O cânon literário e a avaliação dos cursos de Letras

 

José Luís Jobim

UFF/UERJ

 

No momento em que se instala um sistema de avaliação dos cursos de Letras no país, abrangendo as habilitações que credenciam o aluno a lecionar Língua Portuguesa e Literaturas Brasileira e Portuguesa, torna-se necessário explicitar uma série de habilidades que comporiam seu perfil de referência. Quais seriam estas habilidades? Limitar-me-ei, no estreito espaço de que disponho, a comentar alguns tópicos referentes à formação literária do aluno, levantados na Comissão de Letras, encarregada de estabelecer os parâmetros da avaliação.
Para começar, achamos que seria importante o formando dominar ativa e criticamente um repertório mínimo representativo das Literaturas Brasileira e Portuguesa, de modo a ser capaz de interpretar adequadamente textos de diferentes modalidades, gêneros e registros lingüísticos. Contudo, além da capacidade para verbalizar sua interpretação, seria interessante que o graduando pudesse explicitar os argumentos utilizados para justificá-la, refletindo sobre os fundamentos dela e sendo capaz de debatê-los, em vez de pretender transformá-los em dogma inquestionável.
Certamente os processos de compreender, comparar e analisar criticamente textos alheios podem ser benéficos para o aluno que incorpore tanto ao seu cotidiano comunicativo quanto à sua produção escrita o que for apreendido nas atividades exploradoras da riqueza potencial da língua.
Também é importante que o graduando apreenda criticamente as obras literárias, não somente através de uma interpretação derivada do contato direto com elas, mas também através da mediação de obras de crítica e teoria literárias, formuladoras de interpretações e comentários que se tornam um quadro de referência, com o qual, a partir do qual ou contra o qual sua apreensão se estabelece.
É relevante assinalar que não presumimos que o graduando vá apenas ensinar fórmulas prontas de interpretação textual, as quais supostamente poderiam dar acesso ao que as obras "verdadeiramente significam", mas cremos ser importante habilitá-lo a um esforço reflexivo que pode ultrapassar as evidências aparentes, colocando em cheque valores, posições, atitudes, levando-o a ser capaz de apreender o que está em jogo na interpretação, para obter resultados que eventualmente ultrapassem o senso comum - a fonte mais freqüente dos dogmatismos enraizados.
Ainda como elemento formativo, seria necessário dominar o conhecimento histórico e teórico para: refletir sobre as condições sob as quais a escrita se torna literatura; explorar as relações dos textos literários com outros tipos de discurso e com os contextos em que se inserem; relacionar o texto literário com os problemas e concepções dominantes tanto na cultura do período em que foi escrito quanto na atualidade.
Evidentemente, para a discussão das habilidades anteriormente enumeradas, pressupõe-se o domínio de um repertório mínimo dos termos especializados através dos quais se pode debater e transmitir a fundamentação do conhecimento da literatura.
Além disso, principalmente quando se tratar de graduandos que se dirigem ao magistério, seria importante eles serem capazes de desempenhar o papel de de multiplicadores, iniciando outros leitores e produtores textuais.
É claro que cada uma destas formulações sintéticas acima mereceria uma discussão à parte, que não será possível desenvolver neste momento. Contudo, se apenas imaginarmos o perfil e as habilidades do aluno a se formar como um tema que merece constar de nossa agenda acadêmica, já poderá haver conseqüências positivas.
No entanto, para não nos furtarmos por completo a discutir os problemas envolvidos nas próprias opções da comissão, escolhemos discorrer um pouco mais alongadamente sobre um tópico referente à primeira habilidade.
Provavelmente, no momento em que se divulgarem de modo mais extensivo tanto o perfil e as habilidades esperadas do graduando em Letras quanto o conteúdo programático proposto para a primeira prova, muitos associarão a habilidade de "dominar ativa e criticamente um repertório mínimo representativo das Literaturas Brasileira e Portuguesa" à lista de autores e obras que aparece em apêndice ao conteúdo. Para uma visualização mais clara do leitor, reproduziremos, a seguir, o conteúdo programático proposto para os estudos literários:

Literatura Brasileira

- Condições de produção, circulação e recepção de obras relevantes da literatura brasileira em diferentes momentos históricos
- Fortuna crítica de obras relevantes da literatura brasileira
- Articulação de categorias relevantes de diferentes teorias da literatura às obras relevantes da literatura brasileira
Obs.: No Exame de 1998, será dada ênfase às seguintes obras literárias:
José de Alencar. Iracema;
Mário de Andrade. Macunaíma;
Álvares de Azevedo (poesia)
Carlos Drummond de Andrade (poesia)
Castro Alves (poesia)
Gregório de Matos (poesia)
Clarice Lispector. A Hora da Estrela;
J. M. de Macedo. A Moreninha;
Machado de Assis. Dom Casmurro;
Graciliano Ramos. Vidas Secas;
Nélson Rodrigues. Vestido de Noiva;
Guimarães Rosa. Grande Sertão: Veredas;
Tomás Antônio Gonzaga (poesia)

Literatura Portuguesa

- Condições de produção, circulação e recepção das obras mais relevantes da literatura portuguesa
- Fortuna crítica das obras mais relevantes da literatura portuguesa
- Articulação das categorias relevantes de diferentes teorias da literatura às obras relevantes da literatura portuguesa
Obs.: No Exame de 1998, será dada ênfase às seguintes obras literárias:
Alexandre Herculano. Eurico, o Presbítero;
Almeida Garret. Frei Luís de Sousa.
Antonio Vieira. Sermões
Bocage (poesia)
Camões Os Lusíadas;
Camilo Castelo Branco. Amor de Perdição;
Cesário Verde (Poesia)
Eça de Queirós. O Crime do Padre Amaro;
Fernando Pessoa (poesia)
Florbela Espanca (poesia)
Gil Vicente. Auto da Barca do Inferno.

Teoria da Literatura

- Conceitos, funções, gêneros e periodização da literatura
- Diferentes vertentes dos estudos literários
- Elementos constitutivos da prosa, da poesia e do teatro

Embora se possa ressalvar que a prova não se restringirá aos autores e obras da lista, várias coisas poderão passar pela cabeça dos professores e alunos. Uma delas talvez possa concretizar-se na pergunta: - Estaremos repetindo, em um exame ao término da graduação, a mesma experiência de alguns vestibulares, que cobram listas de autores e obras aos candidatos?
Assim formulada, a questão conduziria a uma resposta que teria de passar pelas diferenças: no vestibular, a lista é prospectiva, e presume que os autores serão lidos até as vésperas da prova, enquanto no "provão", como se trata de um exame de conclusão, a lista é retrospectiva. Poder-se-ia também argumentar que, embora a lista presumivelmente inclua leituras que já terão sido feitas, na verdade ela é uma cobrança prospectiva, em especial para os graduandos que não conhecerem os livros cobrados. Então, talvez possamos formular outras duas perguntas: - Os autores e obras da lista são os que deveriam constar predominantemente dos programas dos cursos de Letras no Brasil? Estes autores são os predominantes nos programas dos cursos de Letras no Brasil? A primeira pergunta provavelmente seria respondida com um tom mais normativo, a segunda com um tom mais constatativo, mas é interessante assinalar que ambas se referem ao mesmo tópico: o cânon. (Cânon, como sabemos, foi a palavra usada para designar o universo de autores e obras que são valorizados, lembrados e aceitos como importantes em determinada comunidade.
[1])Talvez, se partirmos destas perguntas, possamos desenvolver uma breve reflexão.

"Os autores e obras da lista são os que deveriam constar predominantemente dos programas dos cursos de Letras no Brasil?"


Responder afirmando que os autores e obras listados deveriam constar dos programas dos cursos de Letras no Brasil significa assumir uma atitude normativa, determinando como regra genérica que estes autores e obras formam um corpus cuja universalidade é por nós declarada como exemplar, a tal ponto que avaliaremos a sua ausência como negativa, a partir do padrão que elaboramos.
Em situações como a do "provão", que envolvem um contexto legal, mesmo não concordando com a norma proposta ou não desejando submeter-nos a ela, é difícil não reconhecer o seu dever-ser. Mas isto não significa apenas a presença de um respeito que possamos devotar ao padrão proposto, pois não se presume só estarmos conformes com ele, mas também a possibilidade da insurgência programática contra os próprios fundamentos dele ou até contra sua aspiração à generalidade normativa, sempre inplícita em uma proposta de exame nacional. Mesmo presumindo que o padrão prescrito deriva de alguma forma das práticas acadêmicas da comunidade de Letras, pode-se questionar se ele faz justiça aos próprios modos como esta comunidade se comprometeria (ou não) com um possível ideal regulativo de alcançar um consenso sobre o que importa numa avaliação. E mesmo que se alcançasse este consenso, ainda restaria a pergunta: - Como conciliar o resultado de um consenso mais genérico com iniciativas individuais e formas de dissenso que podem contestá-lo?
Se qualquer avaliação supõe uma provisão de mensurabilidade, é difícil imaginar que ela ignore como as práticas da comunidade acadêmica se criam, permanecem ou se modificam, gerando quadros de referência concretos, em que há procedimentos, padrões e cânons aceitos mais amplamente, a partir dos quais se pode constituir o solo comum que torna a própria comensuração possível. Entretanto, como estes procedimentos, padrões e cânones aceitos não são desenraizados dos contextos históricos efetivos em que se inserem, e aos quais recorrem para selecionar seus modelos de objetividade avaliativa, pode-se também imaginar que no futuro outros paradigmas substituirão os do presente.
No caso do "provão", a própria força contextual do dever-ser, implícito na situação em que ele se insere, aumenta o peso da lista e das críticas que a ela se façam. O que poderia nos levar à segunda pergunta.

"Os autores e obras da lista são os predominantes nos programas dos cursos de Letras no Brasil?"


Evidentemente, um levantamento extensivo dos autores e obras que constam dos programas de literatura nos cursos de graduação em Letras, seguido de uma verificação sobre até que ponto estes programas são efetivamente cumpridos no dia-a-dia das instituições, poderia fornecer subsídios mais realistas para uma resposta positiva ou negativa a esta questão.
No entanto, a presença de qualquer lista neste tipo de prova sempre estará sujeita a críticas (porque não contém os autores e obras que presumivelmente deveria conter; porque contém autores e obras que presumivelmente não deveria conter; etc.). Os que defendem a presença da lista como a explicitação de um corpus mínimo de leitura ou como uma orientação de leitura básica para os cursos teriam de ouvir várias objeções, entre elas a de que a prescrição de obras pode prejudicar, inclusive, os bons alunos que tenham lido os autores enfatizados, mas não as obras listadas (um aluno que tenha lido Primeiras estórias e Corpo de baile, por exemplo, mas não Grande sertão: veredas).
Também é provável que, a partir da implantação de uma política de "listas", comecemos a desenvolver o hábito de os diversos grupos de interesse relacionados às seleções feitas se manifestarem, reivindicando inclusões e/ou exclusões. Talvez estejamos mesmo correndo o risco de repetir tardiamente a experiência norte-americana:
Quando os historiadores do futuro procurarem caracterizar a vida cultural dos Estados Unidos nos anos 80, eles poderão simplesmente decidir denominá-la `a década do debate sobre o cânon'. É preciso apenas rememorar seus momentos mais relevantes. Em 1981 Leslie Fiedler e Houston A. Baker inauguraram a discussão com Opening up the Canon; em 1983 Robert von Hallberg editou um número especial de Critical Inquiry também dedicado a Canons, conferindo respeitabilidade teórica ao assunto e trazendo-o ao primeiro plano da consciência acadêmica. Somente alguns anos mais tarde o tópico atrairia atenção ainda maior, quando Alan Bloom publicou The Closing of the American Mind
[2] , uma obra que se tornou um best seller nacional e transformou Bloom em celebridade da mídia. Um pouco depois E. D. Hirsch lançou prescrições para "alfabetização cultural", uma lista de livros e informações reduzidas que ele disse serem indispensáveis para participar na cultura alfabetizada, e que os críticos acusaram de "Eurocentrismo". Ao redor de 1988, a Universidade de Stanford tinha anunciado que estava alterando seu curso introdutório obrigatório nas humanidades, para refletir mais adequadamente a heterogeneidade étnica de seus estudantes, gerando um novo debate e uma profusão de propostas para emular a experiência de Stanford. Então, o cânon era um assunto de destaque nas primeiras páginas dos jornais de circulação nacional. [3]
Não há como negar que a imagem de literatura para o aluno de Letras está relacionada ao inventário das obras e autores com que se familiarizou durante o curso. Assim, ao transmitirem institucionalmente aos discentes (que depois, como professores, retransmitirão aos seus futuros alunos) uma determinada representação de literatura, depreendida de autores e obras selecionados, os cursos de Letras são responsáveis pela criação de uma imagem do literário. Assim, se a presença explícita de uma lista de autores e obras no "provão" poderá provocar reações de toda ordem, a maioria talvez até contra a Comissão, é bom lembrar que a ausência de uma lista não elimina os problemas que apontamos. É possível que os membros da Comissão fossem poupados de muitas críticas, sem a presença da lista; mas a ausência dela certamente não significaria uma abertura ilimitada para a banca elaboradora do "provão"
[4]. Seria muita ingenuidade imaginar haver a necessidade de uma comissão nomeada pelo Ministério da Educação intervir para que se instaure um cânon literário. É possível até imaginar que, se não houvesse esta lista e fossem cobrados na prova os mesmos autores e obras nela prescritos, os membros da comunidade de Letras reconheceriam que se trata de um universo representativo das literaturas brasileira e portuguesa, selecionado dentro do cânon de autores e obras que usualmente constam dos programas dos cursos de Letras no Brasil. De qualquer forma, assim o corpus adotado nos cursos de Letras provavelmente continuaria a ser o padrão de referência de qualquer banca que não desejasse ser execrada publicamente.
Contudo, se é possível argumentar que a lista de autores e obras proposta para o "provão" teria a vantagem de tornar claro para o aluno o que ele necessariamante teria de ler em seu curso, na verdade o que ela efetivamente torna explícito é o que ele deve ler para o "provão". Na verdade, a colocação de questões mais genéricas pode tender, no futuro, a dificultar a vida do aluno neste exame: se começarmos a considerar as listas elaboradas pela Comissão como parâmetros curriculares, inevitavelmente tenderemos à solicitação virtualmente ilimitada de inclusões, pois é sempre mais fácil incluir do que retirar autores e obras. Isto poderá, em uma circunstância de modo algum desejável, fazer com que as listas desapareçam como referência para uma prova e se transformem em outra coisa, por conterem um número de autores e obras impossível de ser cobrado em um único exame.
No entanto, talvez a presença destas listas sirva como elemento motivador para que se implemente a discussão sobre o corpus de leitura dos alunos de Letras, estimulando o estudo das convenções, normas e valores que fundamentam a sua escolha. A discussão sobre os autores e obras que são valorizados, lembrados, aceitos e incluídos em nossos programas, bem como sobre os que são desvalorizados, esquecidos, rejeitados e excluídos, pode tornar claro o centro e as margens de nosso cânon, assim como os fundamentos de sua constituição.
Como não pressuponho ser possível nenhuma decisão "definitiva", quer sobre o corpus de leitura dos alunos de Letras, quer sobre qualquer das questões - e há muitas - que envolvem o "provão", no máximo posso dizer que, embora a Comissão tenha adotado o que considerou ser o melhor no contexto em que trabalhou - inclusive levando em conta as sugestões surgidas nos encontros formais e informais com os docentes da comunidade a ser avaliada -, posso imaginar que haverá quem se oponha às alternativas escolhidas, apresentando também argumentos consistentes. No entanto, longe de ver isto como problema, acredito que é desta própria cultura de avaliação crítica permanente que poderão futuramente surgir novas alternativas, aceitas como melhores do que as que foram elaboradas no presente.


Notas

1 "O termo (do grego kanon, espécie de vara de medir) entrou para as línguas românicas com o sentido de "norma" ou "lei". Durante os primórdios da cristandade, teólogos o utilizaram para selecionar aqueles autores e textos que mereceriam ser preservados e, em conseqüência, banir da Bíblia os que não se prestavam para disseminar as "verdades" que deveriam ser incorporadas ao livro sagrado e pregadas aos seguidores da fé cristã. O que interessa reter, mais do que uma diacronia, é que o conceito de cânon implica um princípio de seleção (e exclusão) e, assim, não pode se desvincular da questão do poder: obviamente, os que selecionam (e excluem) estão investidos da autoridade para fazê-lo e o farão de acordo com seus intereses (isto é: de sua classe, de sua cultura etc.). Convém atentar ainda para o fato de que o exercício desta autoridade se faz num determinado espaço institucional (no caso, a Igreja).
Nas artes em geral e na literatura, que nos interessa mais de perto, cânon significa um perene e exemplar conjunto de obras - os clássicos, as obras-primas dos grandes mestres-, um patrimônio da humanidade (e, hoje percebemos com mais clareza, esta "humanidade" é muito fechada e restrita) a ser preservada para as futuras gerações, cujo valor é indisputável. (Roberto Reis. Cânon. In: José Luís Jobim, org. Palavras da crítica - tendências e conceitos no estudo da literatura. Rio de Janeiro: Imago, 1992. p. 65-92. p. 70.)
2 Trad. portuguesa: O declínio da cultura ocidental; da crise da universidade à crise da sociedade. 2. ed. São Paulo: Best Seller, 1989.
3 RAINEY, Lawrence S. Canon, Gender, and Text. In: BORNSTEIN, George. Editing as Interpretation. Ann Harbor: The University of Michigan Press, 1991. p. 99-123. p. 99-100.
4 É bom lembrar que a Comissão de Letras não será responsável pela elaboração da prova. Sua função se limita a: elaborar os objetivos do exame, o perfil e habilidades esperadas dos candidatos e o conteúdo programático; avaliar a prova elaborada por uma banca contratada pela empresa que ganhar a licitação para fazer o "provão".


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