MACHADO DE ASSIS E A LITERATURA INGLESA:

um caso mal resolvido da crítica brasileira


Luiz Eduardo Meneses de Oliveira
UFS - Universidade Federal de Sergipe


RESUMO
Este ensaio pretende verificar o modo pelo qual a crítica brasileira tem se manifestado a respeito das influências da literatura inglesa sobre Machado de Assis (1839-1908). Para tanto, serão examinados os dois únicos textos críticos que tratam mais detalhadamente da questão: "Machado de Assis", de Sílvio Romero, e "Machado de Assis: influências inglesas", de Eugênio Gomes.

ABSTRACT

The intention of this article is to check the way the Brazilian critics have dealt with the question of the influences of English literature on the work of Machado de Assis (1839-1908). To do so, the two most significant critical texts about the issue ("Machado de Assis", by Sílvio Romero and "Machado de Assis: influências Inglesas", by Eugênio Gomes) will be here examined and commented.

 



A chamada fase realista de Machado de Assis (1839-1908), inaugurada com a publicação das Memórias Póstumas de Brás Cubas, em 1881, sempre esteve associada ao influxo dos humoristas britânicos que, juntamente com certos filósofos pessimistas, teriam exercido influências estéticas e espirituais no escritor brasileiro. Com efeito, o narrador daquele romance, no prólogo intitulado Ao Leitor, ao revelar a adoção da forma livre de um Sterne ou de um Xavier de Maistre, fala da possível introdução de algumas rabugens de pessimismo na obra (Assis, 1992: 16). A crítica, talvez motivada por tais pistas, não hesitou em caracterizá-la com o humour sterneano ou com os seus elementos pessimistas, construindo assim, a despeito da escassa fundamentação analítica e da solene discordância de Sílvio Romero (1851-1914), consensos que se reproduzem até na historiografia recente da literatura brasileira, com em De Anchieta a Euclides, onde Brás Cubas é considerado um romance sterniano (Merquior, 1979: 166), ou na História Concisa da Literatura Brasileira, em que, a propósito de alguns poemas que teriam precedido a segunda fase do autor, alude-se o pessimismo cósmico de Schopenhauer e Leopardi (Bosi, 1994: 168).

Interessa-nos, neste ensaio, verificar o modo pelo qual a crítica brasileira, nos raros momentos em que tratou mais detalhadamente da questão, se manifestou a respeito das influências da literatura inglesa sobre o grande mestre das letras nacionais. Para tanto, serão examinados os dois únicos textos críticos que ultrapassam os limites do mero assentimento em relação ao referido consenso: "Machado de Assis", capítulo IV do tomo quinto da História da Literatura Brasileira de Sílvio Romero - que é a condensação de um ensaio originalmente publicado em 1897 - e "Machado de Assis: influências inglesas", refundição, feita em 1949, de um estudo de Eugênio Gomes (1897-1972) publicado pela primeira vez dez anos antes.

Movido por um indisfarçável desejo de desqualificar o autor das Memórias Póstumas de Brás Cubas, já consagrado na época, Sílvio Romero foi o primeiro - e talvez o único - a discordar do humorismo e do pessimismo de Machado de Assis, sendo por isso o pioneiro no trato da questão das influências não só dos humoristas britânicos, mas também dos filósofos pessimistas. Para o ousado evolucionista sergipano, o humour só podia ser verdadeiro, ou genuíno, quando se confundia com a índole do escritor, que por sua vez era produto da psicologia, da raça e do meio do seu povo:

O temperamento, a psicologia do notável brasileiro não eram os mais próprios para produzir o 'humour', essa particularíssima feição da índole de certos povos. Nossa raça em geral é incapaz de o produzir espontaneamente (Romero, 1954: 1629).

O que havia no notável brasileiro, segundo o crítico, era o elemento cômico. Este, mais facilmente produzido por nossa raça, nunca poderia ser confundido com o humorístico, uma vez que o cômico ri pelo gosto de rir, porque em tudo sabe farejar o grotesco, enquanto o humorista ri com melancolia, quando devia chorar; ou chora com chiste, quando devia apenas rir (1954: 1629)
.
Para assegurar os seus argumentos, Sílvio Romero contrapõe alguns dados biográficos de Lawrence Sterne (1713-68), filho de militar inglês, ao sensato, manso, criterioso e tímido Machado, asseverando a profunda diferença entre o autor de Brás Cubas e o de Tristram Shandy. Quanto a uma possível relação entre as obras, não há qualquer referência, limitando-se o crítico à menção das cenas mais famosas criadas pelo romancista inglês, no dizer dos mestres, verdadeiras obras-primas, e à afirmação da disparidade entre as personagens de Sterne, criações cheias de realidade, e as do escritor brasileiro, que jamais ideou nada que lembre os dois irmãos Shandys.

Sílvio Romero se utilizou dos mesmos pressupostos para descartar o pessimismo de Machado de Assis. O nosso romancista, não descendendo das raças arianas, não poderia ser um desencantado à maneira dos verdadeiros pessimistas:

Nós brasileiros somos faladores, desrespeitadores das conveniências, assaz irrequietos, até onde nos deixa ir nossa ingênita apatia de meridionais, não somos pessimistas, nem nos agrada o terrível desencanto de tudo, sob as formas desesperadoras dos nirvanistas à Buda ou à Schopenhauer (1954: 1631).

Não se trata, portanto, de uma crítica propriamente literária, pois o que está em causa não é a obra do autor brasileiro em suas relações com a do romancista inglês, mas simplesmente a sua suposta personalidade, no que tem de inferior e incompatível com a de Lawrence Sterne. Ao que tudo indica, Sílvio Romero nunca lera o autor de Tristram Shandy, sendo esse talvez o motivo pelo qual não desenvolve suas afirmações, podendo-se supor que as sua opiniões a respeito de Sterne fossem adquiridas de segunda mão.

Em dissertação de mestrado defendida em 1995 no Departamento de Língua e Literaturas Inglesa e Norte-Americana da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, José Garcez Ghirardi, comentando um levantamento breve, mas atento das referências à literatura inglesa por parte dos nossos primeiros críticos (Sílvio Romero, José Veríssimo e Araripe Jr.), mostra que as menções não decorriam de um exame específico dos textos ingleses, pois serviam de simples ilustração de argumentos em que as obras e autores eram exemplares, unanimemente aceitos, de boa literatura européia. Tais referências, via de regra, eram emprestadas da Histoire de la Littérature Anglaise, de Hippolyte Taine (1828-93):

Sua História da Literatura Inglesa, em francês, tornou-se leitura obrigatória entre os eruditos do Brasil no final do séc. XIX, uma vez que grande parte do nosso debate literário girava em torno do seu método crítico (Ghirardi, 1995: 16).


É também curioso notar que os autores ingleses estudados - ou simplesmente mencionados - pela nossa primeira crítica sejam os mesmos analisados por críticos franceses como Victor Hugo (1802-85), Renan (1823-92), Sainte-Beuve (1804-69), Baudelaire (1821-67) e o próprio Taine, numa coincidência tanto de córpus quanto de julgamento: não se encontrará qualquer reflexão brasileira sobre qualquer autor inglês que já não se achasse analisado, anteriormente, por algum crítico na França (1995: 20).

Em 1939, no entanto, muito antes do que o autor da referida dissertação de mestrado chamou de "Ascensão da Crítica Anglo-Americana no Brasil", a propósito da adoção do new criticism norte-americano por Afrânio Coutinho, em Correntes Cruzadas (1953), foi publicado o estudo Influências Inglesas em Machado de Assis, de Eugênio Gomes. Ampliado e acrescido de novos capítulos, o texto foi compilado, dez anos depois, na coletânea Espelho Contra Espelho: estudos e ensaios.

Logo na introdução do seu estudo, o crítico baiano entra em confronto com os julgamentos de Sílvio Romero, alegando a mediação francesa das opiniões do valente polemista sergipano a respeito da influência do humour britânico na obra de maturidade - e mesmo no espírito - de Machado de Assis: pelos modos, não lera o malicioso criador de Tristram Shandy; conhecia-o simplesmente através de comentários franceses (Gomes, 1949: 11).

No final da mesma introdução, Eugênio Gomes faz alusão a um caso até hoje mal resolvido pela crítica brasileira: Machado de Assis teria assimilado as impressões e os influxos de alguns humoristas anglo-saxônios direta ou indiretamente? O autor expõe três opiniões: a sua própria, segundo a qual Machado teria entrado em contato direto com o idioma inglês em 1878, ano de publicação de Iaiá Garcia, no que argumenta:
Não parece circunstância irrelevante a da heroína do romance sempre às voltas com as suas lições de inglês... Quem sabe se não era o escritor que estava a tomá-las? (1949: 11-12); a de Luís Delfino, para quem Machado teria travado relações espirituais com os mestres do humour britânico só em 1882, época em que tomava aulas de inglês com o mesmo professor de Capistrano de Abreu e Vale Cabral; e a de Lúcia Miguel Pereira, que afirma que o escritor brasileiro teria se familiarizado com os ingleses dez anos antes de se tornar humorista (1949: 14).

Tal problema, apenas levantado, é logo descartado pelo autor, que está mais preocupado em demonstrar os traços evidentíssimos do humour britânico na obra de Machado de Assis, não importando se as fontes inglesas lhe vieram direta ou indiretamente. Assim, o seu estudo analisa a influência - literária ou espiritual - de sete autores ingleses, os quais são examinados em capítulos às vezes longos e vigorosos, como os dedicados a Shakespeare e a Sterne, ou curtos e rasteiros, como os que tratam de Charles Lamb e Thackeray.

O primeiro influxo a ser demonstrado é o do bardo inglês, fazendo o autor um minucioso levantamento das citações e referências a Shakespeare (1564-1616) na obra de Machado de Assis. Como não poderia deixar de ser, a criação daquele dramaturgo que mais se faz presente nos contos, romances e crônicas do escritor brasileiro é a peça Hamlet, cujo monólogo to be, or not to be, no dizer de Eugênio Gomes, estava sempre no seu pensamento.

A começar por um conto intitulado "To be, or not to be" e por uma tradução em verso do mesmo monólogo atribuída a Machado, além de várias citações da peça em crônicas suas, o crítico mostra sinais da famosa tragédia em várias partes da obra de ficção do autor de Quincas Borba. As referências, contudo, na sua maioria, são meros clichês shakepeareanos, chamados por Eugênio Gomes de condimentos de erudição, dentre os quais se sobressai o supracitado monólogo e a famosa fala de Hamlet a Horácio: Há mais mistérios entre o céu e a terra do que sonha a vossa filosofia - acrescida (inexplicavelmente, segundo o crítico) do adjetivo antes de filosofia -, que lhe serve, aliás, de epígrafe no conto "A Cartomante". Outra cena da peça recorrente na sua obra é a do cemitério, no enterro de Ofélia, que aparece numa crônica de 1894, acerca de um pesadelo resultante da leitura do ato final de Hamlet, e em passagens de Esaú e Jacó e do Memorial de Aires.

Para o crítico, o "humour macabro de Hamlet, traduzido por suas concepções e imagens da morte, esteve presente em toda a fase de maturidade de Machado de Assis, fato que seria comprovado por um suposto dado biográfico: Afirmou-se que Machado de Assis levara consigo um exemplar de Hamlet, quando foi convalescer de grave enfermidade em Nova Friburgo, por volta de 1878 (1949: 22).

Quanto às outras peças de Shakespeare, o mesmo tipo de método é adotado, e assim são encontradas inúmeras menções, nos romances da segunda fase de Machado, ao ciúme de Otelo, à cena das bruxas de Macbeth e até a algumas personagens de A Tempestade. Todavia, a mais curiosa referência, a nosso ver, se encontra no conto "Curta História", no qual a jovem Cecília, depois de assistir a uma representação de Romeu e Julieta por uma companhia italiana, tem a sua personalidade transformada. A curiosidade reside no fato de podermos inferir, a partir de tal conto e de algumas referências em suas crônicas ao ator Rossi (?), -- A quem o público da metrópole brasileira de então deveu as melhores interpretações de Hamlet, Otelo e outras personagens do gênio inglês, nesta banda do Atlântico (1949: 17) -- a fonte de onde se abeberou o nosso romancista maior: as montagens teatrais de sua época. Vale a pena, a esse respeito, lembrar de uma passagem do conto "Auroras sem Dia", citada por Eugênio Gomes, na qual o personagem Luís Tinoco é descrito como um sujeito que

Respigava nas alheias produções uma coleção de alusões e nomes literários, com que fazia as despesas de sua erudição, e não lhe era preciso, por exemplo, ter lido Shakespeare para falar do "to be or not to be", do balcão de Julieta e das torturas de Otelo (1949: 16).


A próxima influência a ser detectada é a de Jonathan Swift (1667-1745), que, segundo o autor, teria se manifestado em dois contos de Machado: "O Imortal" e "O Alienista". O primeiro seria inspirado pelo capítulo X das Gulliver's Travels, especialmente em relação à sua temática: o suplício da vida eterna, com a diferença de que o escritor brasileiro exprime uma visão da vida mais desenganadora que o próprio Swift... (1949: 33). O segundo, por sua vez, teria como modelo o ensaio "A serious and useful scheme to make an hospital for incurables", sendo prova de tal inspiração, dentre outras, o fato de que:

A subvenção da comuna de Itaguaí para a Casa Verde, o manicômio de Simão Bacamarte, consiste no produto de uma taxa que, tal qual o imposto sugerido por Swift, incidindo sobre o artigo mortuário, visa indiretamente à vaidade humana (1949: 35).

Eugênio Gomes não deixa de salientar que a sátira de "O Alienista" vai mais longe que a de Swift, pois mistura e confunde, fazendo-os desaparecer, os limites da razão e da loucura (1949: 37). Nada, porém, é comentado a respeito do acesso que Machado teve à obra de Swift, cujas Viagens de Gulliver só tiveram tradução brasileira em 1888.

No capítulo dedicado a Henry Fielding (1707-54), o autor deixa de lado o "humour" e passa a indicar as influências formais do romance The History of Tom Jones, a Foundling na concepção e estrutura das Memórias Póstumas e de Quincas Borba. A essa altura, o crítico é muito convincente ao relacionar o prólogo do narrador Brás Cubas com o capítulo sobre prólogos que abre o livro XVI de Tom Jones, no qual é ressaltado o mérito da brevidade dos prólogos e capítulos. Quando trata das inovações técnicas absorvidas por Machado, lembra o método de divisão de capítulos e livros exposto no capítulo inicial do livro II do romance inglês, que se vê refletido no capítulo CXII de Quincas Borba, além das famosas pausas do narrador e da extravagância dos títulos. Ainda uma vez, a relação é traçada sem qualquer referência a dados concretos, ausência que é compensada quando o crítico passa a falar da influência de Sterne.

Aqui, o autor se mostra preocupado com o modo pelo qual se deu a assimilação das renovações técnicas introduzidas pelo romancista inglês no célebre e pouquíssimo lido Tristram Shandy, admitindo a hipótese de que Machado tenha apreendido aquele tipo de narrativa entrecortada de observações e digressões através da leitura das Viagens na Minha Terra, do português Almeida Garret (1799-1854), que por sua vez teria tomado conhecimento de Sterne lendo Voyage autour de ma Chambre, do francês Xavier de Maistre (1763-1852). A sugestão é seguida à risca por José Guilherme Merquior:


Romance sterniano [Brás Cubas], redigido pela prosa errante e caprichosa de um leitor que as Viagens na Minha Terra (1846) de Almeida Garret levaram possivelmente ao Voyage autour de ma Chambre (1795) de Xavier de Maistre, e este, por sua vez, ao seu próprio modelo - Sterne.(Merquior, 1979: 166)


Os traços sterneanos encontrados por Eugênio Gomes em Brás Cubas são vários: o truque dos pontinhos; o ato de advertir, burlar ou menoscabar o leitor; a intercalação e o desmembramento de capítulos - técnica, aliás, não adotada por Garret - e até uma curiosa relação entre Brás Cubas e Tristram Shandy: o primeiro narra sua história depois que morre, enquanto o segundo começa a relatar suas memórias antes de nascer.

Para o crítico, ao invés da sentimentalidade, absorvida por Garret, Machado optou por assimilar o seu humour, o que pode ser indicado pelo número de referências e alusões que o escritor brasileiro faz à famosa cena da mosca daquele romance que, a seu ver, aparece transformada em borboleta no Brás Cubas. Outro aspecto do humour sterneano seria representado pela sovinice ou pela generosidade intencional ou provocada à força de lisonja, que também podem ser observadas em Brás Cubas e em certas passagens de Esaú e Jacó. O modelo, nesse caso, seria o romance Sentimental Journey, apesar de o crítico reconhecer que o humour de Sterne reside mais no coração que no cérebro, enquanto o de Machado aparece eivado, na transplantação, pela tacanhice do espírito de interesse e proveito imediato (1949: 57).

Perfeitamente dispensável é o capítulo dedicado a Charles Lamb (1775-1834), que ocupa um espaço pouco maior que meia página. Além da vaga influência do humour e do estilo leve, límpido e conciso, que entendemos poder ser atribuída a qualquer escritor, o crítico encontra apenas dois indícios do autor dos Essays of Elia na obra machadiana: a sua lembrança no conto "O Lapso", a propósito da sua teoria pela qual a humanidade se divide em duas partes - a dos que emprestam e a dos que pedem emprestado (1949: 58), e a supressão do seu nome do prólogo das Memórias Póstumas de Brás Cubas, presente na primeira edição ao lado dos de Sterne e Xavier de Maistre. Quanto ao ensaio de onde foi extraída a teoria de Lamb, "The Two Races of Men", nada é declarado a respeito de sua circulação nesta banda do Atlântico.

Quando são examinados os influxos de William Makepeace Thackeray (1811-63), o autor surpreende ao ver numa obscura novela, Lovel the Widower, não só a sugestão da idéia da narração póstuma adotada em Brás Cubas, mas também alguns procedimentos formais utilizados pelo romancista brasileiro, como as interrupções reticenciosas ou as freqüentes logomaquias, sintomas da timidez, dos titubeios e da pusilanimidade do narrador Carlos Batchelor, precursor inglês do famoso herói machadiano.

Bem mais convincente é o capítulo dedicado a Charles Dickens (1812-70), último do estudo. O influxo do célebre romancista vitoriano, segundo o crítico, se manifesta precisamente na caracterização e no arranjo de certas situações de Dom Casmurro, como havia já intuído, na introdução à tradução brasileira do estudo do alemão Wilhelm Giese sobre Machado de Assis, de 1927, o crítico sergipano João Ribeiro. Para Eugênio Gomes, a caricatura moral que se verifica em Brás Cubas dá lugar, no Dom Casmurro, à caricatura física, à deformação intencional e ao grotesco. A origem de tal mudança de atitude narrativa, e de humour, estaria na leitura - ou na assimilação indireta? - do romance David Copperfield, com o qual a história de Bentinho mostra espantosas afinidades, a começar pela convergência entre os dois narradores: ambos narram, em primeira pessoa, a história do primeiro namoro, são órfãos de pai, advogados e traídos pelo melhor amigo. Sem falar no sortilégio marinho que vincula Emília, primeiro amor de David, a Capitu, ou na morte dos traidores Steerforth e Escobar, que ocorre no mar.

O humour dickensiano, segundo Eugênio Gomes, estaria presente até mesmo no título do romance, denunciador do espírito exagerado e deformatório que percorre todo o livro: a humanidade que se move em Dom Casmurro é uma humanidade grotesca, projetada através de alcunhas, sestros, cacoetes, delírios e manias (1949: 77).

É bem possível que tais influências ou influxos não tenham se dado de maneira tão direta e transparente, como parece sugerir Eugênio Gomes no seu estudo, mesmo porque, como adverte Brás Cubas, em passagem citada pelo próprio crítico:


As próprias idéias nem sempre conservam o nome do pai; muitas aparecem órfãs, nascidas de nada e de ninguém. Cada um pega delas, verte-as como pode, e vai levá-las à feira, onde todos as têm por suas (1949:13).


Apesar da crítica ainda assentada sobre pressupostos biográficos, do caráter idealista e abstrato das categorias (humour, espírito, etc), da ausência de dados concretos (traduções, edições portuguesas, circulação de originais) e da problemática utilização do enredo ou de falas das personagens para corroboração de argumentos, o texto de Eugênio Gomes é muitas vezes pertinente e riquíssimo de informações, além de ser o pioneiro incontestável do estudo da literatura c
omparada no Brasil.


Referências Bibliográficas:


ASSIS, Machado de - Memórias Póstumas de Brás Cubas. 18. ed. São Paulo: Ática, 1992.
BOSI, Alfredo - História Concisa da Literatura Brasileira. 32. ed. São Paulo: Cultrix, 1994.
GHIRARDI, José Garcez - John Donne e a Crítica Brasileira: três momentos, três olhares - Dissertação (Mestrado em Letras) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências - Humanas, Universidade de São Paulo, 1995.
GOMES, Eugênio - Espelho Contra Espelho. São Paulo: Progresso Editorial, 1949.
MERQUIOR, José Guilherme - De Anchieta a Euclides. 2. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1979.
ROMERO, Sílvio - História da Literatura Brasileira. 5. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1954, 5. v.



Luiz Eduardo Meneses de Oliveira
,, é Graduado em Letras (inglês-português) pela Universidade Federal de Sergipe, Bacharel em Direito pela mesma instituição e Mestre em Letras pela Universidade Estadual de Campinas. Atualmente, é Professor Assistente de Literatura Inglesa na Universidade Federal de Sergipe.

 


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