O FIM DO LIVRO E O LIVRO SEM FIM


Sérgio Luiz Prado Bellei
Universidade Federal de Santa Catarina


 

Resumo

O ensaio examina a formação de acervos virtuais que, principalmente nas últimas duas décadas, vem sendo sistematicamente disponibilizados em meios eletrônicos (cds, internet) e que tem provocado reações diversas em críticos literários, escritores e formadores de opinião em geral. Há, de um lado, visões catastróficas, que percebem os novos meios eletrônicos como uma ameaça à instituição do livro, e ao que ela representa enquanto repositório dos valores tradicionais do humanismo, agora prestes a serem substituídos por uma avalanche de textos eletrônicos marcados mais pela superficialidade dispersiva do que pela vivência de sabedoria proporcionada pelo livro impresso. E há, de outro lado, os que vêem os novos meios eletrônicos com otimismo e entusiasmo, como é o caso do romancista norte-americano Robert Coover. O ensaio sugere que tanto as posturas catastróficas como as excessivamente otimistas devem ser entendidas com certa cautela, pelo menos até que se entenda melhor a natureza específica das novas tecnologias.

Abstract


This paper looks at virtual libraries that have been made available in electronic media in the last twenty years (cds, internet) and at the reactions to the event in literary critics, writers and the media. There are, on the one hand, pessimistic views that tend to see the new electronic media as a threat to the institution of the book and to what this institution represents as a source of traditional humanist values, now on the verge of being replaced by electronic texts characterized by dispersion and superficiality rather than by the profound life experience typical of the printed book. And there are, on the other hand, those who see the new electronic media with optimism and enthusiasm, as is the case of the American novelist Robert Coover. The paper suggests that both these optimistic and pessimistic perceptions should be taken with a grain of salt, at least until the nature of the new technologies is more thoroughly understood.

 


 

1. INTRODUÇÃO


Uma das formas de compreender o impacto que teve o computador em práticas sociais e culturais é pensá-lo enquanto a mais recente e eficaz das tecnologias marcadas por um intenso poder de reprodução ou clonagem. A televisão é, evidentemente, um bom exemplo dessa tecnologia, na medida em que reproduz e empacota imagens a serem distribuídas para consumo à distância, o que explica em grande parte o seu poder cultural e econômico. Mas é o computador que, enquanto máquina capaz de simular outras máquinas ou tecnologias, traduzindo em forma digital o seu conteúdo informativo, apresenta-se hoje como o instrumento de clonagem por excelência. Ter um computador em casa ou no trabalho significa ter à disposição uma máquina que não apenas reproduz imagens, mas ainda incorpora um número muito grande de atividades, funções e tecnologias. Na realidade, o computador pode ser pensado como uma máquina que elabora simulacros capazes de imitar ou reproduzir uma infinidade de outras máquinas ou funções, o que torna o seu usuário capaz de realizar atividades como ir às compras ou ir ao banco, enviar correspondência, enviar um fax, ouvir música, assistir a um filme, visitar um museu. Pode ser utilizado, ainda, como uma máquina de escrever para produzir um texto (o que acabou por tornar a tecnologia anterior obsoleta já que, ao imitar a máquina de escrever, o processador de texto o faz de forma mais eficiente) ou, com o auxílio de um scanner, para reproduzir um texto escrito. O que interessa examinar mais de perto no presente ensaio é o impacto cultural do computador enquanto máquina de clonagem de textos, ou seja, uma máquina capaz de reproduzir livros e bibliotecas. E interessa examinar ainda o que poderia ocorrer se, como no caso da máquina de escrever, o computador viesse a substituir a tecnologia anterior (o texto escrito, o livro) com vantagem. A pergunta a ser feita, nesse caso, diz respeito ao destino das tecnologias anteriores e, mais especificamente, à sua capacidade de sobrevivência.

2. AS BIBLIOTECAS ELETRÔNICAS

O empreendimento que veio a ser conhecido como Projeto Gutenberg pode ser visto como emblemático desse movimento de transladação do livro e do texto impresso para o meio eletrônico. O idealizador do projeto, Michael Hart, ao dar-lhe o título de Gutenberg, teria provavelmente como objetivo apenas prestar homenagem ao inventor da imprensa. Mas não deixa de ser um tanto irônico o fato de a homenagem a Gutenberg constituir também, e a despeito das boas intenções de Hart, uma ameaça à tecnologia do texto impresso. É que a transposição de textos de um meio a outro traria, inevitavelmente, a indagação a respeito da necessidade de, uma vez feita a transposição, manter vivo o original de uma cópia eletrônica que acabaria sendo, em muitos aspectos, melhor do que o texto primeiro.

Jovem aluno universitário trabalhando no Laboratório de Pesquisa de materiais na Universidade de Illinois, Hart, já no início da década de setenta, não tinha dúvidas sobre o potencial que tem o computador de armazenar e reproduzir conhecimentos. Convicto de que milhões de computadores pessoais seriam em breve colocados no mercado, nada mais razoável, para o jovem pesquisador, do que utilizá-los para armazenar informação a ser disponibilizada para os usuários, de forma imediata e sem outro esforço que não o da digitação de alguns poucos símbolos. Motivado por um intenso idealismo democratizante (o acesso aos textos deveria ser gratuito e universal, a mão de obra para a reprodução dos textos tornada possível por doações, auxílios governamentais e pelo trabalho voluntário de, entre outros, alunos de pós-graduação), Hart decide iniciar a tarefa de transferir uma seleção de textos escritos para o meio eletrônico. Esta se tornava cada vez mais fácil em função de rápidos avanços tecnológicos (diskettes, cd-roms, internet, scanners, optical character readers). As vantagens da disponibilidade eletrônica de tais textos seriam logo evidenciadas, particularmente após o surgimento da Internet, que tornava possível a disseminação do conhecimento e da informação de forma imediata, abrangente, e a custo relativamente baixo. Profissionais, alunos e leitores em geral que, em qualquer parte do mundo, tivessem acesso a um computador equipado com um modem e a uma linha telefônica e quisessem consultar, por exemplo, os Provérbios Populares (Familar Quotations) de Bartlett (um dos primeiros textos que Hart transferiu para o meio eletrônico), não mais teriam que procurar o volume em bibliotecas ou livrarias. O texto estaria disponível na tela do monitor logo após o acesso ao endereço promo.net/pg. E a disponibilidade de acesso ao texto eletrônico, longe de estar limitada apenas às culturas dominantes, ocorreria também em áreas periféricas equipadas com um mínimo de tecnologia eletrônica, o que é um dado particularmente significativo para as nações do Terceiro Mundo, cronicamente afetadas pela indigência de periódicos, livros e bibliotecas.

Como qualquer acervo bibliotecário, o acervo eletrônico idealizado por Hart não poderia deixar de ser seletivo. Os livros acumulados nos quinhentos anos da Era Gutenberg, mesmo que se pense esse acervo apenas em termos de textos canônicos, são excessivamente numerosos para ser transferidos para o meio eletrônico, agora ou no futuro. Forçado a escolher, entre os milhões de volumes disponíveis, os textos a serem transferidos, Hart optou pela ênfase em três categorias, todas tendo como denominador comum o interesse geral da informação a ser utilizada: textos de referência, literatura popular, literatura clássica. Entre os primeiros textos a serem transferidos estavam a Bíblia, a obra de Shakespeare, a Constituição Americana, a Carta dos Direitos Humanos e a Declaração da Independência. A essa seletividade de conteúdos correspondia uma outra, de natureza formal, que dizia respeito ao estilo a ser escolhido para o texto eletrônico. Como os textos deveriam ser acessíveis gratuitamente para o maior número possível de pessoas, inclusive àquelas que eventualmente não dispusessem de recursos tecnológicos mais sofisticados, os textos seriam traduzidos apenas em formato texto (ASCII).
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Há, evidentemente, um preço a pagar pelo idealismo democrático que impõe limites aos conteúdos selecionados e ao formato dos textos. O formato texto, por exemplo, tende a tornar a leitura mais cansativa do que outros formatos com melhores recursos de visualização, o que pode desmotivar o leitor. E há, ainda, dificuldades inerentes às próprias tecnologias de reprodução de textos: leitores óticos de letras (OCR) garantem precisão quase total (99%), mas erros ainda ocorrem, como é o caso da freqüente leitura de um ponto de exclamação (!) como se fosse um i. Quando tais erros não são cuidadosamente revisados, evidentemente, a edição eletrônica atenderia apenas ao leitor comum, tornando-se inadequada para usos profissionais ou de pesquisa. E há, finalmente, limitações relativas à seleção de conteúdos, como é o caso da impossibilidade de publicações recentes e importantes, que não pertencem ainda ao domínio público e que são protegidas pelas leis de copyright. Não custa lembrar que tais leis foram feitas justamente para proteger o mercado do livro impresso, que se vê agora mais intensamente ameaçado pelo meio eletrônico. Em alguns casos, torna-se até mesmo necessário reforçar a proteção do meio impresso, através da ampliação legal do tempo de vigência de direitos autorais exclusivos, que definem o momento adequado em que certos textos poderão fazer parte do domínio público. Diane Krieger calcula que, nos Estados Unidos, com a aprovação da nova lei de copyright que estendeu a proteção do livro de 56 para 75 anos após a morte do autor, livros publicados antes da década de trinta (clássicos do modernismo, por exemplo) entram no domínio público apenas no momento atual, quando podem finalmente ser transferidos para o meio eletrônico (Krieger 1998, 8). Muitos desses problemas (a questão do formato texto, certas questões de copyright, revisão dos erros gerados por scanners) poderiam evidentemente ser resolvidos com recursos econômicos, o que encareceria o produto eletrônico final e, no caso do projeto Gutenberg, comprometeria a proposta idealista de divulgação de textos a custos baixos. [1]

Entusiasmado com o andamento do projeto, apesar das dificuldades, Hart arriscou, em 1992, previsões futuras marcadas por um excesso de otimismo. Imaginou então que, ao final do ano 2001, dez mil volumes estariam disponíveis na rede. Já em 1997 tornou-se evidente que tal meta não seria atingida: o número de volumes então disponíveis na biblioteca totalizava apenas um décimo do número previsto (Krieger 1998, 2). O projeto, contudo, teve e tem inegável sucesso na medida em que se transformou em um modelo pioneiro para outras bibliotecas eletrônicas, várias delas tentando conscientemente detectar as falhas existentes no projeto modelo e procurar alternativas viáveis. É o caso de Wiretap (wiretap.area.com), que tem um acervo de centenas de textos clássicos, filosóficos, políticos e religiosos, e de projetos patrocinados por instituições como a Universidade de Virgínia, do Texas, e de Yale. É bem possível que o problema mais sério de acervos modelados de acordo com o Projeto Gutenberg seja não tanto a limitação imposta pelo idealismo de oferecer ao público um produto de baixo custo e, portanto, inevitavelmente marcado por limitações que só o poder econômico pode corrigir (revisão de textos, formato ASCII, etc.), mas, antes, o equívoco que resulta da percepção do computador como mera máquina reprodutora. É que o computador é também, e talvez principalmente, uma máquina produtora de seus próprios textos específicos (hipertextos), qualitativamente diversos dos textos escritos, o que coloca de imediato a questão das possíveis vantagens existentes na projeção de bibliotecas formadas não apenas por textos anteriormente existentes e traduzidos para o meio eletrônico, mas de hipertextos, ou seja, textos especificamente gerados a partir da nova tecnologia e, na prática e por motivos de ordem principalmente econômica, impossíveis de serem obtidos em outros meios.

Uma das iniciativas mais ambiciosas inspiradas pelo Projeto Gutenberg é a proposta de criação da National Electronic Library (Biblioteca Eletrônica Nacional), idealizada em 1996 por Brian Hawkins, vice-presidente do setor de Planejamento e Administração Acadêmica da Universidade de Brown. A biblioteca, a ser disponibilizada através da Internet, seria administrada por uma agência com fins não lucrativos, e em um sistema de cooperação com outras bibliotecas norte-americanas, universitárias ou não. O objetivo seria, aqui, a constituição de um imenso acervo virtual organizado, na proposta de Hawkins, de acordo com quatro princípios básicos: garantia de acesso gratuito; capacidade de interligar-se a outras entidades da Internet, comerciais ou públicas; determinação de evitar duplicações e de promover objetivos acadêmicos; atenção às possibilidades de desenvolvimento futuro e abertura às inovações tecnológicas. Um projeto de tal porte, como percebeu o próprio Hawkins, não poderia ser desenvolvido sem que fossem, antes, superadas dificuldades imensas, a menor das quais é a que diz respeito às necessidades de recursos tecnológicos. Na realidade, de acordo com Hawkins, a tecnologia para operacionalizar o projeto já existe. Os problemas maiores são de ordem financeira, logística e contratual (Krieger 1998, 4). Seriam necessários, por exemplo, recursos em volume significativo para a aquisição de direitos autorais, que teriam que ser obtidos, por exemplo, dos orçamentos já existentes nas bibliotecas universitárias e de agências governamentais.

O projeto de Hawkins é apenas um entre vários outros em andamento, todos enfrentando dificuldades mais ou menos semelhantes. Três universidades norte-americanas, atuando em conjunto, examinaram a difícil possibilidade de criar uma biblioteca virtual global capaz de tornar disponível, na rede, as obras de todos os autores da humanidade (www.ul.cs.cmu.edu/ first.html). Existe, ainda, a tentativa feita por um grupo de grandes universidades no sentido de se criar a Digital Library Federation (lcweb.loc.gov /loc/ndlf/ndlfhome.html). Incluem-se, entre as instituições participantes do projeto, universidades do porte de Yale, Harvard, Princeton, Cornell, Berkeley, Stanford, Michigan e a Biblioteca do Congresso. Os problemas para a concretização de tal acervo são basicamente os mesmos encontrados por Hawkins: como evitar reduplicações, como definir a questão de padrões a serem estabelecidos para a digitação dos textos, como tratar do problema dos direitos autorais. Mas a solução de tais problemas não é impossível, e tudo leva a crer que, em futuro próximo, tanto megaprojetos como os de Hawkins ou a DLF, como projetos menores como o Projeto Bartleby (www.bartleby.com) resolverão pelo menos parcialmente tais dificuldades, e as bibliotecas virtuais, tanto as já existentes como as que estão por vir, atingirão condições satisfatórias de operacionalidade. Algumas, na realidade, já atingiram tais condições: O Arquivo Blake, O Arquivo Rossetti, O Projeto Perseus. Não custa lembrar que, em futuro próximo e dado o crescente acúmulo de conhecimento, a efetivação de tais projetos pode bem ser uma necessidade, já que as bibliotecas que abrigam o livro impresso enfrentam problemas crescentes de manutenção e atualização. A corrosão do papel por substâncias ácidas, por exemplo, vai aos poucos provocando a deterioração de acervos importantes. O problema maior, contudo, diz respeito ao acúmulo crescente de informação que as boas bibliotecas deveriam tentar incorporar. No caso das melhores bibliotecas norte-americanas, Diane Krieger calcula que, no caso provável de que a renovação do conhecimento venha a ocorrer a cada dois anos, já em 2001 os recursos econômicos disponíveis para atualizar a informação teriam poder de compra de apenas 2% da informação gerada (Krieger 1998, 5). Como o desgaste do papel por acidez dificilmente poderá ser evitado, e dada a dificuldade que tem as bibliotecas de livros impressos de evitar a duplicação de recursos, as bibliotecas eletrônicas podem rapidamente tornar-se não apenas uma alternativa, mas uma necessidade. Nelas não existiria o problema da corrosão, a duplicação de recursos seria mais facilmente controlável porque a procura de um livro poderia ser eletronicamente realizada a partir de qualquer local da rede, e, finalmente, o espaço necessário para armazenamento de informação seria irrisório quando comparado ao espaço físico necessário para o armazenamento do livro.

Vale a pena lembrar, ainda que de passagem, já que o assunto será tratado adiante em mais detalhe, que as bibliotecas eletrônicas não precisam necessariamente estar limitadas à reprodução de textos. Podem ser planejadas para incorporar tecnologias características do hipertexto, ou seja, características que tornam possível maximizar conexões entre um texto e outro, entre blocos de texto, entre texto e gráficos. O meio hipertextual poderia ainda facilitar múltiplas manipulações de um texto a partir do momento em que a ele são incorporados bancos de dados acessíveis por links. Poderia então ocorrer a procura de palavras correlatas, a comparação de edições diferentes da mesma obra, a determinação da freqüência vocabular. Para muitos pesquisadores profissionais, tais possibilidades são de extrema utilidade e tornam o meio eletrônico indispensável para a pesquisa rigorosa na atualidade. Ao que tudo indica, as bibliotecas virtuais vieram para ficar, apesar da dificuldade de solução de muitos de seus problemas operacionais. Enquanto alternativa para (e não necessariamente substituição das) bibliotecas de acervos impressos, as novas bibliotecas representam uma profunda e inquietante mudança histórica nas formas pelas quais o conhecimento é coletado e arquivado.


3. O FIM DO LIVRO, A NOSTALGIA PELO PASSADO E A ESPERANÇA DO FUTURO



As alterações na forma de coletar e arquivar conhecimento vêm sendo freqüentemente percebidas em termos de uma ameaça ao livro escrito, agora aparentemente em vias de desaparecer diante das possibilidades oferecidas pelo meio eletrônico. Conforme o caso, enfrenta-se a ameaça ora em termos de glorificação, ora do exorcismo sumário do computador, normalmente expressos sem a preocupação com um questionamento mais rigoroso do clássico postulado apocalíptico expresso na fórmula ceci tuera cela. Trata-se, em Notre-Dame de Paris, da frase pronunciada por um clérigo que, ao abrir a janela de seu claustro, volta os olhos para a catedral parisiense e, logo a seguir, para o livro aberto sobre a mesa, e lamenta: isto destruirá aquilo. A frase retorna insistentemente em discussões sobre as possíveis conseqüências do advento do texto eletrônico para o texto impresso.[2] Como a ação do romance ocorre no século XV, logo após a invenção da imprensa, o significado do lamento é claro: refere-se não apenas à perda da autoridade da Igreja como resultado da divulgação do livro, mas, também e principalmente, à possível perda do sentido da catedral enquanto texto cultural a ser utilizado para a transmissão do conhecimento religioso para o povo do medievo. Na época, a catedral funcionava também como biblioteca a ser lida pelo cristão comum que, não tendo acesso aos manuscritos manuseados apenas pelas elites letradas, olhava para os vitrais e deles absorvia as mensagens contidas em relatos bíblicos, os ensinamentos de vícios e virtudes, as visões do céu e da terra, os princípios morais do catolicismo, e até mesmo conhecimentos de geografia. Como explica Umberto Eco, em comentário sobre o ceci tuera cela no romance de Hugo, a catedral-biblioteca do medievo era uma espécie de

programa de televisão imutável e permanente, planejado para proporcionar ao povo tudo o que fosse indispensável tanto para o seu cotidiano como para a salvação eterna. O livro [por outro lado] desviaria a atenção das pessoas dos valores mais importantes e abriria caminho para informações não relevantes (no que diz respeito à interpretação livre das escrituras) e para uma curiosidade desvairada (Eco 1996, 2).


Eco lembra oportunamente que o ceci tuera cela representa uma resposta cultural típica de momentos históricos em que uma nova tecnologia começa a competir com as anteriores. O célebre texto platônico que descreve a invenção da escrita é o mais conhecido precedente do texto de Hugo. Quando Hermes apresenta a invenção da escrita ao faraó Tamus, este revela sua suspeita de que a nova invenção contribuiria para o enfraquecimento da memória dos homens, já que, com a possibilidade de se fixar o conhecimento em um objeto externo, tornar-se ia desnecessário o esforço mental interno para lembrá-lo (Platão, Fedro, 274-7). No romance de Hugo, ocorre uma suspeita análoga à do faraó: imagina-se que a nova tecnologia do livro escrito destruiria inevitavelmente formas culturais anteriores. No momento contemporâneo, a fobia expressa pelo clérigo de Hugo aparece novamente, agora motivada pelo advento do computador e do texto eletrônico. Mas aparecem, também, posturas otimistas em relação à nova tecnologia, ou seja, posturas que repetem o otimismo e o entusiasmo de Hermes ao oferecer a nova tecnologia ao faraó. São, nos dois casos, posturas passionais de rejeição ou aceitação do novo, que é visto ora como ameaça, como no caso de Sven Birkerts, ora como inovação benéfica, como no caso do romancista Robert Coover.

O livro de Birkerts (The Gutemberg Elegies), publicado em 1994, tornou-se imediatamente um sucesso editorial. Birkerts expressa enfaticamente, em seu texto, um lamento pela catástrofe cultural que já estaria ocorrendo com a perda da instituição do livro escrito. Parte do sucesso que caracterizou a recepção de The Gutemberg Elegies deve-se ao fato de que o autor, longe de tentar apenas desenvolver um argumento sólido e bem fundamentado (um texto, digamos, meramente acadêmico), esforçou-se para contaminar constantemente o argumento a respeito das conseqüências culturais do fim do livro com um conteúdo passional, expresso em narrativas autobiográficas e em depoimentos pessoais.[3] O texto, um misto de argumento e paixão, parte constantemente de uma experiência pessoal rememorada, que é posteriormente justificada por uma argumentação rigorosa. Esta acaba por se tornar mais eficaz porque motivada por urgências existenciais: a percepção angustiante da presença de uma geração, da qual faz parte sua filha de cinco anos, com a atenção tão absolutamente absorvida pelos meios eletrônicos, que a percepção do meio impresso (a leitura, por exemplo, de um romance deThomas Mann ou Dostoievski) perde todo e qualquer significado; o desencanto, ao perceber que seus alunos universitários já não tem interesse em ler um conto de James, não porque não o compreendem, mas porque a forma de conhecimento oferecida parece já não fazer sentido; ou a triste experiência, no período de vida em que gerenciava um sebo, de adquirir bibliotecas de professores universitários desencantados com o livro. Esta última situação vivencial pode bem ser tomada como emblemática da atmosfera de nostalgia e perda que marca o livro como um todo. É que uma transação comercial, descrita em detalhes, transforma-se, aos poucos, em epifania reveladora de um sentido maior. Expressando sua curiosidade sobre as razões que teriam levado o professor de literatura a colocar seus livros à venda, este o conduz a uma sala e aponta para um computador colocado sobre uma mesa, como se lá estivesse em exibição no Museu Espacial:


Estou dando um novo rumo à minha vida, dizia o ex-professor. É aqui que tudo vai acontecer. Contou que tinha já várias ofertas de trabalho. E os livros? perguntei. Por que vender todos? Após uma pausa, a resposta: A profissão como um todo é penosa para mim.... Não quero ver nenhum desses livros novamente.
..............................
O professor não era apenas um caso isolado. No período de dois anos, encontramos [meu sócio e eu] vários outros em situaações semelhantes. Homens e mulheres ainda jovens que, tendo visto o futuro, resolveram mudar de rumo enquanto as oportunidades eram abundantes. O livros eram vendidos, às vezes, por razões econômicas, mas a necessidade de destruir pontes estava também, em geral, presente. Tudo se passava como se o caminho para o futuro tornasse também necessária a destruição dos emblemas do passado (Birkerts 1994, 118).

Birkerts caracteriza esse momento de mudança histórica do livro para o computador em termos catastróficos: a cultura no final do século passa por uma metamorfose total, uma mudança caracterizada ora como sistêmica, ora como o divisor de águas por excelência do milênio (Birkerts 1994, 3, 15, 71). Trata-se da mudança da página para a tela que, alterando as formas de fluxo e recepção do conhecimento, coloca em xeque valores perenes da civilização ocidental, como a capacidade humana para produzir e absorver discursos complexos, a possibilidade de formação do indivíduo e de uma ética individual, e a capacidade de entendimento histórico. Birkerts, evidentemente, não está falando de todo e qualquer livro mas, em particular, dos livros da tradição humanista ocidental, com ênfase na literatura. No encontro com tais livros, o que ocorre é um processo de imersão do leitor em um mundo de valores éticos e estéticos a ser não apenas contemplado, mas vivido na postura de meditação silenciosa que deveria levar não ao conhecimento das coisas, dos objetos, e da informação, mas à sabedoria a respeito do sentido da vida. Quando lemos, diz Birkerts, não apenas transplantamos a nós mesmos para o lugar do texto, mas alteramos o nosso ponto de vista sobre todas as coisas; reposicionamos o ser individual com o objetivo de ver de uma forma diferente (Birkerts 1994, 80). É a partir de tal reposicionamento do ser individual que se torna possível manter viva a perigosa e libertadora idéia de que a vida não é uma seqüência de momentos vividos, mas um destino (Birkerts 1994, 85). Mapear o significado da vida no encontro com o livro é procurar a sabedoria mais do que a informação e o conhecimento. Estes, disponibilizados pelos meios eletrônicos, existem hoje em excesso, mas são capazes apenas de oferecer uma sobrecarga de dados inertes que, ao que tudo indica, têm sentido apenas porque são apresentados de forma espetacular, como na televisão ou na Internet. Esse acúmulo de dados satisfaz apenas àquele ser individual absorvido pela rotina das ações cotidianas (aquele eu do qual falamos quando dizemos:" levei meu carro ao mecânico hoje de manhã"), em contraste com aquele outro eu a que nos referimos quando dizemos sempre acreditei que (Birkerts, 212). Este último, o eu de crenças e convicções, forjado sempre pelo encontro com os grandes livros, procura a verticalidade da sabedoria mais do que a horizontalidade do conhecimento. A sabedoria, Birkerts explica,

é o conhecimento não dos fatos, mas das verdades da natureza humana e dos processos da vida; ... [fundamentada no] postulado de que o ser humano pode de alguma forma apropriar-se do sentido total da vida e de suas leis, compreendendo o todo e a relação das partes. Compreender: manter interligado. (Birkerts 1994, 74).


Birkerts caracteriza esse ser construtor do sentido da vida a partir do contato com o livro impresso, necessariamente diverso do texto eletrônico, também em termos de uma certa temporalidade profunda, em contraste com uma temporalidade de superfícies:

De forma simplificada, a experiência interior, que inclui experiências estéticas de qualquer espécie, acontece em uma forma de temporalidade; a comunicação eletrônica, por sua própria natureza, depende de e institui, de fato, uma outra. O tempo do ser é o tempo profundo, tempo da duração, tempo que é essencialmente marcado pelo fato de que perdemos consciência dele. Na medida em que nos entregamos à experiência de imersão em um livro, ouvimos música, ou nos entregamos ao universo visual da pintura, somos possuídos pela perda de consciência do presente enquanto força norteadora de uma rede de direções possíveis. Abandonamos a estrutura dominante do agora, substituindo-a por sentidos, sentimentos e absorção. Todas as comunicações eletrônicas, por outro lado, estão fundamentadas no princípio do imediato. Para usá-las, para interagir com elas, torna-se necessário entrarmos em uma espécie de agora virtual: o presente perpétuo do impulso, do beep, do brilho intermitente do cursor. Fala-se comumente em ciberespaço, termo que designa aquele estranho não-lugar de armazenamento e fluxo de dados, o espaço em que vivemos quando estamos conectados à rede. Proponho que comecemos a usar também o neologismo análogo, cibertempo, para designar o limbo em que ficamos suspensos enquanto atuamos no ciberespaço (Birkerts 1994, 193).

Existe, para Birkerts, um tempo livresco, humano e profundo de meditação e reflexão (um tempo produtor de epifanias, por assim dizer) que nos permite sair do presente cronológico e experimentar um tempo paradoxalmente fora do tempo (tempo-duração ou tempo-permanência), radicalmente diverso daquele tempo de eterno presente e de simultaneidade total de coisas e eventos que experimentamos diante da tela do computador. Trata-se aqui de um tempo subordinado à dimensão espacial que distribui momentaneamente objetos em um campo visual luminoso. Ler um livro virtual nesse cibertempo, ainda que o livro seja apenas traduzido para o meio digital e apresentado na tela, é, para Birkerts, algo diferente de ter em mãos um livro real a ser folheado página após página, ora mais rapidamente, ora mais lentamente, com pausas para meditar sobre o que foi lido, retornando a páginas anteriores para reler certas passagens. Neste último caso, o que ocorre na leitura é a oportunidade que tem o indivíduo de constituir-se como sujeito pensante, no ato de imersão e meditação. A leitura séria, Birkerts explica, é uma atividade formadora do ser individual (Birkerts 1994, 87). A experiência da leitura é importante, não tanto porque nos transmite uma mensagem ou um sentido, mas porque produz um estado de espírito no qual o ser se percebe como tal e constitui a sua identidade.

A levar-se a sério o argumento de Birkerts, o que está em jogo com o possível desaparecimento do livro é a própria possibilidade de formação do ser individual pensante, marcado por uma ética pessoal. A conseqüência óbvia do desaparecimento do indivíduo é o aparecimento, em seu lugar, do ser despersonalizado, literalmente aprisionado na rede comunal, que acabaria por tornar-se uma grande colmeia, absorvendo a todos em sua trama. A infra-estrutura eletrônica para a grande colmeia, particularmente nos Estados Unidos, parece já estar pronta. Após lembrar que, em 1950, uma família típica teria basicamente um rádio e um telefone de disco ou, talvez, em alguns casos, um televisor preto e branco, Birkerts constata a saturação eletrônica de uma moradia comum em 1990:

vários televisores a cores, com capacidade para jogos nintendo e com aparelhos de videocassete, computadores pessoais, modems, aparelhos de fax, telefones celulares, secretárias eletrônicas, telefones para automóveis, camcorders, cd-players...
E conclui:
em menos de cinqüenta anos, avançamos de uma condição de isolamento essencial para uma de mediações intensas e quase incessantes. Um tecido de filamentos eletrônicos coloca-se agora entre nós e o chamado mundo exterior. A idéia da passar não uma semana, mas até mesmo um dia, longe dessa aparelhagem parece ousada, até mesmo arriscada.

E o novo homem despersonalizado, agora inseparável da parafernália eletrônica, não estaria, como pensam alguns, expandindo seus poderes tecnológicos para participar mais intensamente em uma grande comunidade democrática virtual (já que as comunidades reais, não virtualizadas, parecem estar em vias de desaparecer). Estaria, antes, ajustando-se eletronicamente (wiring himself) a uma gigantesca colmeia na qual a vida acontece em meio a um burburinho de sinais eletrônicos que é, ao mesmo tempo, excitante, desvairado e profundamente dispersivo:

Quando todos estiverem on-line, quando os circuitos eletromagnéticos estalarem por todos os lados, os impulsos voando em todas as direções, como pensamentos em um cérebro enlouquecido, teremos que repensar nossa definição de individualidade e nossos ideais tradicionais de subjetividade personalizada. E, também, os ideais de vida privada que sempre dela fizeram parte (Birkerts, 1994, 5, 219-220).

Não é difícil perceber, em tais observações, o intelectual representante de um humanismo moderno, deslocado na dispersão pós-moderna. Na verdade, o próprio Birkerts, ao apresentar esquematicamente um balanço das perdas e ganhos do pós-modernismo eletrônico, acaba por percebê-lo mais como decadência do que como progresso e, implicitamente, alinha-se com ideais do modernismo logocêntrico e humanista. Feita a contabilidade, as vantagens do pós-moderno são a melhor compreensão da perspectiva globalizante e da complexidade de inter-relacionamentos no momento contemporâneo; a expansão da capacidade neurológica para receber simultaneamente um conjunto maior de estímulos; o questionamento de absolutos e aceitação do relativo, freqüentemente expresso em termos de tolerância; e, finalmente, uma predisposição para enfrentar novas situações. A lista de perdas, mais longa e substancial, sugere que o que desapareceu foi o conjunto de valores éticos e estéticos vigentes na civilização ocidental antes do momento pós-moderno:

a percepção fragmentada do tempo e a perda da chamada experiência do tempo-duração, esse fenômeno de profundidade normalmente associado ao devaneio; a redução da capacidade de concentrar a atenção e a impaciência geral com o raciocínio constante e rigoroso; a perda da confiança nas instituições e em narrativas interpretativas que, tradicionalmente, tornavam significativa a experiência individual; a ruptura com o passado, com o sentido vital da história enquanto processo orgânico e cumulativo; a alienação do espaço geográfico e da comunidade; a ausência de qualquer visão segura de um futuro pessoal ou coletivo (Birkerts 1994, 27)

. Estamos aqui diante de uma das muitas avaliações pessimistas dos meios eletrônicos pós-modernos, que têm como contrapartida outras tantas avaliações otimistas. É certamente uma dessas perspectivas mais otimistas aquela proposta pelo romancista Robert Coover.

Em importante ensaio publicado em 1992, significativamente intitulado The End of Books, Coover começa por afirmar que,

no mundo real dos dias de hoje, vale dizer, no mundo das transmissões de vídeo, telefones celulares, aparelhos de fax e, particularmente, nos ambientes digitais em que se ouve o zumbir dos computadores operados por hackers e fanáticos do ciberespaço, ouve-se dizer com freqüência que o meio impresso é obsoleto e está fadado a desaparecer....Isto significaria também, evidentemente, que o romance, como o conhecemos hoje, desapareceria (Coover, 1992. 1).

Note-se que trata-se, aqui, do mundo real sendo paradoxalmente definido justamente por seu excesso de irrealidade, já que é constituído pela saturação de linguagens, sinais e imagens que, como afirmou Birkerts, formam um tecido de filamentos colocados entre nós e o chamado ‘mundo exterior’. Separado do mundo pela presença crescente de mediações eletrônicas, a subjetividade humana já não pode permanecer a mesma e começa a ser percebida, dependendo da perspectiva teórica mais ou menos pessimista, ora em termos de uma alienação do ser individual, ora em termos de uma nova forma de humanidade (ou desumanidade) moldada pelas novas tecnologias. Birkerts, como se viu, prefere entender essa nova subjetividade de forma negativa e em termos de perda. Ocorre aqui a percepção de uma decadência cultural, produzida como resultado de uma tecnologia pós-moderna que, redefinindo o tempo como cibertempo em um espaço de dispersão de sentidos, acaba por produzir efeitos negativos na subjetividade humana, que se vê agora destituída da capacidade perceptiva do ser profundo, da possibilidade de formação de uma ética pessoal, e da capacidade de fazer sentido da história. Coover, por outro lado, entende a nova subjetividade pós-moderna e o novo leitor de livros virtuais como diferentes em relação ao passado, mas não necessariamente como decadentes ou piores.

De forma simplificada, Coover percebe o livro e o romance tradicionais não em termos da glorificação da individualidade humana proposta por Birkerts, mas antes como, entre outras coisas, um meio de comunicação limitado pela dimensão da linearidade e, em certa medida, repressivo em relação às tendências expansivas e disseminadoras do pensamento.

Grande parte do suposto poder do romance [e, poderíamos acrescentar, do livro em geral], diz Coover, depende da linha, desse movimento obrigatório e controlado pelo autor, que leva do início da frase ao ponto final, da margem superior à inferior, da primeira página à última (Coover 1992, 1).

Coover denomina esse movimento forçado e controlado pelo autor a tirania da linha. Trata-se da tirania que aprisiona o sentido e controla a sua disseminação. O livro impresso, por assim dizer, ao imprimir e comprimir o sentido em uma lógica de linearidade, acaba por tornar-se também uma forma de oprimir. Impressão e imprensa significam, também e necessariamente, opressão. É por esse motivo que, como explica Coover,

no decorrer de toda a história da imprensa, apareceram inúmeras estratégias opostas ao poder da linha, desde a marginalia e a nota de rodapé, até as propostas inovadoras de romancistas como Laurence Sterne, James Joyce, Raymond Queneu, Julio Cortazar, Italo Calvino e Milorad Pavic, para não falar do pai fundador do gênero, o próprio Cervantes (Coover 1992, 1).

Todas essas tentativas de criar uma narrativa não linear, contudo, não chegaram a abalar seriamente a tradição de linearidade do livro, porque tentaram questioná-la sem dispor, para tanto, de outro meio ou de outra tecnologia textual que não a do próprio livro impresso. Questiona-se, como no caso das divagações de Tristram Shandy, a linearidade livresca a partir do próprio local de aprisionamento que é o livro. Sterne não podia questionar a linearidade do romance porque não dispunha de uma tecnologia capaz de estabelecer uma escrita realmente multilinear, em que um sentido pudesse ser imediatamente conectado (linkado) a muitos outros, em uma dimensão espacial. A ele faltava, em resumo, o computador e a sua capacidade de gerar hipertextos, ou textos multilineares. Para Coover, com o advento do computador e do hipertexto, torna-se possível, pela primeira vez desde Gutenberg, questionar a linearidade do texto impresso, utilizando uma tecnologia alternativa de produção textual:

a verdadeira liberdade de escapar da tirania da linha pode ser vista como sendo agora realmente possível, graças ao advento do hipertexto, escrito e lido no computador, no qual a linha na verdade não existe, a não ser que alguém a invente e implante no texto (Coover 1992, 1).

Não custa lembrar aqui, ainda que de passagem, que o otimismo de Coover justifica-se, pelo menos em parte, em termos de sua trajetória como escritor. Trata-se de romancista de vanguarda mais na tradição de Sterne do que na tradição do romance realista, linear e bem comportado.

É a trajetória de Coover como romancista interessado, como ele próprio diz, na subversão do romance burguês tradicional, e em obras de ficção que desafiam a linearidade (um interesse, portanto, em uma nova biblioteca de hipertextos mais do que textos), que o leva a olhar com otimismo para os novos textos eletrônicos não lineares. Desse otimismo surge a Oficina de Ficção Hipertextual, uma experiência de ensino realizada pelo próprio Coover, na Universidade de Brown, com o objetivo duplo de alterar hábitos de leitura e de criar novas formas de narrar. Parte do trabalho realizado na oficina foi a criação de um grupo de trabalho encarregado de produzir um texto coletivo no meio eletrônico. Significativamente denominado Hotel, o projeto coletivo tornava possível aos alunos

hospedar-se, abrir novos quartos, novos corredores, novas intrigas, desconectar textos e criar novas conexões, interferir nos textos dos outros, alterar a direção do enredo, manipular o tempo e o espaço, dialogar através de personagens fictícios, destruir personagens fictícios dos outros, e até mesmo sabotar o encanamento do prédio.

Comentando sobre o hotel hipertextual em 1992, Coover reafirma seu entusiasmo pelo meio eletrônico ao expressar o desejo de que o hotel, recebendo semestre após semestre novos grupos de alunos-hóspedes, dispostos a continuar e modificar o trabalho já feito, continue aberto por mais um século ou dois. É que, se não por outro motivo, o hipertexto e os textos eletrônicos em geral prometem uma revolução no ensino. Os resultados produzidos pelos alunos, em termos de criatividade, foram melhores do que aqueles obtidos em cursos regulares de graduação, e a qualidade do material produzido foi certamente de igual valor(Coover 1992, 2-3). Em outro ensaio, também publicado no NYTRB, Coover conclui: é o irresistível poder educativo do hipertexto que demonstra, para mim, a sua inevitabilidade enquanto um novo meio para a arte, narrativa ou não (Coover 1993, 3).


4. O TRAUMA DO FIM DO LIVRO

Em 1998, calculava-se o número de livros eletrônicos disponíveis nos Estados Unidos em torno de 20.000 (Krieger, 1998, 10). Como se trata de quantidade ínfima quando comparada aos milhões de livros impressos existentes, poderia parecer surpreendente e exagerada a intensa reação de muitos intelectuais, positiva ou negativa, diante da possibilidade do desaparecimento do livro escrito, a ser rapidamente transformado em peça de museu pelas novas tecnologias eletrônicas. Mas é precisamente o exagero passional das reações de intelectuais como Birkerts e Coover que torna mais fácil compreender o impacto cultural do fim do livro. O aparecimento da paixão lá onde era de se esperar a racionalidade mais fria indica que a possibilidade, real ou imaginária, do fim da Era de Gutemberg constitui uma mudança histórica profundamente desestabilizadora de estruturas culturais sedimentadas, o que produz insegurança, medo e angústia ou, em contrapartida, esperança de renovação. É o caso da angústia paterna de Birkerts ao imaginar sua própria filha como parte de uma geração enredada na colmeia dos meios eletrônicos a ponto de não mais conseguir ler Henry James, ou do entusiasmo de Coover diante de uma tecnologia que pode, agora, realizar melhor a tarefa de destruir a linearidade do romance burguês tradicional. Em outras palavras, o fim do livro, real ou imaginário, constitui evento histórico e cultural de proporções potencialmente traumáticas e como tal dever ser entendido.

A possibilidade do fim do livro é traumática porque o livro não pode jamais ser visto apenas como material inerte ou simples objeto de consumo. É antes um objeto simbólico e uma instituição aos quais a cultura pós-Gutenberg confiou a tarefa de armazenar e fazer circular praticamente todo o conhecimento considerado relevante. Enquanto instituição, o livro representa uma forma de socialização que compreende todo um circuito de produção e consumo: autores, editores, leitores, críticos, comunidades interpretativas institucionalizadas. Como qualquer forma de socialização, a instituição do livro cria um espaço público, estabelece hierarquias e constitui identidades nos grupos e nos indivíduos que dela participam. Constituem-se, assim, a figura glorificada do autor-mestre enquanto responsável pela produção daquela seqüência de palavras supostamente carregadas de valor cultural a ponto de merecer ser fixada em um artefato a ser transmitido para a posteridade; a figura subordinada, possivelmente distante no espaço e no tempo, do leitor-aprendiz; a complexa relação de ambos, diferente em momentos históricos diversos, com a máquina editorial e a economia do livro; a figura do crítico enquanto mediador institucionalmente qualificado entre autor e leitor e agente confirmador de qualidade superior a ser preservada, ou de qualidade inferior a ser descartada. Ameaçar o texto impresso significa ameaçar todo um conjunto de estruturas sociais e econômicas e de identidades pessoais ou grupais que, sob pressão, reagem diante do que lhes parece ser uma questão de sobrevivência. Birkerts deve insistir na importância da leitura silenciosa e isolada responsável pela formação da interioridade do sujeito e da ética individual porque estas são, em certa medida, situações históricas constituídas pelo próprio livro e transformadas em valores sociais a serem preservados. Como mostram estudos recentes, o leitor que, imerso na leitura, interioriza significados em silêncio e isoladamente é um fenômeno histórico decorrente da própria tecnologia do livro, já que a leitura de manuscritos do medievo, e mesmo dos primeiros livros, era, via de regra, feita ou em voz alta ou acompanhada do movimento dos lábios pronunciando palavras e frases. Era, portanto, um ato de recitação voltado também para o exterior e ainda apenas parcialmente interiorizado. É somente no final da Idade Média que a leitura silenciosa se torna comum e passa a desenvolver, de forma mais enfática, a dimensão de interioridade de que fala Birkerts (ver Bolter 1991, 86). E o próprio conceito histórico de ser individual parece depender, em certa medida, da tecnologia do livro escrito. Como explica George P. Landow, os escritos medievais, por razões econômicas e de escassez de papel, eliminavam os intervalos entre as palavras, o que tornava a leitura um verdadeiro ato de decifração. Quando o barateamento de custos de produção textual, por volta do ano 1000, tornou exeqüível a utilização de espaço entre palavras, tornou-se possível, também, a leitura silenciosa que, por sua vez, torna possível o conceito moderno de um ser individual interior e privado (Landow 1996, 217). Se a explicação de Landow é correta, a defesa que Birkerts faz do livro como agente cultural capaz de ativar e aperfeiçoar certas qualidades básicas (como a interioridade e a contemplação) de uma individualidade transhistórica é patentemente equivocada. É a própria leitura do livro impresso que constitui, pelo menos em parte e historicamente, o ser individual como o conhecemos. E trata-se de ser individual que está talvez em vias de desaparecer, na medida em que as novas tecnologias tornam possível a constituição de outras subjetividades, motivadas por tecnologias outras que não a do livro impresso.

Ao constituir, em sua materialidade, uma instituição cultural extremamente poderosa, que legitima certas formas de subjetividade ao mesmo tempo que exclui outras, o livro torna-se não apenas um objeto de consumo, mas um objeto sagrado. A ameaça ao livro é, assim, a ameaça ao corpo sagrado do livro que, com o advento do computador, dissolve-se nas palavras desencarnadas e fantasmagóricas da tela. Para George P. Landow, essa transformação do livro real e sagrado em livro virtual constitui a mudança tecnológica fundamental que explica todas as diferenças percebidas entre a leitura da página escrita e a leitura virtual na tela. Nas palavras de Landow,

[o computador] nos proporciona não um texto material, mas um texto eletrônico, e essa metamorfose do código escrito para o código eletrônico — o que Jean Bardrillard chama de mudança do tátil para o digital — produz uma tecnologia de informação que combina simultaneamente estabilidade e flexibilidade, ordem e acessibilidade. Mas há um preço a pagar. Como o processador de texto eletrônico depende sempre da manipulação de códigos no computador, todos os textos exibidos na tela são virtuais. Utilizando uma analogia emprestada da ótica, técnicos em computação falam em máquinas virtuais, criadas por um sistema operatório (operating system), que torna possível a usuários terem a sensação de utilizar suas máquinas individuais quando, na realidade, estão partilhando um mesmo sistema com centenas de outros operadores. De forma análoga, todos os textos que o leitor e o escritor encontram na tela do computador existem enquanto versões criadas especificamente para eles. A versão eletrônica primária, contudo, está na memória do computador. [Ao utilizar um processador de textos,] o leitor e o escritor utilizam uma cópia eletrônica até o momento em que as duas versões convergem, ou seja, quando se dá ao computador o comando de salvar a versão visível, colocando-a na memória. Nesse momento, o texto na tela e o texto na memória coincidem brevemente, mas o leitor está sempre diante de uma imagem virtual do texto disponível na memória, e nunca diante da versão original (Landow 1994, XX).

Embora Landow recorra a exemplos específicos da passagem do real ao virtual, principalmente em termos de processadores de textos e de hipertextos, a virtualização do real ocorre em qualquer circunstância em que se leia ou se escreva um texto no computador: o tátil torna-se digital, o concreto torna-se abstrato e, no caso do livro, o corpo sagrado transforma-se em seu fantasma. O preço a pagar pela utilização da tecnologia eletrônica é a perda desse corpo sagrado tornado virtual. Pagar tal preço não poderia deixar de ser extremamente doloroso para o humanista tradicional, já que o sagrado não tem preço. Régis Debray lembrou recentemente que é este valor sem preço que é definido exemplarmente em As Palavras (1964), de Jean Paul Sartre. O tratamento dado por Sartre ao livro transforma a tal ponto o objeto material em objeto sagrado que, como observa Debray, acreditar no livro e acreditar em Deus tendem a tornar-se sinônimos (Debray 1996, 141). A biblioteca do avô torna-se, para o Sartre menino que ainda não sabe ler, um santuário repleto de silêncio sagrado e povoado por relíquias mudas que conclamam os adultos a manuseá-las com a destreza e o cuidado de um sacerdote (Debray 1996, 140). O sagrado, contudo, é aqui de tal forma expresso materialmente no corpo do livro que o jovem Sartre pode imaginar-se a si mesmo identificado com o corpo impresso e tendo a sua própria carne transformada em livro para seus leitores:

Eu, vinte e cinco volumes, dezoito mil páginas de texto, trezentas gravuras, incluindo um retrato do autor. Meus ossos são feitos de couro e papelão, minha carne, fina como papiro, cheira a cola e cogumelos, sento-me majestoso em quinze quilos de papel, em perfeito conforto. Sinto-me renascer, torno-me finalmente um homem completo que pensa, fala, canta, grita, um homem que se afirma na inércia peremptória da matéria. Alguém me toma em suas mãos, me abre, coloca-me sobre a mesa, me alisa, e por vezes me dobra. Submeto-me até que, de súbito,
luzindo e flamejante, controlo a atenção à distância, meus poderes atravessam espaço e tempo, fustigam os maus, protegem os bons. Ninguém me pode esquecer ou ignorar: Sou um fetiche, ao mesmo tempo terrível e desejado (in Debray, 139).

Por que a transformação de carne em papel? Para Debray, a resposta é simples: nas famílias burguesas — e não apenas nelas — os livros precedem a leitura. Como a moradia precede o morador, a terra o camponês, e o material existe antes do trabalhador, serve-lhe de guia e motivação (Debray 1996, 139-140).

Escrevendo em 1964, antes da popularização do computador pessoal (PC) que ocorre entre 1975 e 1980, Sartre pode ainda dar-se ao luxo de apenas venerar o livro e a biblioteca e apontar para a sua importância em sua formação como intelectual. As coisas já não são tão simples quando, em 1994, já na época em que a máquina de clonagem domina o panorama cultural e ameaça a hegemonia do livro, Birkerts escreve as Elegias para Gutemberg. É que, nesse relativamente breve intervalo de trinta anos que vai de Sartre a Birkerts, a tecnologia eletrônica começa não apenas a tornar possível e iminente a produção de réplicas eletrônicas do livro, mas a competir seriamente com ele pela atenção do leitor. Birkets representa o intelectual sartreano moderno traumatizado pela possibilidade da perda iminente desse objeto simbólico (e desse corpo sagrado) que o moldou à sua imagem e deu-lhe, ao mesmo tempo, a identidade, a profissão e o sentido da vida. Não ter o livro, não poder construir-se à sua imagem é, literalmente, não ter identidade e morrer. Birkerts, paralisado pelo trauma, não consegue imaginar um caminho alternativo. Não é este o caso de Coover, apesar de nele também estar presente o trauma. A certa altura de seu ensaio sobre o fim do livro, o romancista de vanguarda confessa: como estou agora no início de meus setenta anos e me vejo assim ligado, feliz ou infelizmente, à tecnologia obsoleta da imprensa, não é provável que eu comece agora a escrever hipertextos de ficção (Coover 1992, 2). Mas Coover, ao contrário de Birkerts, e apesar do trauma causado pela nova tecnologia, recusa-se a pensar que as novas gerações, moldadas não pelo livro mas pelos novos meios de comunicação, serão transformadas em seres desprovidos de individualidade na colmeia global. É bem possível que as novas subjetividades sejam simplesmente diferentes, e não necessariamente inferiores.


5. CECI NE TUERA CELA

Houve, particularmente na segunda metade da década de noventa, reações mais moderadas e equilibradas do que as de Birkerts e Coover. O que é preciso lembrar, diziam alguns, é que a tecnologia do livro eletrônico é ainda muito recente para previsões apressadas sobre o fim do livro. Em conferência apresentada em 1996 e posteriormente divulgada na Internet, Umberto Eco, por exemplo, recomendava uma certa cautela no tratamento do tema do desaparecimento do texto impresso. É que o livro, pelo menos no momento atual, atende a necessidades culturais, pessoais e sociais que não podem ser satisfeitas com o auxílio do computador. É o caso da necessidade da leitura reflexiva, marcada pela cuidadosa atenção e pela postura meditativa, ao invés da leitura meramente voltada para a necessidade de informação.

Acredito, diz Eco, que os computadores estão difundindo una nova forma de leitura e aprendizado, mas são ainda incapazes de satisfazer todas as necessidades intelectuais que provocam.... Em meus momentos de otimismo, imagino uma nova geração da era do computador que, obrigada a ler telas de monitores, aprende uma certa forma de leitura, mas sente-se por vezes insatisfeita, e volta-se para um outro tipo de leitura, menos tenso e com objetivos diversos (Eco 1996b, 2-3).

Não há dúvida de que certos livros são melhores quando apresentados no formato eletrônico e em hipertexto, como é o caso das enciclopédias, já que a tecnologia eletrônica torna possível armazenar, por exemplo, toda a Enciclopédia Britânica em alguns cd-roms, além de possibilitar o exame de referências cruzadas e a recuperação não linear do conhecimento. Mas nem todos os livros são dicionários e enciclopédias. Eco lembra que é preciso diferenciar os livros de consulta dos livros de leitura. O computador tornará certos livros obsoletos, mas outros livros continuarão a ser necessários. Não se trata, portanto, de afirmar apressadamente que uma tecnologia eliminará a outra, mas antes de pensar a coexistência das duas, com funções diferenciadas e especializadas. É isso, de resto, que ocorreu freqüentemente com tecnologias anteriores: a fotografia alterou o sentido da pintura, mas não a substituiu; a televisão ocupou certos espaços do cinema, mas não todos; o correio eletrônico criou uma nova forma de comunicação, mas as agências de correios e telégrafos continuam operando. Mais recentemente, estendendo o argumento de Eco, Michael Rosenthal observou que o livro é um objeto em constante processo de mutação e adaptação históricas, muitas delas mais significativas do que as que estão, no momento, ocorrendo em função da nova tecnologia eletrônica: a revolução tornada possível pelo surgimento do livro de bolso a partir de 1950 contribuiu mais para a democratização da leitura do que a Internet, e a cultura literária foi provavelmente mais afetada negativamente pela formação dos monopólios de editoras do que pela presença do computador enquanto força dispersiva capaz de comprometer a formação da capacidade crítica. O livro, em outras palavras, não precisa necessariamente desaparecer diante da presença do computador porque é uma tecnologia suficientemente flexível para adaptar-se aos novos tempos. Como explica Rosenthal, é ilusório pensar que uma tecnologia automaticamente elimina a tecnologia anterior, como se o ato de escrever fosse semelhante a um estacionamento com lugar para um carro só. É que, quando uma tecnologia permanece mais adequadamente funcional do que qualquer alternativa, não há razão para abandoná-la, a despeito da sua antigüidade. É esse o motivo por que, quinhentos anos após Gutenberg, continuamos a ser uma cultura de textos manuscritos: usamos o lápis e a caneta para anotações e mensagens telefônicas, para notas ao pé da página, e para dialogar conosco mesmos em nossos diários (Rosenthal 1998, 2-3).

O trauma cultural causado pela possibilidade do fim do livro pode bem ser o resultado de uma percepção equivocada do significado histórico do livro enquanto tecnologia adaptável e resistente a mudanças, inclusive às gigantescas mudanças motivadas pela presença do computador. Se essa hipótese estiver correta, faz menos sentido, hoje, lamentar ou celebrar o fim do livro do que tentar entender a sua transformação em algo diverso. Em certo sentido, o argumento de Coover a respeito da tirania da linha abre caminho para uma reflexão não apenas sobre o fim, vale dizer, a morte do livro (que é o argumento explícito do ensaio), mas sobre a sua transformação em livro sem fim. É nesse contexto que é preciso entender a palavra fim também como objetivo: o fim do livro será talvez a sua transformação no livro sem fim, a ser realizada principalmente na dispersão multilinear do hipertexto. É o que sugere o trabalho recente de David Bolter e Richard Crusin, teóricos que tentaram pensar sistematicamente essa alternativa ao propor um estudo das novas tecnologias eletrônicas não em termos da morte das tecnologias anteriores (ceci tuera cela), mas antes em termos do conceito de remidiação (remediation), vale dizer, das mudanças que ocorrem em um meio ou meios (mídia) diante do aparecimento de uma tecnologia que chega para, ao mesmo tempo, competir com e completar tecnologias anteriores. Quando, por exemplo, o Projeto Gutenberg transfere um livro para o meio eletrônico, o que ocorre não é a morte do livro, mas a sua transformação: o livro material, por assim dizer, perde o seu corpo e se transforma em livro virtual e, simultaneamente, perde algumas de suas características (materialidade, localização enquanto objeto em certos espaços físicos), e ganha outras (virtualidade, facilidade de acesso). Mas trata-se aqui, como explicam Bolter e Crusin, de uma remidiação respeitosa, que hesita em desfigurar o meio anterior em respeito ao significado cultural quase sagrado do texto impresso. O oposto ocorre com filmes infantis, particularmente os filmes recentes de Walt Disney (The Beauty and the Beast, Pocahontas). Como não são objetos culturais a serem levados a sério (como um romance), usam e abusam, sem nenhum constrangimento, da computação gráfica tornada disponível pelo computador, para alterar profundamente as narrativas fílmicas infantis anteriormente produzidas. Muitos jornais da atualidade, também considerados meios menos veneráveis do que o livro, alteram suas páginas de rosto de forma radical, justapondo janelas maiores ou menores, tornando-se, assim, visualmente semelhantes à tela do computador. Nem por isso deixam de ser narrativas infantis ou jornais (Bolter and Crusin 1999, 200, 147-148, 40-41).Também o livro, e apesar de sua venerabilidade enquanto objeto cultural, tornar-se-ia aos poucos remidiado, não apenas de forma respeitosa ou conservadora, como no caso do Projeto Gutemberg, mas também de forma mais agressiva, com o aparecimento do hipertexto. O livro seria assim substituído pelo livro sem fim, sem que isso venha a significar o seu desaparecimento.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


BIRKERTS, Sven (1994). The Gutenberg Elegies. New York: Fawcett.
BOLTER, David (1991). Writing Space. Hillsdale, New Jersey: Lawrence Earlbaum.
BOLTER, David e CRUSIN, Richard (1999). Remediation: Understanding the New Media. Cambridge: The MIT Press.
COOVER, Robert (1992). The End of Books. New York Times Review of Books (June 21, 1992, Sunday).
COOVER, Robert (1993). Hyperfiction; and Hypertext is Only the Beginning, Watch Out!. New York Times Review of Books (August 29, 1993).
DEBRAY, Régis (1996). The Book as Symbolic Object. In The Future of the Book, ed. Geoffrey Numberg. Berkeley: University of California Press.
ECO, Umberto (1996a). Afterword. In The Future of the Book, ed. Geoffrey Numberg. Berkeley: University of California Press.
ECO, Umberto (1996b). From the Internet to Gutemberg. http://www.italinet.com/columbia/internet.html.
KRIEGER, Diane (1998). Bibliophiles of the World, Unite!. Networker: The Technology Newsmagazine of the University of Southern California, vol 8, number4 (March-April 1998). Http://www.usc.edu/isd/ publications/Network7-98/Mar-Apr_98/feature-bibliophiles.html.
LANDOW, George P (1994). Hypertext: The Convergence of Contemporary Critical Theory and Technology. Baltimore: Johns Hopkins University Press.
LANDOW, George P (1996). Twenty Minutes into the Future. In The Future of the Book, ed. Geoffrey Numberg. Berkeley: University of California Press.
PLATÃO. Phaedrus. Perseus Project. Www.perseus.turts.edu. Referências ao texto platônico estão incluídas no texto, de acordo com a numeração convencional (Stephanus).
ROSENTHAL, Michael (1998). A Bookseller Ponders a Digital Future. Http://www.usc.edu/isd/ publications/Network7-98/Mar-Apr_98/feature-book’s_future..html.



NOTAS

[1] A atual economia global de mercado e os inevitáveis desequilíbrios e desigualdades por ela produzidos não deixam de contribuir para a solução mais rápida de tais problemas de recursos econômicos, particularmente através da terceirização. Diane Krieger informa que grandes projetos atualmente existentes e dotados de recursos econômicos significativos utilizam a mão de obra barata do Terceiro Mundo para, por exemplo, trabalhos de digitação e revisão de textos. Já a questão de direitos autorais não é tão simples, particularmente quando se considera que as leis não são necessariamente as mesmas em países diversos. Quando, em 1996, o Projeto Bartleby resolveu publicar a edição de 1901 do clássico Oxford Book of English Poetry ( já que, no contexto legal norte-americano, o livro podia já ser visto como pertencente ao domínio público), o responsável pelo projeto, Steven H. van Leeuwen, foi notificado por representantes da Oxford University Press a respeito da ilegalidade do ato, em termos do sistema legal britânico. O texto eletrônico foi imediatamente retirado de circulação e, aparentemente em represália ao problema legal criado, a Universidade de Columbia, que anteriormente contribuía com recursos econômicos para o projeto, cancelou o patrocínio. (Krieger 1998, 7-9).

[2] Ver, por exemplo, os ensaios de Geoffrey Numberg, Paul Duguid e Umberto Eco em The Future of the Book, ed. Geoffrey Numberg, Berkeley, University of Califórnia Press, 1996; e a "Introduction", em Writing Space, de Jay David Bolter (Hillsdale, NJ, LEA, 1991).
[3] Alguns exemplos de críticas do livro, citados no próprio volume, apontam claramente para a importância do impulso emotivo do texto: O livro [de Birkerts] apela apaixonadamente para a necessidade que temos, hoje, de questionar a direção em que estamos indo e a necessidade, ou mesmo a utilidade, da viagem. (The Washington Times); O texto, que revela tanto inteligência como emoção,... convida a um tipo de interesse atento, impossível de ser conseguido em mil mensagens eletrônicas (San Francisco Chronicle); Embora muitos escritores tenham anteriormente trilhado essas nostálgicas veredas, poucos conseguiram capturar tão bem a emoção e os valores da leitura profunda(The New York Newsday); O elegante estilo [ de Birkerts] constitui um testemunho da habilidade que tem as palavras bem escolhidas de provocar sentimentos e de persuadir(The Seattle Times); Birkerts fundamenta suas teorias em fragmentos de lembranças autobiográficas, que tornam seus argumentos personalizados e passionais (Philadelphia City Paper) (Birkerts 1994. Citações extraídas da contracapa do livro).


Sérgio Luiz Prado Bellei é professor titular de Teoria Literária e Literatura Anglo-Americana no programa de Mestrado e Doutoramento em Literaturas de Língua Inglesa na Universidade Federal de Santa Catarina. É autor de O Cristal em Chamas (1986), Literatura e Nacionalidade (1992) e Henry James: Theory of the Novel (1998). Publicou recentemente capítulo de livro sobre a antropofagia brasileira ("Brazilian Anthropophagy Revisited") em livro editado pela Cambridge University Press (Cannibalism and the Colonial World) e ensaio sobre Iracema ("A Virgem dos Lábios Sem Mel") na Luso-Brasilian Review.


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