Heterogeneidade: amiga pública número um do ensino de literatura

 

Clarissa Menezes Jordão
(Universidade Federal do Paraná)

 



Abstract:
after an initial discussion of the postmodern view of subject and knowledge as provisional and multiple, this text examines the possibilities of the literature classroom as a place for the transformation of our meaning-making processes.

Resumo:
partindo de uma discussão inicial sobre a visão pós-moderna de sujeito e conhecimento como provisórios e múltiplos, este texto estuda a possibilidade da sala de aula de literaturas como um local para a transformação dos nossos processos de significação.



Assim como a linguagem e o sujeito, o conhecimento também é uma construção social. A sala de aula de literatura é um local onde o conhecimento está, ou poderia estar, em construção. Mais do que simplesmente re-produzir leituras, alunos e professores podem, no encontro de identidades em sala de aula, vivenciar oportunidades únicas de produzir conhecimento. Uma vez que, de acordo com o pensamento pós-moderno, nossas identidades são múltiplas, constituídas no jogo eu/outro; os significados são dinâmicos e só podem ser percebidos nas relações entre significantes (Derrida, 1978); o conhecimento e o poder são localizados, situados, históricos e parciais, então a sala de aula pode ser vista como o locus de uma relação dialógica que produz, assim como reproduz, significados e identidades.

Como qualquer outro grupo social, a sala de aula estabelece conflitos dialógicos nos quais cada participante busca a resposta do outro (Lacan, citado por Usher & Edwards, 1996, p. 78). Em tais conflitos, relações de poder são produzidas, mantidas, testadas; limites são checados, significados são criados e recriados. Sujeitos fragmentados co-existem em sala de aula, em um grupo social heterogêneo formado por múltiplas identidades num processo interminável de identificação, num movimento infinito pelo reconhecimento de si próprio e do outro.

O confronto de valores, concepções de Verdade e verdades, experiências de leituras, crenças, visões de mundo, histórias de vida, são um terreno fértil para a troca, criação e re-elaboração de significados, para criação e re-criação de verdades. Entretanto, por mais lucrativa que tal heterogeneidade possa ser, professores e alunos via de regra lutam para negar e eliminar as diferenças -- buscam a supressão da sua própria alteridade, do inconsciente lacaniano -- em prol de uma certeza ilusória, de uma segurança utópica que o aparente domínio do conhecimento institucionalizado traria. Determinados assim por um conceito humanista de ciência e educação, professores e alunos sujeitam-se a seus papéis sociais de transmissores e receptores respectivamente, mantendo uma idéia de conhecimento como mero acúmulo de informações, como algo objetivo e exterior ao sujeito, cuja produção não se dá na escola: lá ele deve ser apenas reproduzido e transmitido aos alunos pelos professores. Esta visão de conhecimento e dos papéis de aluno e professor, amplamente aceita em nossa sociedade, reforça o conhecimento como dado, distanciado, livre de uma possível (e provável) contaminação pela praxis:

[...] a obtenção do conhecimento escolar é vista como restrição às ligações pessoais com o objeto de estudo. Sob tal ponto de vista, o conhecimento escolar se apresenta em pacotes precisos, inflexíveis, moralmente neutros que, uma vez possuídos, podem ser usados para pensar, que é algo tido como amplamente estruturado e individual, e não coletivo (Johnston, P.H. & Nicholls, J.G. , 1995, p. 96).

O conceito pós-moderno de subjetividade, no entanto, questiona o conhecimento sistemático e mostra conhecimento e identidade sob um ponto de vista diferente. Socialmente determinados, perceptíveis através de sua referencialidade em relações infinitas entre significantes, indivíduos e significados estão sempre em processo de significação, sendo constituídos provisoriamente e não como absolutos; conhecimento e sujeito são posicionados em e por discursos como históricos, sendo portanto construtos coletivos, políticos, sociais, culturais, comunitariamente formados, constituídos numa inter-relação entre eu e outros. O saber e a subjetividade são fragmentados e dinâmicos, impossíveis de serem conhecidos em sua totalidade.

Conseqüentemente, o desejo de dominar, de possuir controle absoluto sobre os significados torna-se utópico, o que resulta em frustração diante de um sonho impossível; o absoluto fica inatingível, uma vez que se reconhece que o conhecimento não é total, nem pode jamais ser dominado por inteiro: devido à sua historicidade, não pode ser encontrado em estado de completude estática, ou seja, não pode ser encontrado em universais que, uma vez dominados, garantam a maestria de uma verdade absoluta, universal, eterna. Significados são percebidos nas relações entre significantes: um significante relaciona-se a outros, que por sua vez relacionam-se a outros e outros e mais outros, num encadeamento infinito, numa cadeia que não pode ser controlada - Godot nunca chega.

A literatura discute a produção de significados em e através de textos literários; aulas de literatura potencialmente produzem significados em relações interpessoais nas quais textos, autores, professores, alunos, a crítica literária, instituições educacionais, culturas, sociedades, histórias, valores, atitudes, etc., desempenham seus papéis simultaneamente. Os elementos que formam e são formados por nossas tentativas de criar sentido fazem parte do universo da sala de aula, e precisam ser estudados quando se tenta entender o processo de ensino/aprendizagem de literaturas. O conhecimento coletivo produzido em sala de aula não é uma espécie inferior de conhecimento, nem melhor do que outros tipos de conhecimento: é conhecimento em seus aspectos constitutivos, como construção social, como um processo situado de produção de sentido, sujeito e assujeitado à história, à sociedade, às comunidades interpretativas, a discursos, à agência individual e coletiva.

Alunos e professores como produtores de conhecimento não são lados opostos de uma série hierárquica, mas posições ocupadas de acordo com o papel que cada um acredita estar desempenhando em determinados momentos. Tais posições, no entanto, não são fixas nem excludentes: desempenhar papéis diferentes simultaneamente é um modo de experienciarmos nossa alteridade[1], de reconhecermos que ao mesmo tempo em que somos constituídos pelo outro, constituímos o outro; de percebermos a multiplicidade de nossas identidades, efetivadas no próprio movimento entre significantes. Para de fato compreendermos a nós mesmos, precisamos entender que somos nós e os outros simultaneamente; precisamos assumir nossa multiplicidade como presença absoluta. Multiplicidade implica complexidade, fluidez, movimento, e como tal não se refere a posições fixas, mas a relações, ou seja, a fragmentos sob um ponto de vista holista: cada fragmento não tem em si uma identidade intrínseca, mas o conjunto confere identidade às partes através das relações que faz entre os fragmentos.

Ser um professor ou um aluno é assumir uma ou outra identidade pré-fixada, como se cada uma das posições pudesse ser total, completa, identificável em si mesma; mas nenhuma delas é exclusiva, nem são elas propriedades particulares de nenhum indivíduo: papéis sociais, como os de professor e aluno, não podem ser assumidos como identidades plenas, a não ser no posicionamento contingente dos sujeitos pela sociedade. Uma simples mudança de posição, e conseqüentemente de perspectiva, não resultaria necessariamente em uma mudança interior de atitude, simplesmente porque a identidade não está em uma ou outra perspectiva, mas sim na maneira como cada perspectiva se forma através das ligações, das associações, das relações com os outros. Desempenhar o papel de professor e aluno simultaneamente seria abandonar de fato convenções hierárquicas e mergulhar na produção criativa de conhecimento; seria não apenas tomar consciência da heterogeneidade dentro e fora de nós mesmos (dentro e fora sendo por sua vez mais um par hierárquico referente a posições convencionais que didaticamente, segundo Johnston & Nichols (1995, p.96), restringem as possibilidades de ligações pessoais com o objeto de estudo), mas ainda vivenciar, experienciar tal heterogeneidade.

Contudo, mobilidade para a constituição de conhecimento e identidade não significa que cada interpretação seja tão válida quanto qualquer outra. Leituras desconstrutivistas, embora questionem o locus da verdade, transferindo-o de verdades dadas para presenças autorizantes, não negam a existência de limites, do poder restritivo exercido por processos de legitimação. Culler (1994), ao se opor à afirmação de que as inversões provocadas pelo desconstrutivismo ameaçariam as noções de significado, valoração, e autoridade promovidas pelas instituições, explica que as leituras desconstrutivistas deslocam a questão, levando-nos a considerar quais seriam os processos de legitimação validação, ou autorização que produzem diferenças entre leituras e permitem que uma leitura exponha outra como uma má leitura, ou uma leitura equivocada (Culler, 1994, p.179).

O que se discute de fato no pós-moderno não é a verdade em sua essência, ou se tal essência ou tal verdade existem ou não, mas sim como efeitos de verdade são produzidos e institucionalizados.

A sala de aula, vista sob uma perspectiva pós-moderna, torna-se um fórum para considerações sobre as presenças autorizantes em jogo no Discurso da Universidade, um dos discursos fundamentais de que fala Lacan, e que molda subjetividades posicionando professores como transmissores e alunos como receptores de conhecimento sistemático,


um conhecimento que é um fim em si próprio. Ele é sua própria justificativa. É totalizado porque pré-existente, e totalizante porque busca colocar a seu alcance tudo o que há para saber. Ele é dominante porque não tolera qualquer desafio à autoridade de seus argumentos, e dominador porque posiciona os aprendizes como completamente assujeitados a ele. (Usher& Edwards, 1996, p.76)


Como sujeitos dotados de capacidade de ação, capazes portanto de subverter tal tipo de discurso, alunos e professores de literatura podem resistir à alienação: diálogo e resistência discursiva podem acontecer nas aulas de literatura, solo fértil para desafiar convenções, refletir sobre os processos de representação, questionar de dentro. Tradicionalmente um lugar para a transmissão e imposição da hierarquia social, da obediência e do conformismo às regras convencionalizadas, a sala de aula pode tornar-se na prática um espaço para questionamento e o ponto de partida para mudanças, como se diz, teoricamente, que a escola deva ser. Defender a resistência discursiva seria defender o que Lather & Ellsworth definem por pedagogias situadas, em que o papel dos educadores seria o de

criar respostas e iniciativas em um espaço ao mesmo tempo entre as histórias e legados de opressão e privilégio em que eles se baseiam, e as complexidades freqüentemente contraditórias da situação local em suas tentativas de produzir sentido e agir dentro de tais momentos. (Lather & Ellsworthe, 1996, p.70 - tradução minha)

As mentes literárias inquisitivas precisam de encorajamento para ser tanto inquisitivas quanto literárias, pois desafiam processos de representação ao produzir suas próprias interpretações, não simplesmente reproduzindo os moldes interpretativos elaborados pela crítica literária autorizada. Considerando-se que cada leitura seja sempre limitada, posicionada em seu próprio background, sujeita à história e sua temporalidade, submetida a certos procedimentos interpretativos, pode-se dizer que todas as leituras sejam de fato leituras equivocadas, pois não se pode prever por quanto tempo serão aceitas, ou qual será o prazo de sua validade em relação às convenções interpretativas autorizadas[2]

: leituras feministas de obras literárias canônicas eram impensáveis antes da primeira metade desse século. A história da leitura é uma história de leituras equivocadas, embora sob certas circunstâncias tais equívocos possam ter sido aceitos como leituras. Culler defende a idéia de que leituras verdadeiras sejam apenas equívocos específicos: más leituras cujas falhas tenham escapado aos olhos (Culler, 1993, p. 178). As leituras equivocadas dos alunos são consideradas más na maior parte das vezes não apenas por se oporem a uma verdade humanista centrada, mas também por não seguirem as convenções interpretativas autorizadas pela academia institucionalizada.

O que aqui se diz da educação em geral pode também ser dito do ensino de literatura: as convenções vigentes em períodos literários específicos, obras, textos, assim como as exclusões efetuadas pela institucionalização de determinados conjuntos de procedimentos interpretativos/criativos precisam ser tematizadas nas aulas de literatura, com alunos e professores efetivamente interagindo e contribuindo para a produção de conhecimento, a fim de que se criem oportunidades para que coisas aconteçam, sejam tais coisas a aceitação ou a resistência às normas. Conscientização, compreensão devem estar entre os objetivos do ensino; não se trata de levar ao conformismo ou à revolta, nem de moldar indivíduos para a revolução ou a apatia, mas sim de expô-los à multiplicidade e à contradição, para que o diferente seja visto com bons olhos, como uma possibilidade de criação e não como um inimigo pernicioso a ser destruído.


[1] Wilson Harris defende a necessidade de ocupar-se concomitantemente a posição de sujeito e a posição do outro, para que as molduras limitadoras que impedem a aceitação da alteridade possam ser rompidas. A ocupação simultânea de ambas as posições leva o reconhecimento da alteridade na construção de identidade. (SOUZA, 1997, p.18)
[2] Cf FISH, 1995.

Referências Bibliográficas


BLOOM, H. O Cânone Ocidental: Os Livros e a Escola do Tempo. Rio de Janeiro: Objetiva, 1995.
CULLER, J. On Deconstruction: Theory and Criticism after Structuralism. London: Routledge, 1994.
DERRIDA, J. Writing and Difference. London: Routledge, 1995.
FAIRCLOUGH, N. Language and Power. Harlow: Longman, 1989.
_______________. "Michel Foucault and the Analysis of Discourse". Discourse and Social Change. Harlow: Longman, 1992.
FISH, S. Is There a Text in This Class?: the authority of interpretive communities. Cambridge: Harvard University Press, 1995.
FOUCAULT, M. The Order of Things: an archeology of the human sciences. New York: Vintage Books, 1970.
_____________. "What's an Author?" HARARI, J.V.(ed.) Textual Strategies. England: Methuen, 1979.
______________. A Ordem do Discurso. São Paulo: Loyola, 1996.
JOHNSTON, P. H. & NICHOLLS, J. G. "Voices We Want to Hear and Voices We Don't". In: Theory Into Practice - Situated Pedagogies: Classroom Practices in Postmodern Times, 35, 2, Spring 1996.
KRUPAT, A. The Voice in the Margin. Berkeley: University of California Press, 1989.
LACAN, J. The Seminar of Jacques Lacan - I. J. MILLER (ed.). Cambridge: CUP, 1988.
LATHER, P. & ELLSWORTH, E. "Introduction". Theory into Practice - Situated Pedagogies: Classroom Practices in Postmodern Times, 35, 2, Spring 1996.
MAILLOUX, S. Interpretive Conventions: the reader in the study of American fiction. London: Cornell University Press, 1984, p.140-158.
MARSHALL, B. Teaching the Postmodern: Fiction and Theory. New York: Routledge, 1992.
ORLANDI, E. Discurso e Leitura. Campinas: Cortez, 1996.
SOUZA, L. M. T. M. de. "O Fragmento Quântico: identidade e alteridade no sujeito pós colonial". Revista Letras da Universidade Federal de Santa Maria, Jan-Jun, 1997.
USHER, R & EDWARDS, R. Postmodernism and Education. London: Routledge, 1996.


Clarissa Menezes Jordão da Universidade Federal do Paraná é bolsista da CAPES (programa PDEE junto à Universidade de São Paulo); mestre em Literaturas de Língua Inglesa; doutoranda em Lingüística Aplicada pela USP. Últimas publicações: "The Don't "do-it-yourself" of Education: teaching and learning literature as production of collective knowledge", Ilha do Desterro (UFSC, 1999) e "Critical pedagogy and the teaching of literatures", Acta Scientiarum (UEM, 1999).


Revista Brasil de Literatura | Conselho | Literaturas de Língua Inglesa | Normas | Índice