GROTESCO
E PARÓDIA EM VIVA O POVO BRASILEIRO
RESUMO
Estudo das relações entre grotesco e paródia
no romance Viva o povo brasileiro, baseado nas concepções
de Mikhail Bakhtin. Após uma caracterização geral
do estilo grotesco, são distinguidos o grotesco satírico,
de função puramente denegridora, do grotesco ambivalente,
tal como descrito por Bakhtin. Ambos os tipos grotesco são
analisados como reforços da estilização paródica
das falas dos personagens. O estudo conclui associando o uso do grotesco
e da paródia com o conceito bakhtiniano de carnavalização.
ABSTRACT
This paper approaches the relationship between the grotesque and parody
in the novel Viva o povo brasileiro, by João Ubaldo
Ribeiro, according to the Mikhail Bakhtin's conceptions. After a general
characterization of the grotesque, the paper distinguishes the satyric
grotesque from the ambivalent one, as described by Bakhtin. Both kinds
of grotesque are analysed elements which reinforce the parodic stlylization
of the charaters' speeches. The paper concludes with an association
of the grotesque and parody with Bakhtin's concept of carnivalization.
Em outra ocasião, ressaltamos
o caráter polifônico do romance Viva o povo brasileiro,
de João Ubaldo Ribeiro (NUTO: 2000). Baseados na concepção
bakhtiniana de que o personagem do romance é um ideólogo;
sua fala, um ideologema (BAKHTIN: 1990, 135), analisamos as ideologias
do caráter nacional defendidas por cada grupo de personagens
de Viva o povo brasileiro. Demonstramos, assim, que o romance,
por ser polifônico, ao contrário dos diversos ensaios sobre
a brasilidade, evita uma visão absoluta do caráter nacional,
confrontando diferentes visões subordinadas aos interesses de
grupos diversos.
Contudo, a verificação de que existem, no romance, diversas
vozes estilístico-ideológicas antagônicas ainda
não é suficiente para demonstrar um importante aspecto
estilístico: a manipulação dessas vozes pelo autor.
O conceito bakhtiniano de plurilinguismo não reduz o romance
a uma simples colagem de discursos variados. Tampouco se comporta o
romance como uma reportagem ou um trabalho científico, em que
há nítida separação entre os discursos citados
e aquele que os emoldura. Mesmo porque, em geral, no romance, os diversos
discursos não são citados, mas imitados, estilizados.
Na estilização, o discurso alheio não é
simplesmente copiado, mas reinventado e, como diz Bakhtin, pode refratar
as intenções (BAKHTIN: 1990, 119) do narrador. Essa
refração parece tanto mais acentuada na estilização
paródica, em que existe dissonância entre o tipo de discurso
estilizado e sua elaboração pelo narrador. De fato, a
paródia procura mostrar, pela ridicularização ou
por meios mais sutis, que o narrador critica ou, pelo menos, ironiza
o estilo e a visão de mundo do discurso parodiado.
Naquele breve estudo das ideologias de brasilidade em Viva o povo
brasileiro, não tivemos espaço para explorar um aspecto
importante da obra de João Ubaldo Ribeiro: seu uso habilíssimo
da paródia e do grotesco. Paródia e grotesco estão
intimamente associados, pois ambos participam do jogo de rebaixamentos
e elevações que perpassa todo o romance. Rebaixamento
é um conceito elaborado por Mikhail Bakhtin que significa a transferência
ao plano material e corporal (...) de tudo que é elevado, espiritual
ideal e abstrato (BAKHTIN: 1993, 17). Portanto, o rebaixamento é
um modo irreverente de tratar tudo que a cultura oficial eleva ou mesmo
sacraliza. Por outro lado, o conceito de rebaixamento sugere o seu oposto,
a elevação, operação estilístico-ideológica
de enobrecimento de temas e personagens, dando-lhes um caráter
de superioridade em que são minimizados ou mesmo suprimidos os
aspectos mais vulgares, bem como o efeito cômico.
O presente estudo não pretende esgotar toda a elaboração
paródica presente em praticamente todo o romance Viva o povo
brasileiro, mas analisar a maneira como o grotesco participa no
rebaixamento de personagens, contribuindo assim para a caracterização
paródica do seu discurso. Pretende também distinguir dois
tipos fundamentais de utilização do estilo grotesco no
romance: o grotesco puramente satírico, com função
exclusivamente denegridora, do grotesco com sentido positivo, que, segundo
Bakhtin, é ambivalente, pois comporta também um sentido
positivo, expressando a idéia de comunhão e regeneração.
O estilo grotesco
Em que consiste a representação
grotesca? Segundo Bakhtin, o termo "grotesco" deriva do substantivo
italiano grotta que significa gruta. Informa-nos o autor que
o termo refere-se a um certo tipo de pintura decorativa, encontrada,
em fins do século XV, em escavações realizadas
em Roma. Afirma Bakhtin que essa descoberta surpreendeu os contemporâneos
pelo jogo insólito, fantástico e livre das formas vegetais,
animais e humanas que se confundiam e transformavam entre si (BAKHTIN:
1993, 28). O quanto este tipo de imagem distancia-se dos padrões
clássicos pode ser avaliado pelas palavras iniciais da Arte
Poética, de Horácio, um dos teóricos mais influentes
da poética clássica:
"Suponhamos que um pintor entendesse
de ligar a uma cabeça humana um pescoço de cavalo, ajuntar
membros de toda procedência e cobri-los de penas variegadas,
de sorte que a figura, de mulher formosa em cima, acabasse num hediondo
peixe preto; entrados para ver o quadro, meus amigos, vocês
conteriam o riso?" (HORÁCIO: 1995, 55)
Com o tempo, o sentido de grotesco alarga-se,
passando a referir-se não somente àquele tipo de pintura,
mas a um estilo de representação que se caracteriza pelo
exagero, o hiperbolismo, a profusão, o excesso (BAKHTIN:
1993, 265). Como resultado do procedimento grotesco de mostrar a mistura
de corpos, encontramos também, em geral com fins satíricos,
a fusão do corpo humano com o corpo animal, como nas pinturas
de Bosch e no conjunto de desenhos intitulado "Caprichos", de Goya.
Outra característica do grotesco é a ênfase, pela
hipérbole, naquilo que Bakhtin denomina de baixo corporal:
orifícios, protuberâncias, ramificações
e excrescências, tais como a boca aberta, os órgãos
genitais, seios, falo, barriga e nariz (BAKHTIN: 1993, p. 23).
O grotesco satírico em Perilo
Ambrósio
Viva o povo brasileiro inicia-se
com uma descrição pitoresca da morte do alferes Brandão
Galvão. Somos informados de que o alferes vai morrer na flor
da mocidade, sem mesmo ainda conhecer mulher e sem ter feito qualquer
coisa de memorável (RIBEIRO, 1984, 9). Também tomamos
conhecimento do quadro "O Alferes Brandão Galvão Perora
às Gaivotas", em que o personagem é representado franciscanamente
como um mártir. Ao longo do capítulo, descobrimos que
Brandão Galvão é um pescador adolescente, apelidado
de alferes pelos companheiros de reuniões políticas, cujo
tema mal conseguia compreender. O episódio de Brandão
Galvão inicia um procedimento que vai perpassar todo o romance:
o contraste entre os fatos informados e a versão elevada (muitas
vezes completamente mentirosa) daqueles fatos. Esse tipo de ironia,
juntamente com alguns traços estilísticos como o exagero
do tom e vocabulário altissonantes, vão revelar o caráter
paródico que o narrador empresta à fala dos seus personagens,
seja pelo discurso direto, seja pelo discurso indireto livre.
É esse espírito irônico que encontramos nos episódios
relacionados com um dos principais personagens da primeira fase de Viva
o povo brasileiro: Perilo Ambrósio, o Barão de Pirapuama.
Sabemos que o perfil heróico de Perilo Ambrósio (bem como
de outros personagens da classe dominante brasileira representados no
romance) é uma farsa completa, pois, para simular sua participação
nos combates pela independência do Brasil, Perilo Ambrósio
mata um escravo, com cujo sangue se lambuza e, para garantir que não
seria desmascarado, corta a língua de outro escravo. Fingindo
aliar-se aos brasileiros por motivos patrióticos, aproveitando-se
da hostilidade entre brasileiros e portugueses, Perilo Ambrósio
realiza sua ambição e vingança: tomar a patrimônio
de sua família, que era portuguesa. Contudo, o que destaca Perilo
Ambrósio de outros personagens do romance que também participam
de falcatruas é a sua representação grotesca: seu
corpo extremamente gordo, sua gula e sua voracidade sexual. Em contraste
com a versão, cultivada por Perilo Ambrósio e partilhada
por grande parte da comunidade, sobre a sua grandeza de caráter,
tomamos conhecimento, logo no início do motivo baixo seu ódio
à família: Perilo Ambrósio fora duramente castigado
pelo pai por ferir a irmã com um chuço de assar, tentando
tomar-lhe um pedaço de carne. Como conta o narrador, em discurso
indireto livre:
... jamais, agora que fora ingratamente
magoado, existirá em toda a Terra carne suficiente para matar
a fome por aquele pedaço usurpado e arrancado à força
de seus dentes desesperados (RIBEIRO: 1984, 21).
A representação física
e psicológica da Perilo Ambrósio apresenta uma das mais
importantes características do grotesco: a hipérbole das
partes do corpo e dos atos que se relacionam com o baixo corporal. Entretanto,
ao contrário, do grotesco em Rabelais, estudado por Bakhtin,
o baixo corporal em Perilo Ambrósio não comporta um valor
positivo. Em Perilo Ambrósio, o grotesco limita-se a um valor
plenamente denegridor, realizando uma de suas mais antigas funções:
a satirização.
Grotesco e sátira sempre estiveram intimamente relacionados.
Assim como o estilo grotesco, a sátira não era reconhecida
pela poética clássica, embora fosse cultivada por Horácio,
um dos teóricos mais influentes daquela poética. A etimologia
latina da palavra, em que "satura" significa "mistura" já
indica um dos motivos para marginalização da sátira
pela poética clássica: o total desrespeito à unidade
de tom. De fato, uma das características da sátira antiga
é a apropriação paródica dos mais diversos
gêneros literários da Antiguidade, incluindo uma heterogeneidade
estilística em que prosa e verso encontravam misturados no mesmo
texto. Mas outra etimologia, ligada à língua grega, associa
a sátira à figura mítica do sátiro, lembrando
uma de suas características mais importantes, já encontrada
na comédia antiga e transmitida ao romance: a irreverência.
O que caracteriza a irreverência satírica é o seu
caráter denunciador e moralizador. De fato, o objetivo da sátira
é atacar os males da sociedade, o que deu origem à expressão
latina: castigat ridendo moris, que se pode traduzir livremente
como "castigar os costumes pelo riso". Por seu caráter denunciador,
a sátira é essencialmente paródica, pois constrói-se
através do rebaixamento de personalidades (reais ou fictícias),
instituições e temas que, segundo as convenções
clássicas, deveriam ser tratados em estilo elevado. Ou seja:
a sátira ri de assuntos e pessoas "sérias", para denunciar
o que há de podre por trás da fachada nobre impingida
à sociedade. Portanto o riso satírico é diametralmente
oposto à idealização épica.
Sendo o riso satírico em geral extremamente sarcástico,
o grotesco é um dos procedimentos favoritos do satirista, que
costuma mostrar a deformação grotesca do corpo do personagem
satirizado como uma alegoria dos seus defeitos morais. É este
procedimento que encontramos na caracterização de Perilo
Ambrósio. Neste trecho de Viva o povo brasileiro, encontramos
uma nítida associação entre o seu gozo sexual e
o seu gozo pela riqueza e o poder:
"... esboçou um meio sorriso
e, fazendo uma expressão que sabia que jamais faria diante
de qualquer pessoa, começou a masturbar-se à janela,
mal podendo conter a vontade de gritar e urrar, pois que se masturbava
por tudo aquilo que era infinitamente seu, os negros, as negras, as
outras pessoas, o mundo, o navio a vapor, as árvores, a escuridão
e o próprio chão da fazenda. Sim, podia sair por ali
nu como estava, a glande como a cabeça de um aríete
irresistível, e podia fazer com que todos a olhassem e a reverenciassem
a ansiassem pela mercê de pode toca-la e beija-la. Imaginou-se
suavemente prepotente, chamando ao colo e às virilhas as cabeças
dos que o cercavam, com isso distribuindo bênçãos
e felicidade."(RIBEIRO: 1984, 90-91)
Como se verifica ao longo do romance, a
figura e os atos grotescos de Perilo Ambrósio podem ser consideradas
uma alegoria da própria classe dominante brasileira e seus métodos
predatórios de apropriação de riqueza. Contudo,
pelo menos para o personagem Perilo Ambrósio - e lembrando a
idéia de punição da máxima latina citada
- o narrador reserva para agonia e morte tão grotescas quanto
os seus atos. Vítima de uma infusão venenosa preparada
por um grupo de escravos, o Perilo Ambrósio passa a padecer de
urinas e bostas presas muito dolorosas (RIBEIRO: 1984, 162).
A doença e subseqüente morte de Perilo Ambrósio apresenta
um rebaixamento grotesco semelhante a um exemplo antigo que encontramos
na sátira "Apokolokyntosis", de Sêneca. Invertendo
a tradição de se atribuir um caráter nobre às
últimas palavras de personalidades ilustres, Sêneca narra
que o alvo de sua sátira, o imperador Cláudio, depois
de ter soltado um som , mais alto do que de costume, pela parte do corpo
com que se exprimia mais eloqüentemente (SÊNECA: S.D.,
P. 148) proferiu suas últimas palavras: Ai de mim, acho talvez
que me sujei. (SÊNECA: s.d., 148). Semelhantemente, em Viva
o Povo brasileiro, Perilo Ambrósio, pouco antes da sua morte,
em breve momento de recuperação, após ter abocanhado
e mordido a orelha de um escravo, implora por um fiambre, uma fiambrada
com feijão e frango assado (RIBEIRO: 1984, 201). Contudo,
mantendo o contraste irônico entre a vulgaridade ou mesmo a baixeza
dos fatos narrados e suas versões elevadas, o narrador nos informa
da versão heróica das últimas palavras de Perilo
Ambrósio, o barão de Pirapuama: Pátria, honradez,
luta, abnegação. Haverei servido bem a Deus e ao Brasil?
(RIBEIRO: 1984, 203)
Como era gostoso meu holandês (e outros quitutes)
A principal crítica de Bakhtin aos seus predecessores estudiosos
de Rabelais é a falta da percepção da ambivalência
do riso rabelaisiano. Para Bakhtin o riso (e o grotesco) em Rabelais
não comporta apenas o sentido negativo, denegridor, que é
próprio do riso satírico. Embora reconheça que
há numerosas passagens satíricas na obra de Rabelais,
Bakhtin afirma que o tom dominante é ambivalente, pois o riso
rabelaisiano também comporta um sentido positivo. É justamente
esse sentido positivo que encontramos na sua descrição
do corpo grotesco, aplicada à obra de Rabelais. Ao contrário
dos cânones clássicos, o corpo grotesco não é
representado em isolamento, com seus contornos completamente definidos,
mas em contato e interpenetração com outros corpos. Expressão
de um mundo inacabado, em constante transformação, o corpo
grotesco representa (muitas vezes simultaneamente) o processo de nascimento,
alimentação, excreção, atividade sexual,
morte e nascimento. Tem, portanto, também um valor positivo representando
a capacidade de regeneração da vida. Imagens paradigmáticas
de valor positivo do estilo grotesco são aquela figuras de terracota
de Kertch, conservadas no Museu L'Ermitage de Leningrado, que representam
velhas grávidas rindo, sendo exagerados tanto os traços
da velhice, como também os traços da fecundidade: os seios
fartos e o ventre protuberante. Neste caso temos um dos melhores exemplos
do corpo inacabado, entre a morte e o renascimento. Valor igualmente
positivo tem o tema do banquete grotesco em Rabelais, como todo o seus
exagero da comida e da bebida.
Em Viva o povo brasileiro encontramos, sem prejuízo do
seu caráter paródico, episódios que se associam
ao banquete grotesco com o mesmo sentido ambivalente detectado por Bakhtin
em Rabelais e nas festas populares que o inspiraram. O principal desses
episódios é o banquete antropófago do caboco Capiroba,
que apreciava comer holandeses. Há, sem dúvida, muito
de paródia na antropagia do caboco Capiroba. A própria
iniciação do personagem naquela prática é
uma paródia do estranhamento causado pela pregação
jesuítica, cuja teologia cristã era de assimilação
extremamente difícil para os indígenas. Segundo relata
o romance, o caboco Capiroba não conhecia a antropofagia, mas
foi induzido a praticá-la pela insistente condenação
daquela prática pelos jesuítas. O caráter paródico
e cômico do banquete antropofágico torna-se ainda mais
evidente neste trecho, em que ocorre um rebaixamento dos personagens
portugueses, destacados por nomes completos, procedências, título
e cargos, são transformados deliciosos quitutes. Note-se neste
trecho uma característica importante do banquete grotesco, que
é a profusão da comida, cujos pratos e sabores são
descritos detalhadamente:
"No segundo ano, roubou mais duas
mulheres e comeu Jacob Ferreiro do Monte, cristão-novo, sempre
lembrado por seu sabor exemplar da melhor galinha ali jamais provada;
Gabriel da Piedade, O.S.B., que rendeu ireprochável fiambre
defumado; Luiz Ventura, Diogo Barros, Custódio Rangel da Veiga,
Cosme Soares da Costa, Bartolomeu Cançado e Gregório
Serrão Beleza, minhotos de carnes brancas nunca superadas,
raramente falhando em escaldados; Jorge Seprón Nabarro, biscainho
de laivo azedo e enérgico, tutano suculento, tripas amplas;
Diogo Serrano, sua esposa Violante, seu criado Valentim do Campo e
suas graciosas filhas, Teresa, Maria do Socorro e Catarina, grupo
desigual mas no geral consistente, de paladar discreto e digestão
desimpedida; Fradique Padilha de Évora, algo velho e esfiapado,
mas o melhor toucinho que por lá se comeu, depois de bem saldado;
Carlos de Tolosa e Braga, de quem se fizeram dois troncudos pernis;
seis marinheiros do Capitão Ascenso da Silva Tissão,
todos de peito demais rijo e um travo de almíscar, porém
de louvada excelência nos guisados e viandas de panela funda;
o quartel-mestre Lourenço Rebelo Barreto, saudoso pela textura
inigualável da sua alcatra, e muitos outros e outras."
(RIBEIRO: 1984, 43-44)
O caráter paródico da antropofagia
acentua-se quando o caboco Capiroba descobre as delícias da carne
holandesa. Pode-se identificar neste trecho do episódio uma paródia
da pretensa superioridade de uma possível colonização
holandesa no Brasil sobre a colonização portuguesa, idéia
que será defendida posteriormente por alguns personagens do romance.
A paródia se realiza justamente pela transposição
para o baixo material e corporal da suposta superioridade da civilização
holandesa:
... o caboco Capiroba, cujo paladar,
antes rude, se tornou de tal sorte afeito à carne flamenga
que às vezes chegava mesmo a ter engulhos, só de pensar
em certos portugueses e espanhóis que em outros tempos havia
comido ... (RIBEIRO: 1984, 44)
Contudo, além do aspecto simplesmente
paródico, encontramos um valor positivo no banquete antropofágico,
principalmente a partir do momento em que o caboco Capiroba e sua família
devoram o holandês Zernique. O primeiro episódio em que
aparece o holandês, discutindo com o amigo Eijkman, mostra um
norte-europeu abandonado pelos companheiros de viagem e completamente
inadaptado aos trópicos. Em seguida Zernique é aprisionado
como gado, ocasião em que é praticamente forçado
a ter relações com Vu, a filha do caboco Capiroba.
Esta relação originará toda a ascendência
da heroína Maria da Fé, ela mesma uma reencarnação
do próprio caboco Capiroba e do Alferes Brandão
Galvão. Encontramos, portanto, nesse episódio, a idéias
de corpo inacabado em processo de devoração, morte e fecundidade,
defendidas como valores positivos do corpo grotesco por Bakhtin. O mais
interessante, porém, é a transformação cultural
que ocorre na alma do holandês após a sua morte: o europeu
inadaptado aos trópicos tem sua alma miscigenada, transformando-se
em um paradoxal caboclo holandês, chamado, pelas negras que incorporam
seu espírito, Sinique. Temos aqui uma interessante inversão
dos valores da antropofagia: sabe-se que os índios devoravam
seus inimigos mais valorosos com o intuito de assimilar suas qualidades,
mas neste caso é o europeu que, devorado fisicamente, assimila
valores culturais não somente dos indígenas, mas de todas
as etnias que irão compor a população brasileira.
Devorado, o holandês identifica-se mais com o povo brasileiro
que muitos personagens da classe dominante, que se consideram europeus
transplantados e fazem questão de ocultar seus traços
mestiços.
Em Viva o povo brasileiro há outros episódios que,
se não apresentam a fartura e própria do banquete grotesco,
aludem aos valores positivos do banquete: a comunhão e a regeneração
associadas ao prazer de comer. Em um desses episódios, o Nego
Leléu, para tentar consolar a "neta adotiva" Maria da Fé
do trauma de ter presenciado o assassinato da mãe, decide presenteá-la
com um prato de tatu, que ele mesmo faz questão de caçar,
ocasião em que é obrigado a ouvir uma preleção
do caçador Luiz Tatu sobre as espécies, as maneiras da
caçar e as qualidades culinárias do animal. No outro episódio,
o aprendizado de Patrício Macário sobre o povo brasileiro
é acompanhado por um delicioso prato de baiacu. Por ser um prato
perigoso, pois se não for bem preparado pode causar a morte,
mas se preparado adequadamente é comida das mais deliciosas,
o baiacu acaba se convertendo em um símbolo da sabedoria popular.
Como conta o narrador:
...logo estavam se abancando para
comer, alegrados pelo convívio e pela soberbia que é
a verdadeira razão por que se come baiacu, pois uma pessoa
que come baiacu não é igual às outras. (RIBEIRO,
1984, 592)
Conclusão
O jogo de contrastes entre rebaixamento
e elevação remete ao conceito bakhtiniano de carnaval.
Segundo Bakhtin, uma das características dos festejos carnavalescos
na Idade Média e no Renascimento é a inversão da
hierarquia vigente: personalidades elevadas como o rei ganham sua versão
rebaixada, normalmente representada de maneira grotesca, como o Rei
Momo; por outro lado, o povo se permite imitar trajes e maneiras fidalgas.
Portanto, o carnaval transmite uma impressão de mundo às
avessas. Além disto, o carnaval provoca os exageros relacionados
com o baixo corporal, a profusão de cores e detalhes e uma multidão
compacta que sugere a mistura de corpos, características do grotesco.
No carnaval, como na obra de Rabelais, o grotesco, associado ao riso
alegre, adquire um sentido positivo.
Com base nestas observações pode-se dizer que Viva
o povo brasileiro contém elementos carnavalescos, o que não
significa que todo o enredo do romance seja um alegre carnaval, com
toda a censura supensa e a hierarquia abolida. O que ocorre é
a utilização de recursos carnavalescos, como o rebaixamento,
com o sentido profundamente crítico, acentuando o caráter
paródico dos discursos caricaturalmente elevados de diversos
personagens. Inversamente, os escravos habitualmente injuriados por
seus senhores em termos grotescos, tem seu momento de elevação
na sua participação na Guerra do Paraguai, em que o narrador
adota os estilemas típicos da epopéia, devidamente adaptados
à cultura afro-brasileira: Oquê, Oxossi, oquê-arô,
incomparável caçador da madrugada, rei das matas, senhor
da astúcia, imbatível no arco e flecha... (RIBEIRO:
1984, 451). Elevados também são os discursos da heroina
popular Maria da Fé; são porém discursos sóbrios,
sem a empolação caricata dos discursos parodiados.
Bibliografia
BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular
na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François
Rabelais. Tr. Yara Frateschi Vieira. São Paulo: HUCITEC; Brasília:
Editora da Universidade de Brasília, 1993
BAKHTIN, Mikhail. Questões de Literatura e de Estética:
a teoria do romance. Tr. Aurora Fornoni Bernardini et allii.
São Paulo: UNESP\HUCITEC, 1990.
HORÁCIO. "Arte Poética" ("Epistola ad Pisones")
in: ARISTÓTELES, HORÁCIO,
LONGINO. A poética clássica. Tr. Jaime Bruna. São
Paulo: Cultrix, 1995.
NUTO, João Vianney Cavalcanti. "Povo, Povinho, Povão:
Ideologias do Caráter Nacional em Viva o povo brasileiro
"in: Revista Humanidades. Brasília: Editora da Universidade
de Brasília. (no prelo).
RIBEIRO, João Ubaldo. Viva o povo brasileiro. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1984. p. 9
SÊNECA. Medéia, obras de Sêneca. Tr. G. D.
Leoni. Rio de janeiro: Edições de Ouro (Tecnoprint), s.d.
João
Vianney Cavalcanti Nuto é graduado
em Letras e mestre em Literatura Anglo-Americana pela Universidade Federal
da Paraíba. Atualmente é professor Assistente de Teoria
da Literatura na Universidade de Brasília. Tem publicado trabalhos
sobre Literatura Anglo-Americana, Literatura Brasileira e Literaturas
Africanas de Língua Portuguesa.
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