HOMOSSEXUALIDADE: FIM DE UMA
FRONTEIRA?
Resumo:
Em 1969, com os conflitos de Stonewall, acreditou-se haver chegado
ao fim de mais uma fronteira - a sexual. No ano 2000, entretanto,
faz-se pertinente questionar os limites daquela fronteira. O conto
"The Penis Story" de Sarah Schulman ajuda na construção
da reflexão sobre essa questão.
Abstract:
In 1969, with the Stonewall riots, one more frontier was conquered
- the sexual one. Nevertheless, in the year 2000 it is relevant to
question the limits of that frontier. The short story "The Penis Story"
by Sarah Schulman provides material to discuss this issue.
Em 1969, com os conflitos de Stonewall, acreditou-se
haver chegado ao fim de mais uma fronteira - a sexual. No ano 2000,
entretanto, faz-se pertinente questionar os limites daquela fronteira.
A divisão binária entre heterossexualidade e homossexualidade
parece não atender mais às dissonâncias observadas
na sociedade norte-americana contemporânea. Torna-se necessário,
portanto, dar visibilidade a essa questão cultural emergente.
Uma análise do conto "The Penis Story" de Sarah Schulman ajuda
na construção da reflexão sobre essa questão.
Em um simpósio organizado para comemorar os vinte e cinco anos
de Stonewall, o historiador Martin Duberman, fundador e diretor do
CLAGS(Center for Lesbian and Gay Studies), fez uma avaliação
positiva sobre o movimento social, salientando sua importância:
Quando as pessoas falam que `muito
pouco foi mudado na vida gay e lésbica', me parece que
vocês deveriam ter vivido naqueles anos para entender o quanto
mudou. Talvez houve mais mudança no nosso movimento social
em um curto período de tempo do que em qualquer outro. [1]
(DUBERMAN: 1997, 269)
Para o autor do aclamado livro Stonewall, o
argumento mais eficaz para exemplificar a mudança acima comentada
reside no desenvolvimento dos próprios estudos gays e
lésbicos nos últimos vinte anos. Esses estudos têm
ajudado a pensar a sociedade norte-americana contemporânea,
uma vez que "produzem informação básica de
enorme importância para todos." Entre as contribuições
efetuadas por esses estudos, Duberman destaca as seguintes :
... informação sobre
como a identidade é formada tanto a nível individual
como comunitário; informação sobre a relação
entre gênero e sexualidade; informação sobre a
natureza expressa do desejo "masculino" e "feminino" que centralmente
desafia noções padronizadas; informação
sobre como minorias culturais interagem com o mainstream; informação
sobre como grupos minoritários se tornam visíveis, fazem
suas reivindicações serem ouvidas, tornam sua presença
conhecida.(DUBERMAN: 1997, 272)
Neste momento do texto, gostaria de fazer um comentário
referente à expressão "minorias". Gays e lésbicas
são considerados como "minoria sexual" por irem de encontro
ao mainstream dito heterossexual. A citação seguinte
é de autoria de Herbert Daniel que, em seu livro Jacarés
e Lobisomens: Dois Ensaios sobre a Homossexualidade,
enfoca essa questão por um outro ângulo:
A existência da "minoria
homossexual" não é apenas a forma da repressão,
mas o próprio conteúdo da repressão. Não
é por serem oprimidos que os homossexuais se tornam uma minoria.
Eles se tornam homossexuais por serem inventados, moldados, enquanto
minoria. (MÍCCOLIS e DANIEL: 1983, 55)
O conceito de minoria homossexual enquanto conteúdo
da repressão defendido pelo militante gay brasileiro
desvela a formação da mentalidade vigente desde o século
XIX sobre a sexualidade. Cunhar os termos "homo/heterossexual" contribuiu,
sem sombra de dúvida, para a invenção desta "minoria",
pois possibilitou a propagação, por via lingüística,
da idéia arraigada da heterossexualidade enquanto essência
normativa atemporal. No artigo "'Homosexual' and `Heterosexual': Questioning
the Terms", Jonathan N. Katz chama a atenção para a
necessidade de historicizar esses termos binários:
Após investigação
histórica descobrimos que "homossexual" e "heterossexual",
os termos que nós modernos usamos sem questionar, são
criações bastante recentes. Embora apresentadas a nós
como palavras que marcam um fato eterno da natureza, os termos "heterossexual"
e "homossexual" constituem a ética sexual normativa, uma ideologia
sexual-política, e uma forma historicamente específica
de categorizar as relações entre os sexos. (KATZ: 1997,
178)
Creio, porém, que o escritor brasileiro Herbert
Daniel seja ainda mais perspicaz ao acentuar o caráter social
da homossexualidade:
Esta é uma primeira hipótese
a ser guardada: a homossexualidade não pode ser considerada
como uma "diferença sexual" (uma qualidade sexual), mas é
fundamentalmente uma diferença social, uma variante do comportamento
sexual, estabelecida como critério para definir uma categoria
social (o homossexual).(MÍCCOLIS e DANIEL: 1983, 47)
Se os termos binários não atendem à
pluralidade dos desejos eróticos dos indivíduos já
que foram criados para "categorizar as relações entre
os sexos", torna-se pertinente considerar a homossexualidade
como uma diferença social e não sexual.
A sociedade norte-americana sofreu uma série de transformações
marcantes entre os anos 60 e os anos 90. Essas transformações
também afetaram o tratamento da questão da sexualidade.
Seguem depoimentos de jovens ativistas que se envolveram naquela década
com a militância gay assim como outros nos dias de hoje.
Cumpre esclarecer que esses depoimentos contêm alguns elementos
que irão nortear este texto.
No livro My American History: Lesbian and Gay Life during the
Reagan/Bush Years, a escritora lésbica Sarah Schulman
dá seu testemunho de ativista contemporânea. No artigo
intitulado "Why I'm Not a Revolutionary", Schulman procura estabelecer
uma ponte entre o passado da esquerda norte-americana, conhecido por
Old Left, e o momento presente:
No vocabulário da old
left, a razão de viver era a revolução. Na
nossa época, entretanto, nós fazemos parte da primeira
geração que não acredita que o futuro será
melhor. Nós temos medo do futuro. Nós vivemos em um
profundo estado de nostalgia. Conceitos como revolução
somente tornam-se lembranças da impossibilidade de mudança.
A Revolução veio representar tudo que não
podemos ter e não podemos alcançar. Nós sabemos
que não faremos uma revolução; então,
temos que nos perguntar agora se há alguma coisa que podemos
fazer. No meu caso, sou favorável à resistência
ao invés do conceito de revolução. Um ato de
resistência todo dia é algo que acredito podemos incorporar
em nossas vidas. (SCHULMAN: 1994, 258)
Citando como exemplo de resistência a ação
do afro-americano Derrick Bell, professor de direito de Harvard que
se recusou a lecionar enquanto a universidade não contratasse
para o quadro permanente da Faculdade de Direito uma mulher negra,
a ativista lésbica norte-americana prossegue seu argumento:
Bell acredita, como resultado de
suas experiências de vida, que o racismo é uma instituição
permanente da vida norte-americana. É uma característica
inerente à cultura norte-americana e forma uma parte crucial
da vida econômica, social, e política da nação.
E, certamente, esta interpretação pode ser também
aplicada à homofobia e sexismo, a fronteira derradeira.(SCHULMAN:
1994, 259)
No final dos anos 60, Stonewall tornou-se emblemático
do desbravar da fronteira sexual quando gays e lésbicas
foram para as ruas lutar contra o preconceito e a favor da liberdade
sexual. Entretanto, Stonewall não foi capaz de eliminar a homofobia
nem o sexismo que também podem ser considerados como "característica
inerente à cultura norte-americana". Assim como Schulman,
gostaria de afirmar que a fronteira derradeira está localizada
para além da homofobia e do sexismo, onde essas "hierarquias
de dominação" não encontram mais espaço.
Indo mais além, também gostaria de indagar se, no século
XXI, seremos capazes de viver a sexualidade sem fronteiras?
Estabelecendo uma contraposição com as citações
acima, devo acrescentar o depoimento de Jim Clifford, atual professor
da New York University, e que se filiou ao GFL (Gay Liberation Front)
em 1969:
Nós realmente pensávamos
que iríamos mudar o mundo: o mundo iria mudar e nós
iríamos testemunhar isso. Nós iríamos de alguma
forma transformar a sociedade em um novo lugar onde racismo e sexismo
não existiriam, onde as pessoas poderiam amar quem quisessem.
Pode parecer ingênuo e idealista, ... Nós éramos
completamente engajados.(DUBERMAN: 1997, 335)
Digno de nota é também o depoimento
de Allen Young, outro militante norte-americano que fez parte da geração
anterior a de Schulman, geração essa que se autodenominou
de New Left:
Nós, na New Left,
nos identificávamos como fazendo boa política, que queria
dizer aderir a uma certa perspectiva sobre questões como a
Guerra do Vietnã e o racismo, e, em menor proporção,
ao feminismo, que estava começando a emergir na cena pública.
Assuntos gay, apesar dos esforços do movimento em prol
de seus direitos, não faziam parte do que considerávamos
boa política naqueles dias.(DUBERMAN: 1997, 332-333)
No entanto, quando decidiu assumir a identidade gay,
tanto sua posição como sua visão mudaram:
Houve uma mudança radical
para mim quando ser gay tornou-se central em minha vida e para
minha identidade. E a política incorporou-se a isso; as questões
que eram pertinentes a nós gays e lésbicas estavam
na agenda da New Left antes de estarem em qualquer outra agenda
política. E a New Left dominava a imprensa underground,
e foi lá que as idéias de liberação gay
foram expressas pela primeira vez na imprensa. (DUBERMAN: 1997, 333)
"No passado, acreditávamos que visibilidade e direitos civis
eram as chaves para transformar as vidas de gays, de pessoas
de cor e de mulheres neste país", afirma Sarah Schulman
(SCHULMAN: 1994, 259).
Não custa lembrar que, nos anos 60, com a lei
dos Direitos Civis de 1964, os afro-americanos conquistaram sua cidadania
assim como a de outros segmentos sociais. Todavia, nos anos 90, tanto
os gays como, principalmente, as lésbicas ainda lutam
por visibilidade e contra o estigma da diferença.
Para construir um diálogo interdisciplinar que tenha por objetivo
dar visibilidade à luta da "minoria social", passo à
análise do conto "The Penis Story" da mesma autora. Enquanto
escritora, Sarah Schulman é conhecida por sua habilidade em
trabalhar a narrativa pós-moderna. Sob o olhar de Sally Munt,
"... pode-se dizer que Schulman constrói a identidade lésbica
em torno da paisagem moderna urbana - mutável, fluida, complexa
e fragmentada ..."(MUNT: 1992, 35)
O conto em questão brinca com o absurdo ao mesmo tempo que
desconstrói categorias como a homofobia e o sexismo. Ann, a
protagonista lésbica, sente-se atraída por Jesse que,
por sua vez, estava à espera de um homem para salvá-la.
Ao discutirem sobre a impossibilidade de um envolvimento sexual entre
as duas, a protagonista indagou: "Então o que está
faltando para você se nós duas somos mulheres? É
alguma coisa concreta de um homem, ou é a idéia de um
homem?"(SCHULMAN: 1994, 271) A resposta recaiu na segunda
opção. No meio da noite, Ann retornou a seu apartamento
localizado na cidade de Nova Iorque, decepcionada com a homofobia
estampada no rosto de Jesse. Porém, ao acordar na manhã
seguinte, descobriu que tinha um pênis. Sem entrar em pânico,
ela fez uma série de adaptações na sua rotina
diária, desde o uso do banheiro até novas formas de
relacionamento. Contudo, possuir o órgão sexual masculino
não transformou Ann em um homem ou em um transexual:
Ela era uma lésbica com
um pênis. Ela não era um homem com seios. Ela era uma
mulher. Isso não era androginia, ela nunca gostou dessa palavra.
As mulheres foram sempre completas para Ann, não metade de
algo esperando ser completado. (SCHULMAN: 1994, 273)
Diferente de Jesse que não conseguia livrar-se
de valores e conceitos impostos pela sociedade patriarcal, Ann acreditava
na integridade da mulher, no poder da mulher. Seu lesbianismo a havia
afastado das imposições culturais do mainstream ,
levando-a a percorrer "a road not taken" [2].
Quando sua menstruação ocorreu, ela usou durante três
dias e meio luvas pretas de plástico para conter o fluxo menstrual
que escorria pelos dedos. Após a discussão com sua nova
amante sobre seu relacionamento frustrante com Jesse, Muriel levou-a
a contemplar a escultura intitulada "Womanhouse" de Louise Bourgeois
no Museu de Arte Moderna. "Ann passou a maior parte da tarde
na frente da obra de grande proporção, um oceano colérico
de pênis negros, que erguiam-se e caíam, arrastando uma
pequena caixa em forma de casa."(SCHULMAN: 1994, 278) Graças
à contemplação dessa obra de arte, Ann foi capaz
de não apenas entender Jesse como também acabar seu
relacionamento. Diante dos eventos ocorridos e, principalmente, das
suas conclusões pessoais, a protagonista decidiu consultar
médicos com o intuito de submeter-se a uma cirurgia transexual.
Insatisfeita com suas experiências físicas e emocionais
em decorrência de sua nova condição de "lésbica
com um pênis", a protagonista desejava recuperar sua condição
feminina. O método que elegeu foi uma reunião de suas
ex-amantes em uma festa na qual tentaram reconstituir sua vagina,
fazendo uso de suas lembranças. O conto termina com a esperança
de que ao ter de volta seu órgão sexual feminino, a
protagonista recuperaria também sua integridade física
e moral:
"Ann queria uma coisa, ser uma
mulher completa de novo. Ela nunca quis ser mutilada ao ser amputada
de si mesma, e ela sabia que seria uma coisa difícil a ser
conquistada, mas Ann estava disposta a tentar." (SCHULMAN: 1994, 280)
Minha proposta é considerar o conto de Sarah
Schulman como uma forma de resistência advogada pela escritora/ativista,
já que acredito que a literatura também permite o exercício
da resistência política. Sob minha ótica, "The
Penis Story" abre espaço para a discussão da sexualidade
em sua relação com o poder. O lesbianismo radical que
emana do conto questiona a incorporação de características
masculinas sejam físicas ou relativas a comportamentos sociais.
Ademais, esse lesbianismo não deseja compartilhar do poder
falocrático (simbolizado pela aquisição do pênis).
Assim como Ann pontua, a solução estaria no retorno
da mulher com sua sexualidade plena. A reconstrução
da vagina aponta, a meu ver, para uma recuperação da
condição da mulher não apenas física mas
também, e mais importante, social e política que foi
aniquilada na sociedade patriarcal.
Gostaria de finalizar meu texto, citando
mais uma vez o historiador Martin Duberman que sublinha a relevância
dos estudos gays e lésbicos para o entendimento da sociedade
norte-americana contemporânea:
Acima de tudo, penso que os estudos
gays e lésbicos são importantes para todos porque
eles contam uma história de sobrevivência, uma história
de como indivíduos - e depois "um povo" - que é "diferente",
desenvolveu estratégias para enfrentar a opressão. Acredito
que todos nós - independente de nossa preferência
sexual - somos profundamente idiossincráticos - e que todos
nós podemos, portanto, aprender com a experiência de
qualquer grupo marginalizado que tem conseguido resistir numa sociedade
conformista, e até mesmo exigir respeito por sua diferença.
(DUBERMAN: 1997, 272)
Referências Bibliográficas:
KATZ, Jonathan Ned. " `Homosexual' and `Heterosexual':
Questioning the Terms". In: DUBERMAN, Martin, ed. A Queer World.
New York: New York University Press, 1997. p. 177-180.
MÍCCOLIS, Leila e DANIEL, Herbert. Jacarés e Lobisomens:
Dois Ensaios sobre a Homossexualidade. Rio de Janeiro: Achiamé,
1983.
MUNT, Sally. " `Somewhere over the Rainbow'... Postmodernism and the
Fiction of Sarah Schulman". In: MUNT, Sally, ed. New Lesbian Criticism:
Literary and Cultural Readings. New York: Harvester Wheatsheaf,
1992.
p. 33-50
"Reminiscences of Pre-Stonewall Greenwich Village: A Symposium with
Jim Clifford, Martin Duberman, Luvenia Pinson, Bebe Scarpi, Martha Shelley,
and Allen Young". In: DUBERMAN, Martin, ed. Queer Representations:
Reading Lives, Reading Cultures. New York: New York University
Press, 1997. p. 331-339
SCHULMAN, Sarah. "The Penis Story". In: NESTLE, Joan and HOLOCH, Naomi,
ed. Women on Women: An Anthology of American Lesbian Short Fiction.
New York: Penguin, 1994. p. 271-280
SCHULMAN, Sarah. "Why I'm Not a Revolutionary". In: ---. My American
History: Lesbian and Gay Life during the Reagan/Bush Years. New
York: Routlege, 1994. p. 258-264
"Twenty-five Years after Stonewall: Looking Backward, Moving Forward.
A Symposium with Cheryl Clarke, Martin Duberman, Jim Kepner, Karl Bruce
Knapper, Joan Nestle, and Carmen Vazquez." In: DUBERMAN, Martin, ed.
A Queer World. New York: New York University Press, 1997. p.
262-279
[1] Minha
tradução assim como todas as demais deste artigo.
[2] Referência ao poema de Robert
Frost "The Road Not Taken".
Eliane
Borges Berutti é professora adjunto
de Literatura Norte-Americana na Universidade do Estado do Rio de Janeiro,
onde coordena o Curso de Especialização em Literaturas
de Língua Inglesa e o setor de Literatura e Cultura Norte-Americana.
Sua pesquisa atual tem como título "Alteridade, gênero
e sexualidade: gays e lésbicas no conto norte-americano
contemporâneo".
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