A FUNÇÃO AUTOPOIÉTICA
DA MEMÓRIA EM "A MENINA SEM ESTRELA"
Carla Nascimento
Doutoranda da PUC/RJ
RESUMO
Este ensaio sobre "A menina sem estrela", as memórias de Nelson
Rodrigues, procura discutir o papel da memória como agente
produtora do passado, buscando ainda captar no texto memorialista
do escritor, sempre que possível, "biografemas" capazes de
lançar alguma luz sobre o processo narrativo da vida e da dramaturgia
rodriguianas.
ABSTRACT
This essay on "A menina sem estrela", Nelson Rodrigues' memories,
discusses the role of memory as an active producer of the past and
also tries to locate in the memorial text those Barthesian details
of biography which may be capable of enlightening some points of the
narrative processes of Rodriguian life and drama.
O impulso desencadeador da escrita deste ensaio foi, de certa maneira,
o deslumbramento com a descoberta de um texto rodriguiano que, passando
ao largo dos estereótipos mais cultivados em torno da figura de
Nelson Rodrigues, constrói-se em camadas líricas de lembranças.
Lirismo que, a todo momento, é coado pelo filtro corrosivo da melancolia
e da lucidez de um escritor que soube aproveitar, de forma tão
radical quanto frutífera, a matéria prima de sua memória
na construção de uma dramaturgia até hoje insuperável
dentro do contexto teatral brasileiro.
Nasci a 23 de agosto de 1912, no Recife, Pernambuco.
Vejam vocês: eu nascia na rua Dr. João Ramos (Capunga)
e, ao mesmo tempo, Mata-Hari ateava paixões e suicídios
nas esquinas e botecos de Paris.
Com essas palavras começam as Memórias que Nelson
Rodrigues foi convidado a escrever, diariamente, para o Correio da
Manhã, a partir de fevereiro de 1967. A primeira frase pode
até acenar para o leitor menos avisado com a promessa de uma narrativa
rigidamente cronológica: "Nasci a 23 de agosto de 1912, no Recife,
Pernambuco." Pura blague rodriguiana. Nada menos cronológico
que essas Memórias. Logo nas orações seguintes,
através do cruzamento das referências ao nascimento do autor,
no Recife, e aos feitos da espiã Mata-Hari, em Paris, começa
a se delinear para o leitor o verdadeiro rosto dessa narrativa, ou, melhor
dizendo, a simultaneidade de rostos que a compõe, como nos múltiplos
desenhos de um mosaico:
Vejam vocês: eu nascia na rua Dr. João
ramos (Capunga) e, ao mesmo tempo, Mata-Hari ateava paixões
e suicídios nas esquinas e botecos de Paris. (RODRIGUES,
1993, p. 11)
No exato instante em que alguém resolve se sentar
para começar a escrever o que quer que seja - um romance, suas
memórias, ou mesmo um texto crítico, como é o caso
deste - uma pergunta crucial paira sobre sua cabeça: que caminho
tomar para tentar driblar o turbilhão de idéias que o invade
no momento, tornando possível a escolha das palavras certas para
o bom começo de uma história? E, no entanto, mesmo que a
devoradora vacuidade da página em branco o paralise por alguns
minutos, pouco a pouco, as palavras começam a se juntar, a princípio,
timidamente, e logo (se as idéias forem frutíferas), desaguam
numa correnteza discursiva que, em alguns momentos, de tão violenta,
arrasta aquele que escreve, para, em seguida, seguir suavíssima
o seu curso, e assim sucessivamente.
O que dizer da escrita das memórias? A primeira sensação
que se tem ao tentar escrevê-las é a da impossibilidade,
absoluta impossibilidade de se colocar em palavras as experiências
vividas, sempre tão maiores que nós. Nascem daí talvez
os esquemas tradicionais de narrativas memorialistas, que, no anseio de
colocar alguma ordem na massa insuportavelmente caótica das lembranças,
oferecem modelos seguros e reconfortantes de discurso, temporal e espacialmente
lineares. O tempo, como nos diz Gebhard Rusch, - como um adesivo
- liga as unidades dos acontecimentos vivenciados para formar um acontecimento
uniforme da experiência[1].
A opção de Nelson, contudo, é outra:
...minhas lembranças não terão
nenhuma ordem cronológica. Hoje posso falar do kaiser,
amanhã do Otto Lara Resende, depois de amanhã do czar,
domingo do Roberto Campos. E por que não do Schmidt? Como não
falar de Augusto Frederico Schmidt? Seu nome ainda tem a atualidade,
a tensão, a magia da presença física. Todavia,
deixemos o Schmidt para depois. O que eu quero dizer é que
estas são memórias do passado, do presente, do futuro
e de várias alucinações. (RODRIGUES, 1993,
p. 11)
A justaposição de passado, presente e
futuro de que fala o nosso memorialista é, sobretudo, o que me
chama a atenção aqui, pois semelhante fenômeno tem
sido apontado por pesquisadores dos processos da cognição
humana como uma das mais importantes características da memória.
Melhor dizendo, os tempos que denominamos de passado, presente e futuro
nada mais seriam que conceitos articulados pela inteligência humana
para ordenar percepções que, na realidade, só se
dariam em uma única instância: o presente. Por uma circunstancialidade
que tem seus motivos neurofisiológicos, somos incapazes de assimilar
sensorialmente experiências de passado ou futuro, como nos aponta,
mais uma vez, Rusch:
O próprio cérebro humano, então,
não mais aparecerá como um depósito para elementos
atualizáveis, mas como uma faculdade ou poder de sintetizar
memórias como um tipo específico de fenômenos
da consciência no processo da percepção que, em
suas formas respectivas, em sua realização emotiva,
conotativa, etc. não existe em nenhum outro lugar a não
ser no estado atual de consciência, e em nenhum outro tempo
a não ser na hora de sua realização no sistema
nervoso. (RUSCH, 1996, p. 153/4, apud OLINTO)
É, portanto, no eterno presente da narrativa que
Nelson irá situar todas as suas memórias, unindo, alucinatoriamente,
tempo de enunciação e tempo de enunciado[2]. Mas, poderíamos nos perguntar, que lembranças
não seriam alucinações? O próprio escritor
dá-nos um bom exemplo dessa ambigüidade dos sentidos, ao narrar
a confusão que o faz ouvir, de um camelô no centro da cidade,
a palavra "prostituição" ao invés de "constituição".
Ato falho que lhe vale uma breve e densa reflexão sobre a atual
situação política do país. E são as
mesmas enganosas percepções que o levam, através
do olfato e do paladar (nossos sentidos mais primitivos), de volta a sua
mais "profunda infância", como ele gosta de dizer, na lindíssima
descrição que faz de seu mundo ainda desprovido de linguagem:
Toda a minha primeira infância tem gosto de
caju e de pitanga. (...) ainda hoje, quando provo uma pitanga ou um
caju contemporâneo, sou raptado por um desses movimentos proustianos,
por um desses processos regressivos e fatais.
E volto a 1913, ao mesmo Recife e ao mesmo Pernambuco. Mas não
era mais Capunga e sim Olinda. Alguém me levou à praia
e não sei se mordi primeiro uma pitanga ou primeiro um caju.
Só sei que a pitanga ardida ou o caju amargoso me deu a minha
primeira relação com o universo. Ali, eu começava
a existir. Ainda não vira um rosto, um olho, uma flor. Nada
sabia dos outros, nem de mim mesmo. E, súbito, as coisas nasciam,
e eu descobria uma pitangueira ou um cajueiro.
(...) Minha família morava diante do mar. Mas o mar antes
de ser paisagem e som, antes de ser concha, antes de ser espuma -
o mar foi cheiro.
Em 1913, mesmo meu pai e minha mãe pareciam não ter
nada a ver com a vida real. Vagavam, diáfanos, por entre as
mesas e cadeiras. Depois, eu os vejo parados, com uma pose meio espectral
de retrato antigo. Mas nem meu pai, nem minha mãe falavam.
Eu não os ouvia. O que me espanta é que essa primeira
infância não tem palavras. Não me lembro de uma
única voz. Não guardei um bom-dia, um gemido, um grito.
Não há um canto de galo no meu primeiro e segundo ano
de vida. O próprio mar era silêncio. (RODRIGUES,
1993, p. 15-16)
Como ter memória do silêncio? O passado,
para ser reconstruído, precisa falar. Como fazer falar um tempo
mudo, habitado tão somente por cheiros, gostos e imagens nuas?
Não é à toa que seus pais lhe parecem fantasmas ("Vagavam,
diáfanos, por entre as mesas e cadeiras"), volatizados na infinita
possibilidade simbólica de um mundo pré-articulado.
Se a memória se constrói sempre no presente, como acredita
Rusch, ela se refaz a cada vez que pensamos recordar o passado, e nisso
reside um dos principais atributos da escrita memorialista: a sua ficcionalidade.
Antes de continuarmos, porém, é preciso fazermos uma distinção.
Ao utilizarmos aqui a palavra passado, temos que ter em mente os
dois conceitos por ela abarcados. O primeiro refere-se simplesmente ao
conjunto dos fatos ocorridos num determinado período de tempo.
O segundo, à categoria discursiva que utilizamos para designá-lo.
Só assim, podemos compreender a polêmica afirmação
de Collingwood de que "o passado simplesmente não existe"[3](Apud RUSCH, 1996, 140). Mas mesmo que adotemos os pontos-de-vista
do construtivismo radical, não podemos deixar de falar num passado
factual, ainda que este, para a experiência humana, possa vir a
ter uma importância muito relativa. Do mesmo modo que, "para
sua construção interpretativa da realidade como história,
a ciência da história pressupõe a constituição
do mundo concreto de sentido dos seres humanos como sua base e matéria,
mas a história não é em nada idêntica àquele
mundo" (RUSCH, 1996, p. 142), poderíamos afirmar que a história
que construímos sobre a nossa vida, baseada nos resquícios
sensoriais do nosso passado, nada tem a ver com o passado em si. Embora,
muitas vezes, a ilusão das lembranças seja tão forte
que passo a acreditar, como Nelson Rodrigues, em alguns momentos, que
"a memória deixa de ser a intermediária entre mim e o
fato, entre mim e as pessoas." (RODRIGUES, 1993, p. 85) Mas note-se
que não há nessa atribuição de ficcionalidade
à memória qualquer valoração de caráter
negativo, muito pelo contrário. Ao reconhecermos a sua natureza
ficcional, estamos lhe atribuindo aqui um papel muito superior ao que
lhe tem sido dado pelo senso comum, o de mera arquivista dos fatos. Sua
importância será muito mais relevante na medida em que reconheçamos
sua enorme potência autopoiética[4],
ou seja, sua capacidade de construir, e não apenas de reproduzir,
a realidade passada.
Se prestarmos um pouco de atenção àqueles momentos
em que nos deixamos levar por nossas próprias lembranças,
logo percebemos que a nossa memória nos guia, quase sempre, a princípio,
para algum ponto aleatório da nossa experiência vivida, para
daí a pouco traçar uma linha que nos conduz, num movimento
associativo, para uma outra lembrança contígua e, assim
por diante. Até que tecemos, involuntariamente, uma teia circular
de recordações, na qual, se não podemos encontrar
uma lógica linear, encontramos, certamente, uma unidade fecunda
que tem o efeito de iluminar subitamente o nosso presente, dotando-lhe
de causas e sentidos anteriormente insuspeitados.
Quando a lembrança é obsessiva, como é o caso da
imagem persecutória do assassinato do irmão Roberto para
Nelson, a impressão de unidade parece acentuar-se, tornando-se,
por vezes, francamente paranóica, como sugere o autor nesta metáfora
perfeita do papel da morte em suas memórias e do próprio
exercício da construção memorialista: "De texto
em texto, a chama de um círio passa a outro círio, numa
obsessão feérica que para sempre me persegue." (RODRIGUES,
1993, p. 97) Paranóia que, no entanto, não o paralisa, antes
o impele à criação de mecanismos compensatórios
de vida. Três anos após a morte de Roberto, Nelson descobre
o teatro. A partir daí, sua compulsão narrativa, até
então um tanto constrangida pelas laudas do jornal, vê-se
finalmente livre para seguir seu curso preferencial. Mas Roberto e todos
os seus mortos iriam acompanhá-lo para o resto da vida: é
o preço que paga por ter sobrevivido, mas é também
o grão de trigo que irá se disseminar por toda a sua obra.
Narrar a própria vida não seria também uma maneira
de desafiar a morte? Auto-bio-grafia - a origem etimológica
da palavra não mente: escrever a própria vida. Para quê?
Para que esta não nos escape? Ou para termos mais presentes para
nós mesmos a sensação de que estamos vivos? E Nelson,
apesar de falar tantas vezes na morte em suas memórias, estava
vivo e ativo quando escreveu isto:
Sempre achei e, o que é pior, ainda acho
que cada um de nós tem, na vida, três ou quatro seres
decisivos. Se um deles morre, não devemos sobreviver, eis a
verdade, não devemos sobreviver. A vida continua, mentira.
Morremos com o ser amado. E se o outro ser amado morre, novamente
morremos. Não há pior degradação do que
viver pelo hábito de viver, pelo vício de viver, pelo
desespero de viver. (RODRIGUES, 1996, p. 271, grifos meus)
A memória tem sido, através dos tempos,
uma das maiores causas da angústia humana, mas também um
dos maiores trunfos da nossa espécie: através dela somos
capazes de dar sentido e coerência à nossa existência,
e de povoar de objetos amados nossa solidão inevitável.
Poderoso escudo contra o nada, que, assim como a linguagem, nos traz a
promessa da plenitude de uma agoridade ilimitada. Escrever memórias
é, nesse sentido, preencher de palavras o vazio deixado por um
passado inacessível, dotando nossas vivências daquele "mínimo
de identidade" de que nos fala Nelson Rodrigues. Prerrogativa não
só das narrativas de cunho pessoal, como aponta Rusch, mas também
das histórias da coletividade:
...a historiografia moderna - assim como outrora
a narrativa de mitos - está funcionalmente unida à necessidade
atual de construções historiográficas, por exemplo,
a partir das condições da construção de
identidade pessoal e social, das exigências de legitimar e sustentar
nossas ações e do esforço para atingir visões
de mundo e de si próprio coerentes. E é dessa necessidade
que a historiografia tira a sua relevância e legitimidade.
(RUSCH, 1996, p. 159)
A profunda relação entre a experiência
da morte e a fundação da identidade[5]
aparece nas memórias de Nelson como deflagradora do processo de
reestruturação constante a que está submetida a narrativa
autobiográfica, como podemos perceber no trecho abaixo, em que
o autor comenta as impressões da morte trágica de seu irmão
mais novo, Paulo Rodrigues, no desabamento do prédio em que morava,
provocado por uma tempestade de verão no Rio:
Minha vida está agora dividida em dois tempos:
- "antes das chuvas" e "depois das chuvas". É um corte tão
fundo, e tão violento, e tão sem piedade. Quando digo
"antes das chuvas", estou falando de um outro mundo, de outro idioma,
de outra encarnação e, mesmo de outras chuvas. Tanta
coisa morreu com o desabamento. Inclusive eu próprio. Não
pensem que não morri também. Como poderia eu brotar,
intacto, da catástrofe? (RODRIGUES, 1996, p. 36/7)
Assim como Nelson, nenhum de nós "brota intacto"
da experiência autobiográfica: somos outros. Outras palavras,
outro(s) eu(s), viveremos tantas vidas quantas formos capazes de contar.
A partir do momento em que decidimos nos narrar, instaura-se em nós
uma nova dimensão existencial, a da alteridade.
A relação entre a escrita e a diferença não
é nova, nós o sabemos desde Derrida. A escritura, que abre,
num corte violento, um enorme abismo entre aquele que fala e aquele que
escreve, funda, para sempre, a nossa esquizofrenia cotidiana. Escrita/veneno/remédio,
irremediavelmente viciante, que cura e mata aos poucos - nossa única
chance de escapar da ira de Theuth, deus possessivo e pai do Lógos.
E que nos faz persistir no esforço constante da reinvenção,
deixando para trás rastros de morte, para que se possam criar novos
caminhos de linguagem que percorram, rizomorficamente, a a superfície
da língua pátria: uma "literatura menor".[6]Atitude suicida de quem prefere o fracasso ao sucesso,
ao perceber que está sendo devorado pelos elogios de seus admiradores:
Sim, a partir de Álbum de família,
a minha vida teatral tem sido uma batalha entre um autor e seus admiradores.
É uma fúria recíproca e total. Os admiradores
querem me destruir, com a sua incompreensão apoteótica
e homicida; e eu, reagindo como um possesso.
(...) Parece que minha resistência tem sido bem-sucedida.
Olho o meu chão literário; está juncado de admirações
abatidas. (RODRIGUES, 1993, p. 216)
E, de repente, diz Nelson, os cegos aparecem.
Os cegos tocando violino, o passarinho que tem os olhos perfurados pelo
sadismo de um menino, e, finalmente, Daniela, confirmação
de todos os seus temores. A cegueira, como no romance de Saramago, poderia
acontecer-lhe a qualquer momento, lançando-o, para sempre, num
mundo de trevas densas e apalpáveis, ou de uma luminosidade leitosa
como a que atormenta as personagens de Saramago.
E, de repente, uma certeza se cravou em mim - eu
ia ficar cego. Deus queria que eu ficasse cego. Era vontade de Deus.
(...) E se disser que, já adulto, homem feito, a obsessão
continuava intacta? (...) Aos trinta anos, 35, quarenta, eu sonhava
com os cegos; e os via escorrendo do alto da treva. (RODRIGUES,
1993, p. 46)
Depois da morte e do sexo, essa me parece a mais importante
obsessão de Nelson. Como se, dentro da clareza frágil de
suas memórias, espreitassem pontos cegos que ameaçassem
engolfar toda a paisagem, e a ilusão da visão se encontrasse,
subitamente, perdida. Chegamos a um ponto importante dessa discussão:
o olhar. O olhar que constrói o mundo e que é, aparentemente,
o mais confiável dos nossos sentidos. "O que os olhos não
vêem, o coração não sente", diz-nos a sabedoria
popular. "O olhar, o mais espiritual dos nossos sentidos", diz-nos
Santo Agostinho. "Se os teus olhos forem bons, todo o teu corpo terá
luz", assegura-nos a Bíblia. A visão nos dá sempre
a lisonjeira sensação de onisciência. E não
é à toa que, na mitologia cristã, Deus - onipresente,
onipotente e onisciente - nos vigia sempre com olhos enormes e perscrutantes.
Faróis de nossa tradição iluminista, os olhos da
razão, construtores da ciência e da verdade, tornam-se trêmulos
e bruxuleantes como a chama dos círios quanto têm diante
de si a tarefa de iluminar o passado. É esse olhar incerto e inseguro,
que pode se apagar a qualquer momento, que irá projetar para o
autor as imagens de sua vida. E, por toda a sua vida, assim como em todo
o seu teatro, "há uma palpitação de sombras e
de luzes" (RODRIGUES, 1993, p. 97), como nos quadros de Velasquez
(ele é sempre, criança, um anão de Velasquez). Mas
como seria cabível almejar um retrato realista de seu passado,
se ele mesmo se pergunta, afirmando: "o que é a memória
senão um pátio de milagres?" (RODRIGUES, 1993, p. 49).
Percorre essas memórias um sentimento lancinante de fracasso ante
a nossa percepção objetiva do passado, o que potencializa,
por outro lado, da parca visibilidade que lhe serve de base, o florescimento
de outros modos de sentir, mais próximos da pele.
Produzir ao invés de reproduzir, apresentar ao invés de
representar, construir ao invés de reconstruir, variações
sobre um mesmo tema e conceito: autopoiesis. Como nos explica Rusch:
A teoria dos sistemas autopoiéticos é
uma teoria da vida, uma teoria dos princípios do funcionamento
dos organismos vivos. Como indicado pela noção de autopoiese
(do grego: autos - próprio, poien - fazer), Maturana
explica os organismos vivos como sistemas que se mantêm vivos
por estarem, digamos, em um processo de permanente autoprodução
e permanente reprodução. (RUSCH, 1996, p. 144)
Em "processo de permanente autoprodução
e permanente reprodução" estamos todos os seres vivos,
contando unicamente com nossa capacidade poiética para criar o
mundo em que vivemos, seja ele passado, presente ou futuro. Como nos diz
ainda Rusch,
Se nos dermos conta de que não vivenciamos
o mundo e que vivenciamos como o vivenciamos porque o próprio
mundo é "em si" como o vivenciamos; e se nos dermos conta de
que nossa vivência das "coisas do mundo" é algo como
um truque da organização auto-referencial de nossos
sistemas nervosos, por assim dizer, uma "modalidade de funcionamento"
dos sistemas cognitivos humanos no processo de sua autopoiesis,
então, torna-se claro que, na realidade, não vivemos
no mundo que percebemos e com cujos elementos "lidamos", mas
que tentamos melhorar as modalidades de nossas autopoiesis
e que mantemos nossa existência com e por meio
da geração de um mundo por nossas cognições.
(RUSCH, 1996, p. 147)
Nesse sentido, somos todos "a menina sem estrela",
tendo por guia apenas a luz solitária de nossas memórias,
tropeçando nos fantasmas que nos cercam, apalpando, cheirando e
provando o mundo: construindo-o à nossa própria imagem e
semelhança.
BIBLIOGRAFIA:
CASTRO, Ruy. O anjo pornográfico. São
Paulo: Companhia das Letras, 1992.
RODRIGUES, Nelson. A menina sem estrela. São Paulo: Companhia
das Letras, 1993.
RUSCH, Gebhard. Teoria da história, historiografia e diacronologia.
In: OLINTO, Heidrun Krieger. Histórias de Literatura. São
Paulo: Editora Ática, 1996, p. 133-164.
Notas:
[1] Seria interessante acompanharmos o
começo desse raciocínio: "E toda nossa chamada medida
do tempo consiste, na verdade, em nada mais do que na determinação
da duração de um evento em termos da duração
de um outro evento (preferivelmente uniforme). É, portanto, esse
tipo de relação que marca o tempo em sentido estrito. E,
desse modo, o tempo homogeneíza os eventos e inter-relações
de nossa experiência - de outro modo disparatados - em variantes
de um tema comum: a duração." (RUSCH, 1996, p. 150,
apud OLINTO)
[2] Procedimento que se repete por toda
a sua obra dramática, do qual temos, como maior exemplo, Vestido
de noiva.
[3] "os fatos passados que os historiadores
trazem à luz são apenas revelados por seus pensamentos,
na sua tentativa de compreender o mundo apresentado aos seus sentidos."(COLLINGWOOD,
apud RUSCH, 1996, p. 140)
[4] Desenvolveremos, mais tarde, esse tema.
[5] Recordo-me aqui de dois exemplos: o
recalque da experiência do parto operado pelo aparelho psíquico,
segundo Freud - uma primeira morte sofrida por todo ser humano, em seus
primeiros dias de vida fora do útero, e a drástica redução
da diversidade humana indispensável à construção
da "comunidade imaginada", mito que dá origem ao moderno
conceito de nação, na visão de Benedict Anderson.
Mas poderíamos mencionar inúmeros outros, contidos na literatura.
Para ficarmos com apenas um: Iracema, de José de Alencar.
[6] Reflexão que se deve, obviamente,
a Deleuze, principalmente o de Kafka - por uma literatura menor.
Carla
Nascimento é doutoranda pela PUC/RJ, com pesquisa voltada
para o campo da memória, da autobiografia e da biografia. Mestre
em Literatura Brasileira pela PUC/RJ, com orientação do
professor Júlio Diniz, 1999. Graduação em Letras
pela UFF, 1996.
e-mail: carlan@microlink.com.br
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