooperação com outras bibliotecas norte-americanas, universitárias ou não. O objetivo seria, aqui, a constituição de um imenso acervo virtual organizado, na proposta de Hawkins, de acordo com quatro princípios básicos: garantia de acesso gratuito; capacidade de interligar-se a outras entidades da Internet, comerciais ou públicas; determinação de evitar duplicações e de promover objetivos acadêmicos; atenção às possibilidades de desenvolvimento futuro e abertura às inovações tecnológicas. Um projeto de tal porte, como percebeu o próprio Hawkins, não poderia ser desenvolvido sem que fossem, antes, superadas dificuldades imensas, a menor das quais é a que diz respeito às necessidades de recursos tecnológicos. Na realidade, de acordo com Hawkins, a tecnologia para operacionalizar o projeto já existe. Os problemas maiores são de ordem financeira, logística e contratual (Krieger 1998, 4). Seriam necessários, por exemplo, recursos em volume significativo para a aquisição de direitos autorais, que teriam que ser obtidos, por exemplo, dos orçamentos já existentes nas bibliotecas universitárias e de agências governamentais. O projeto de Hawkins é apenas um entre vários outros em andamento, todos enfrentando dificuldades mais ou menos semelhantes. Três universidades norte-americanas, atuando em conjunto, examinaram a difícil possibilidade de criar uma biblioteca virtual global capaz de tornar disponível, na rede, as obras de todos os autores da humanidade (www.ul.cs.cmu.edu/ first.html). Existe, ainda, a tentativa feita por um grupo de grandes universidades no sentido de se criar a Digital Library Federation (lcweb.loc.gov /loc/ndlf/ndlfhome.html). Incluem-se, entre as instituições participantes do projeto, universidades do porte de Yale, Harvard, Princeton, Cornell, Berkeley, Stanford, Michigan e a Biblioteca do Congresso. Os problemas para a concretização de tal acervo são basicamente os mesmos encontrados por Hawkins: como evitar reduplicações, como definir a questão de padrões a serem estabelecidos para a digitação dos textos, como tratar do problema dos direitos autorais. Mas a solução de tais problemas não é impossível, e tudo leva a crer que, em futuro próximo, tanto megaprojetos como os de Hawkins ou a DLF, como projetos menores como o Projeto Bartleby (www.bartleby.com) resolverão pelo menos parcialmente tais dificuldades, e as bibliotecas virtuais, tanto as já existentes como as que estão por vir, atingirão condições satisfatórias de operacionalidade. Algumas, na realidade, já atingiram tais condições: O Arquivo Blake, O Arquivo Rossetti, O Projeto Perseus. Não custa lembrar que, em futuro próximo e dado o crescente acúmulo de conhecimento, a efetivação de tais projetos pode bem ser uma necessidade, já que as bibliotecas que abrigam o livro impresso enfrentam problemas crescentes de manutenção e atualização. A corrosão do papel por substâncias ácidas, por exemplo, vai aos poucos provocando a deterioração de acervos importantes. O problema maior, contudo, diz respeito ao acúmulo crescente de informação que as boas bibliotecas deveriam tentar incorporar. No caso das melhores bibliotecas norte-americanas, Diane Krieger calcula que, no caso provável de que a renovação do conhecimento venha a ocorrer a cada dois anos, já em 2001 os recursos econômicos disponíveis para atualizar a informação teriam poder de compra de apenas 2% da informação gerada (Krieger 1998, 5). Como o desgaste do papel por acidez dificilmente poderá ser evitado, e dada a dificuldade que tem as bibliotecas de livros impressos de evitar a duplicação de recursos, as bibliotecas eletrônicas podem rapidamente tornar-se não apenas uma alternativa, mas uma necessidade. Nelas não existiria o problema da corrosão, a duplicação de recursos seria mais facilmente controlável porque a procura de um livro poderia ser eletronicamente realizada a partir de qualquer local da rede, e, finalmente, o espaço necessário para armazenamento de informação seria irrisório quando comparado ao espaço físico necessário para o armazenamento do livro. Vale a pena lembrar, ainda que de passagem, já que o assunto será tratado adiante em mais detalhe, que as bibliotecas eletrônicas não precisam necessariamente estar limitadas à reprodução de textos. Podem ser planejadas para incorporar tecnologias características do hipertexto, ou seja, características que tornam possível maximizar conexões entre um texto e outro, entre blocos de texto, entre texto e gráficos. O meio hipertextual poderia ainda facilitar múltiplas manipulações de um texto a partir do momento em que a ele são incorporados bancos de dados acessíveis por links. Poderia então ocorrer a procura de palavras correlatas, a comparação de edições diferentes da mesma obra, a determinação da freqüência vocabular. Para muitos pesquisadores profissionais, tais possibilidades são de extrema utilidade e tornam o meio eletrônico indispensável para a pesquisa rigorosa na atualidade. Ao que tudo indica, as bibliotecas virtuais vieram para ficar, apesar da dificuldade de solução de muitos de seus problemas operacionais. Enquanto alternativa para (e não necessariamente substituição das) bibliotecas de acervos impressos, as novas bibliotecas representam uma profunda e inquietante mudança histórica nas formas pelas quais o conhecimento é coletado e arquivado. 3. O FIM DO LIVRO, A NOSTALGIA PELO PASSADO E A ESPERANÇA DO FUTURO
Birkerts caracteriza esse momento de mudança histórica do livro para o computador em termos catastróficos: a cultura no final do século passa por uma metamorfose total, uma mudança caracterizada ora como sistêmica, ora como o divisor de águas por excelência do milênio (Birkerts 1994, 3, 15, 71). Trata-se da mudança da página para a tela que, alterando as formas de fluxo e recepção do conhecimento, coloca em xeque valores perenes da civilização ocidental, como a capacidade humana para produzir e absorver discursos complexos, a possibilidade de formação do indivíduo e de uma ética individual, e a capacidade de entendimento histórico. Birkerts, evidentemente, não está falando de todo e qualquer livro mas, em particular, dos livros da tradição humanista ocidental, com ênfase na literatura. No encontro com tais livros, o que ocorre é um processo de imersão do leitor em um mundo de valores éticos e estéticos a ser não apenas contemplado, mas vivido na postura de meditação silenciosa que deveria levar não ao conhecimento das coisas, dos objetos, e da informação, mas à sabedoria a respeito do sentido da vida. Quando lemos, diz Birkerts, não apenas transplantamos a nós mesmos para o lugar do texto, mas alteramos o nosso ponto de vista sobre todas as coisas; reposicionamos o ser individual com o objetivo de ver de uma forma diferente (Birkerts 1994, 80). É a partir de tal reposicionamento do ser individual que se torna possível manter viva a perigosa e libertadora idéia de que a vida não é uma seqüência de momentos vividos, mas um destino (Birkerts 1994, 85). Mapear o significado da vida no encontro com o livro é procurar a sabedoria mais do que a informação e o conhecimento. Estes, disponibilizados pelos meios eletrônicos, existem hoje em excesso, mas são capazes apenas de oferecer uma sobrecarga de dados inertes que, ao que tudo indica, têm sentido apenas porque são apresentados de forma espetacular, como na televisão ou na Internet. Esse acúmulo de dados satisfaz apenas àquele ser individual absorvido pela rotina das ações cotidianas (aquele eu do qual falamos quando dizemos:" levei meu carro ao mecânico hoje de manhã"), em contraste com aquele outro eu a que nos referimos quando dizemos sempre acreditei que (Birkerts, 212). Este último, o eu de crenças e convicções, forjado sempre pelo encontro com os grandes livros, procura a verticalidade da sabedoria mais do que a horizontalidade do conhecimento. A sabedoria, Birkerts explica,
Existe, para Birkerts, um tempo livresco, humano e profundo
de meditação e reflexão (um tempo produtor de epifanias,
por assim dizer) que nos permite sair do presente cronológico
e experimentar um tempo paradoxalmente fora do tempo (tempo-duração
ou tempo-permanência), radicalmente diverso daquele tempo
de eterno presente e de simultaneidade total de coisas e eventos que
experimentamos diante da tela do computador. Trata-se aqui de um tempo
subordinado à dimensão espacial que distribui momentaneamente
objetos em um campo visual luminoso. Ler um livro virtual nesse cibertempo,
ainda que o livro seja apenas traduzido para o meio digital e apresentado
na tela, é, para Birkerts, algo diferente de ter em mãos
um livro real a ser folheado página após página,
ora mais rapidamente, ora mais lentamente, com pausas para meditar sobre
o que foi lido, retornando a páginas anteriores para reler certas
passagens. Neste último caso, o que ocorre na leitura é
a oportunidade que tem o indivíduo de constituir-se como sujeito
pensante, no ato de imersão e meditação. A leitura
séria, Birkerts explica, é uma atividade formadora
do ser individual (Birkerts 1994, 87). A experiência da leitura
é importante, não tanto porque nos transmite uma mensagem
ou um sentido, mas porque produz um estado de espírito no qual
o ser se percebe como tal e constitui a sua identidade.
E conclui:
E o novo homem despersonalizado, agora inseparável da parafernália eletrônica, não estaria, como pensam alguns, expandindo seus poderes tecnológicos para participar mais intensamente em uma grande comunidade democrática virtual (já que as comunidades reais, não virtualizadas, parecem estar em vias de desaparecer). Estaria, antes, ajustando-se eletronicamente (wiring himself) a uma gigantesca colmeia na qual a vida acontece em meio a um burburinho de sinais eletrônicos que é, ao mesmo tempo, excitante, desvairado e profundamente dispersivo:
Não é difícil perceber, em tais observações, o intelectual representante de um humanismo moderno, deslocado na dispersão pós-moderna. Na verdade, o próprio Birkerts, ao apresentar esquematicamente um balanço das perdas e ganhos do pós-modernismo eletrônico, acaba por percebê-lo mais como decadência do que como progresso e, implicitamente, alinha-se com ideais do modernismo logocêntrico e humanista. Feita a contabilidade, as vantagens do pós-moderno são a melhor compreensão da perspectiva globalizante e da complexidade de inter-relacionamentos no momento contemporâneo; a expansão da capacidade neurológica para receber simultaneamente um conjunto maior de estímulos; o questionamento de absolutos e aceitação do relativo, freqüentemente expresso em termos de tolerância; e, finalmente, uma predisposição para enfrentar novas situações. A lista de perdas, mais longa e substancial, sugere que o que desapareceu foi o conjunto de valores éticos e estéticos vigentes na civilização ocidental antes do momento pós-moderno:
. Estamos aqui diante de uma das muitas avaliações
pessimistas dos meios eletrônicos pós-modernos, que têm
como contrapartida outras tantas avaliações otimistas.
É certamente uma dessas perspectivas mais otimistas aquela proposta
pelo romancista Robert Coover.
Note-se que trata-se, aqui, do mundo real sendo
paradoxalmente definido justamente por seu excesso de irrealidade, já
que é constituído pela saturação de linguagens,
sinais e imagens que, como afirmou Birkerts, formam um tecido de
filamentos colocados entre nós e o chamado ‘mundo
exterior’. Separado do mundo pela presença crescente
de mediações eletrônicas, a subjetividade humana
já não pode permanecer a mesma e começa a ser percebida,
dependendo da perspectiva teórica mais ou menos pessimista, ora
em termos de uma alienação do ser individual, ora em termos
de uma nova forma de humanidade (ou desumanidade) moldada pelas novas
tecnologias. Birkerts, como se viu, prefere entender essa nova subjetividade
de forma negativa e em termos de perda. Ocorre aqui a percepção
de uma decadência cultural, produzida como resultado de uma tecnologia
pós-moderna que, redefinindo o tempo como cibertempo em um espaço
de dispersão de sentidos, acaba por produzir efeitos negativos
na subjetividade humana, que se vê agora destituída da
capacidade perceptiva do ser profundo, da possibilidade de formação
de uma ética pessoal, e da capacidade de fazer sentido da história.
Coover, por outro lado, entende a nova subjetividade pós-moderna
e o novo leitor de livros virtuais como diferentes em relação
ao passado, mas não necessariamente como decadentes ou piores.
Coover denomina esse movimento forçado e controlado pelo autor a tirania da linha. Trata-se da tirania que aprisiona o sentido e controla a sua disseminação. O livro impresso, por assim dizer, ao imprimir e comprimir o sentido em uma lógica de linearidade, acaba por tornar-se também uma forma de oprimir. Impressão e imprensa significam, também e necessariamente, opressão. É por esse motivo que, como explica Coover,
Todas essas tentativas de criar uma narrativa não linear, contudo, não chegaram a abalar seriamente a tradição de linearidade do livro, porque tentaram questioná-la sem dispor, para tanto, de outro meio ou de outra tecnologia textual que não a do próprio livro impresso. Questiona-se, como no caso das divagações de Tristram Shandy, a linearidade livresca a partir do próprio local de aprisionamento que é o livro. Sterne não podia questionar a linearidade do romance porque não dispunha de uma tecnologia capaz de estabelecer uma escrita realmente multilinear, em que um sentido pudesse ser imediatamente conectado (linkado) a muitos outros, em uma dimensão espacial. A ele faltava, em resumo, o computador e a sua capacidade de gerar hipertextos, ou textos multilineares. Para Coover, com o advento do computador e do hipertexto, torna-se possível, pela primeira vez desde Gutenberg, questionar a linearidade do texto impresso, utilizando uma tecnologia alternativa de produção textual:
Não custa lembrar aqui, ainda que de passagem,
que o otimismo de Coover justifica-se, pelo menos em parte, em termos
de sua trajetória como escritor. Trata-se de romancista de vanguarda
mais na tradição de Sterne do que na tradição
do romance realista, linear e bem comportado.
Comentando sobre o hotel hipertextual em 1992, Coover
reafirma seu entusiasmo pelo meio eletrônico ao expressar o desejo
de que o hotel, recebendo semestre após semestre novos grupos
de alunos-hóspedes, dispostos a continuar e modificar o trabalho
já feito, continue aberto por mais um século ou dois.
É que, se não por outro motivo, o hipertexto e os textos
eletrônicos em geral prometem uma revolução no ensino.
Os resultados produzidos pelos alunos, em termos de criatividade,
foram melhores do que aqueles obtidos em cursos regulares de
graduação, e a qualidade do material produzido foi certamente
de igual valor(Coover 1992, 2-3). Em outro ensaio, também
publicado no NYTRB, Coover conclui: é o irresistível
poder educativo do hipertexto que demonstra, para mim, a sua inevitabilidade
enquanto um novo meio para a arte, narrativa ou não (Coover
1993, 3).
Embora Landow recorra a exemplos específicos da passagem do real ao virtual, principalmente em termos de processadores de textos e de hipertextos, a virtualização do real ocorre em qualquer circunstância em que se leia ou se escreva um texto no computador: o tátil torna-se digital, o concreto torna-se abstrato e, no caso do livro, o corpo sagrado transforma-se em seu fantasma. O preço a pagar pela utilização da tecnologia eletrônica é a perda desse corpo sagrado tornado virtual. Pagar tal preço não poderia deixar de ser extremamente doloroso para o humanista tradicional, já que o sagrado não tem preço. Régis Debray lembrou recentemente que é este valor sem preço que é definido exemplarmente em As Palavras (1964), de Jean Paul Sartre. O tratamento dado por Sartre ao livro transforma a tal ponto o objeto material em objeto sagrado que, como observa Debray, acreditar no livro e acreditar em Deus tendem a tornar-se sinônimos (Debray 1996, 141). A biblioteca do avô torna-se, para o Sartre menino que ainda não sabe ler, um santuário repleto de silêncio sagrado e povoado por relíquias mudas que conclamam os adultos a manuseá-las com a destreza e o cuidado de um sacerdote (Debray 1996, 140). O sagrado, contudo, é aqui de tal forma expresso materialmente no corpo do livro que o jovem Sartre pode imaginar-se a si mesmo identificado com o corpo impresso e tendo a sua própria carne transformada em livro para seus leitores:
Por que a transformação de carne em papel?
Para Debray, a resposta é simples: nas famílias burguesas
e não apenas nelas os livros precedem a leitura.
Como a moradia precede o morador, a terra o camponês, e o material
existe antes do trabalhador, serve-lhe de guia e motivação
(Debray 1996, 139-140). Houve, particularmente na segunda metade da década de noventa, reações mais moderadas e equilibradas do que as de Birkerts e Coover. O que é preciso lembrar, diziam alguns, é que a tecnologia do livro eletrônico é ainda muito recente para previsões apressadas sobre o fim do livro. Em conferência apresentada em 1996 e posteriormente divulgada na Internet, Umberto Eco, por exemplo, recomendava uma certa cautela no tratamento do tema do desaparecimento do texto impresso. É que o livro, pelo menos no momento atual, atende a necessidades culturais, pessoais e sociais que não podem ser satisfeitas com o auxílio do computador. É o caso da necessidade da leitura reflexiva, marcada pela cuidadosa atenção e pela postura meditativa, ao invés da leitura meramente voltada para a necessidade de informação.
Não há dúvida de que certos livros são melhores quando apresentados no formato eletrônico e em hipertexto, como é o caso das enciclopédias, já que a tecnologia eletrônica torna possível armazenar, por exemplo, toda a Enciclopédia Britânica em alguns cd-roms, além de possibilitar o exame de referências cruzadas e a recuperação não linear do conhecimento. Mas nem todos os livros são dicionários e enciclopédias. Eco lembra que é preciso diferenciar os livros de consulta dos livros de leitura. O computador tornará certos livros obsoletos, mas outros livros continuarão a ser necessários. Não se trata, portanto, de afirmar apressadamente que uma tecnologia eliminará a outra, mas antes de pensar a coexistência das duas, com funções diferenciadas e especializadas. É isso, de resto, que ocorreu freqüentemente com tecnologias anteriores: a fotografia alterou o sentido da pintura, mas não a substituiu; a televisão ocupou certos espaços do cinema, mas não todos; o correio eletrônico criou uma nova forma de comunicação, mas as agências de correios e telégrafos continuam operando. Mais recentemente, estendendo o argumento de Eco, Michael Rosenthal observou que o livro é um objeto em constante processo de mutação e adaptação históricas, muitas delas mais significativas do que as que estão, no momento, ocorrendo em função da nova tecnologia eletrônica: a revolução tornada possível pelo surgimento do livro de bolso a partir de 1950 contribuiu mais para a democratização da leitura do que a Internet, e a cultura literária foi provavelmente mais afetada negativamente pela formação dos monopólios de editoras do que pela presença do computador enquanto força dispersiva capaz de comprometer a formação da capacidade crítica. O livro, em outras palavras, não precisa necessariamente desaparecer diante da presença do computador porque é uma tecnologia suficientemente flexível para adaptar-se aos novos tempos. Como explica Rosenthal, é ilusório pensar que uma tecnologia automaticamente elimina a tecnologia anterior, como se o ato de escrever fosse semelhante a um estacionamento com lugar para um carro só. É que, quando uma tecnologia permanece mais adequadamente funcional do que qualquer alternativa, não há razão para abandoná-la, a despeito da sua antigüidade. É esse o motivo por que, quinhentos anos após Gutenberg, continuamos a ser uma cultura de textos manuscritos: usamos o lápis e a caneta para anotações e mensagens telefônicas, para notas ao pé da página, e para dialogar conosco mesmos em nossos diários (Rosenthal 1998, 2-3). O trauma cultural causado pela possibilidade do fim
do livro pode bem ser o resultado de uma percepção equivocada
do significado histórico do livro enquanto tecnologia adaptável
e resistente a mudanças, inclusive às gigantescas
mudanças motivadas pela presença do computador. Se essa
hipótese estiver correta, faz menos sentido, hoje, lamentar ou
celebrar o fim do livro do que tentar entender a sua transformação
em algo diverso. Em certo sentido, o argumento de Coover a respeito
da tirania da linha abre caminho para uma reflexão não
apenas sobre o fim, vale dizer, a morte do livro (que é
o argumento explícito do ensaio), mas sobre a sua transformação
em livro sem fim. É nesse contexto que é preciso
entender a palavra fim também como objetivo: o
fim do livro será talvez a sua transformação no
livro sem fim, a ser realizada principalmente na dispersão multilinear
do hipertexto. É o que sugere o trabalho recente de David Bolter
e Richard Crusin, teóricos que tentaram pensar sistematicamente
essa alternativa ao propor um estudo das novas tecnologias eletrônicas
não em termos da morte das tecnologias anteriores (ceci
tuera cela), mas antes em termos do conceito de remidiação
(remediation), vale dizer, das mudanças que ocorrem em
um meio ou meios (mídia) diante do aparecimento de uma tecnologia
que chega para, ao mesmo tempo, competir com e completar tecnologias
anteriores. Quando, por exemplo, o Projeto Gutenberg transfere
um livro para o meio eletrônico, o que ocorre não é
a morte do livro, mas a sua transformação: o livro material,
por assim dizer, perde o seu corpo e se transforma em livro virtual
e, simultaneamente, perde algumas de suas características (materialidade,
localização enquanto objeto em certos espaços físicos),
e ganha outras (virtualidade, facilidade de acesso). Mas trata-se aqui,
como explicam Bolter e Crusin, de uma remidiação
respeitosa, que hesita em desfigurar o meio anterior em respeito ao
significado cultural quase sagrado do texto impresso. O oposto ocorre
com filmes infantis, particularmente os filmes recentes de Walt Disney
(The Beauty and the Beast, Pocahontas). Como não
são objetos culturais a serem levados a sério (como um
romance), usam e abusam, sem nenhum constrangimento, da computação
gráfica tornada disponível pelo computador, para alterar
profundamente as narrativas fílmicas infantis anteriormente produzidas.
Muitos jornais da atualidade, também considerados meios menos
veneráveis do que o livro, alteram suas páginas de rosto
de forma radical, justapondo janelas maiores ou menores, tornando-se,
assim, visualmente semelhantes à tela do computador. Nem por
isso deixam de ser narrativas infantis ou jornais (Bolter and Crusin
1999, 200, 147-148, 40-41).Também o livro, e apesar de sua venerabilidade
enquanto objeto cultural, tornar-se-ia aos poucos remidiado,
não apenas de forma respeitosa ou conservadora, como no caso
do Projeto Gutemberg, mas também de forma mais agressiva,
com o aparecimento do hipertexto. O livro seria assim substituído
pelo livro sem fim, sem que isso venha a significar o seu desaparecimento.
NOTAS [1]
A atual economia global de mercado e os inevitáveis desequilíbrios
e desigualdades por ela produzidos não deixam de contribuir para
a solução mais rápida de tais problemas de recursos
econômicos, particularmente através da terceirização.
Diane Krieger informa que grandes projetos atualmente existentes e dotados
de recursos econômicos significativos utilizam a mão de obra
barata do Terceiro Mundo para, por exemplo, trabalhos de digitação
e revisão de textos. Já a questão de direitos autorais
não é tão simples, particularmente quando se considera
que as leis não são necessariamente as mesmas em países
diversos. Quando, em 1996, o Projeto Bartleby resolveu publicar a edição
de 1901 do clássico Oxford Book of English Poetry ( já
que, no contexto legal norte-americano, o livro podia já ser visto
como pertencente ao domínio público), o responsável
pelo projeto, Steven H. van Leeuwen, foi notificado por representantes
da Oxford University Press a respeito da ilegalidade do ato, em termos
do sistema legal britânico. O texto eletrônico foi imediatamente
retirado de circulação e, aparentemente em represália
ao problema legal criado, a Universidade de Columbia, que anteriormente
contribuía com recursos econômicos para o projeto, cancelou
o patrocínio. (Krieger 1998, 7-9).
[2] Ver, por exemplo, os ensaios de Geoffrey Numberg, Paul Duguid e Umberto Eco em The Future of the Book, ed. Geoffrey Numberg, Berkeley, University of Califórnia Press, 1996; e a "Introduction", em Writing Space, de Jay David Bolter (Hillsdale, NJ, LEA, 1991). [3]
Alguns exemplos de críticas do livro, citados no próprio
volume, apontam claramente para a importância do impulso emotivo
do texto: O livro [de Birkerts] apela apaixonadamente para a necessidade
que temos, hoje, de questionar a direção em que estamos
indo e a necessidade, ou mesmo a utilidade, da viagem. (The Washington
Times); O texto, que revela tanto inteligência como emoção,...
convida a um tipo de interesse atento, impossível de ser conseguido
em mil mensagens eletrônicas (San Francisco Chronicle);
Embora muitos escritores tenham anteriormente trilhado essas nostálgicas
veredas, poucos conseguiram capturar tão bem a emoção
e os valores da leitura profunda(The New York Newsday); O
elegante estilo [ de Birkerts] constitui um testemunho da habilidade que
tem as palavras bem escolhidas de provocar sentimentos e de persuadir(The
Seattle Times); Birkerts fundamenta suas teorias em fragmentos
de lembranças autobiográficas, que tornam seus argumentos
personalizados e passionais (Philadelphia City Paper) (Birkerts
1994. Citações extraídas da contracapa do livro).
Sérgio Luiz Prado Bellei é professor titular de Teoria Literária e Literatura Anglo-Americana no programa de Mestrado e Doutoramento em Literaturas de Língua Inglesa na Universidade Federal de Santa Catarina. É autor de O Cristal em Chamas (1986), Literatura e Nacionalidade (1992) e Henry James: Theory of the Novel (1998). Publicou recentemente capítulo de livro sobre a antropofagia brasileira ("Brazilian Anthropophagy Revisited") em livro editado pela Cambridge University Press (Cannibalism and the Colonial World) e ensaio sobre Iracema ("A Virgem dos Lábios Sem Mel") na Luso-Brasilian Review. Abertura |Recepção | Folha de rosto | Indice | Colaborações| Pesquisadores Brasileiros | Bancos de Teses | E-mails | Instruções | Arquivos |Endereços na Internet | Serviços | Lançamentos | Conselho
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