Ficção Inglesa dos Anos 80/90.
Nélia Bastos
Universidade Federal Fluminense
Resumo:
Este texto enfoca a fusão das fronteiras do literário na narrativa ficcional dos anos 80/90, em uma Inglaterra múltipla e plural, a partir da trilogia de Nick Bantock: Griffin and Sabine (1991), Sabine's Notebook (1992), The Golden Mean (1993), publicada pela Chronicle Books, San Francisco, USA.
Abstract:
This paper focuses on the boundaries of British fiction in the 80's and 90's, in the trilogy of Nick Bantock: Griffin and Sabine (1991), Sabine's Notebook (1992), The Golden Mean (1993), publicada pela Chronicle Books, San Frnacisco, USA.
Oh! Maravilha! Quantas criaturas belas estão aqui! Como é bela a Humanidade!
Oh! Esplêndido mundo novo em que vivem tais pessoas!Shakespeare, A Tempestade, ato V, cena I
Em The Modern Bristish Novel (1994), Malcolm Bradbury assinala que a ficção produzida na Inglaterra dos anos 80/90, vai adotar um tom de nostalgia poetizada e retrospectiva, raramente privilegiando a experimentação e a originalidade. Nesta perspectiva, esta ficção surge da mistura de códigos, da apropriação e da intensa mutabilidade de formas que refletem a seu modo, a transformação internacional das artes; e na afirmação de Jameson, (1991) a esquizofrenia do nosso mundo contemporâneo. Acrescenta-se que Bradbury destaca a desconstrução e a desestabilização das chamadas fronteiras do literário e também, a das barreiras que cercam a literatura inglesa como traços marcantes. Assim, a narrativa dos anos 80/90, acompanha o clima de final do século, quando a experiência individual já não tem o que narrar de grandioso, o mercado da informação e da reprodução se acelera. Reafirma-se a letargia e o esgotamento do potencial criativo, conseqüência do imperialismo das leis de mercado, na era das grandes editoras que investem pesado em propaganda, prêmios literários e na televisão. Não mais escrito pelos Britons, este corpo vasto e crescente de escritos, dissolve a noção de Britishness e perde seu caráter auto-referencial, no momento em que os povos da periferia retornam para escrever a história e a ficção da metrópole. Definem-se como Migrants' Tales segundo Rushdie. Entretanto, observa Bradbury, quando colocado em confronto com o rítmo nervoso e a sintaxe veloz do romance norte-americano, com a magia do sul-americano, ou, ainda, com o vigor político do irlandês, este romance, perde em dimensão, perspectiva e construção (Bradbury, 1994:456).
A trilogia de Nick Bantock, Griffin and Sabine (1991), Sabines's Notebook (1992), The Golden Mean (1993), objeto deste trabalho, redescobre com alguma nostalgia o filão dos gêneros populares dos séculos XVIII e XIX: o do romance epistolar, o do romance de viagem e o do folhetim.
Bantock nasceu na Inglaterra em 1949 é ficcionista e ilustrador de livros pop-up. Vive atualmente em uma ilha perto de Vancouver, situando-se no universo dos escritores migrantes do Canadá. A trilogia foi publicada nos Estados Unidos pela Chronicle Books de São Francisco e no Brasil pela Marco Zero, com edição em Hong Kong. Curiosamente, a editora brasileira, na indicação de catálogo sistemático, classifica-a como ficção norte-americana. Em 1996, Bantock retoma o romance epistolar de forma paródica publicando, The venetian's wife, pela mesma editora. Uma história sensual sobre um explorador renascentista e uma metamorfose. O texto incorpora referências a personagens e lugares históricos, várias versões de cartas, e-mails, um manuscrito misterioso e vozes que se entrecruzam com outras vozes para deleitar e surpreender transcontextualizando ou, estabelecendo a diferença por meio de superposição textual, (Hutcheon, 1989:54).
Na trilogia, cada página é uma carta, um cartão novo, luxuosamente impressos. Sabine utiliza-se de letra manuscrita, firme e desenhada, em tinta quase dourada. Griffin escreve em letras de forma; ou à máquina, de velhos tipos redondos e miúdos. As pequenas incorreções são feitas à tinta, também preta.
Explicitamente intertextual, a trilogia de Bantock engendra uma espécie de narrativa evolutiva que parece querer acompanhar as indagações, as viagens em busca da plenitude do sentimento trágico da existência, na solidão e na incomunicabilidade; desde o início atiça o mistério dissimulado por figurações de uma realidade extra-literária (como signos do mundo físico concreto) e de uma força inconsciente e sem fronteiras ( como signos de anseios secretos) e mais, o mistério é insinuado entre símbolos outros, às vezes inacessíveis perfilados à porta de um tempo que na escuridão ignoramos.
A trilogia inicia-se com um cartão postal dirigido a Griffin Moss, ilustrador e dono da Griffon Cards que curiosamente mora na Yeats Avenue em Londres. Quem envia o postal é Sabine Strohem filatelista e também ilustradora que reside em uma ilha do Pacífico Sul e afirma vê-lo enquanto trabalha. A narrativa é um tableaux de vinhetas episódicas, frouxamente ligadas pela trama, onde tudo está em fluxo e se mescla à linguagem, à identidade e à busca. Estabelece-se uma ligação telepática entre eles. Um fenômeno perturbador que se inicia quando ela tem 15 anos e há uma espera de 13 anos antes que façam o primeiro contato. A trama recobre o tempo contemporâneo e as viagens ao passado, no presente e no futuro. O primeiro volume termina com as cartas e os cartões pregados no teto do estúdio vazio de Griffin e somos informados pelo narrador invisível que Griffin Moss desapareceu. No segundo volume, no momento do encontro com Sabine em Londres, Griffin foge, iniciando uma viagem à Irlanda (terra dos seus antepassados), à Grécia, Itália, Japão e Egito. Encerra-se com um cartão postal dela perguntando o que aconteceu, onde ele está e um apelo para que escreva. Em princípio se poderia pensar que as cartas e os postais se encaminham para o mesmo desígno, o encontro dos amantes, a solução dos mistérios. Ou ainda, que vieram para saciar os olhos em um trabalho de entrecruzamento de signos. No entanto, as cartas e cartões se caminham em direção ao desencontro, à transformação, abrem-se para um espaço novo e labiríntico, indefinidamente. Enraizados, inventados e cada passo, descobindo-se em uma face interna, secreta e mágica. No terceiro volume Griffin e Sabine marcam um encontro no Egito. O narrador volta à cena para informar-nos que por muitos anos não se ouviu falar de Griffin e Sabine, até que um jovem médico do Kenya recebe um estranho postal de uma desconhecida que se assina Sabine Strohem. Em meio a tudo isso, o leitor é um observador que se coloca como por acaso, ou intencionalmente, no perímetro das cartas e dos cartões para os quais banca o voyeur. O voyeurísmo presente na trilogia de Bantock surge da beleza sensual da imagem, das vozes que se encontram e se dissolvem, dos apelos hipnóticos aos nossos olhos que acentuam a relação do autor e do leitor com o texto; de todo leitor com todo o romance, de todo espectador com toda pintura, escultura , com o teatro e o cinema. Ou ainda, com o voyeurísmo que está presente na nossa leitura de biografias, da história, ou mesmo na nossa conversa com os outros. Em Bantock, o voyeurísmo surge em um espécie de nuvem de contemplação que nos envolve enquanto leitores, transportando-nos invisíveis pelo tempo e pelo espaço, em provocação astuta consciente e aberta, em fronteiras articuladas e não-articuladas em limites ultrapassados ou transgredidos. Invadindo as formas romanescas tradicionais, o autor articula seu jogo de ficção para seduzir o leitor a tirar as cartas e postais dos envelopes, esgueirar-se pelo seu conteúdo em uma leitura deslizante.
De um lado os elementos de aprisionamento (idealizações, as fantasias compensatórias) se desenvolvem em seu contrário (a consciência da solidão, da divisão interior). Quando intermedía as tensões entre o eu o outro, entre a ficção e a realidade, Bantock vai delinear os caminhos sofridos da busca do conhecimento, da transcendência, da beleza e da verdade; da vida e da morte; da beleza e da arte dos reflexos sensoriais.
Se você está lendo esta carta você existe. Se eu a inventei você existe. Se não escrevi as cartas e você as escreveu, você é real e estou louco. Se foi um lapso de memória, eu a conheço? O que está acontecendo? O que é fenômeno tangível? A história está muito intensa. Real demais. Você não existe. Eu a inventei. Estou apaixonado. O escritor é um inventor de palavras. A ficção é mais verdadeira que o fato. O fato é ficção. (Bantock: 1991)
É preciso acentuar que entre o texto das cartas, o dos postais e os da imagem visual, instala-se um sistema complexo que se concede independência a uma das categorias, obriga o, leitor a uma leitura que se amplia na fascinação do abismo. O jogo ficcional de Bantock abre perspectivas de reflexões sobre a evolução da narrativa contemporânea, sobre o mistério da ficção. Bantock escreve um romance multimídia, entre a literatura, a arte e a cultura pop, um romance além da estética, além dos jogos de linguagem, libertando a arte e a literatura das responsabilidades de mudar ainda, a sociedade e o mundo "Crossover fiction", na definição de Lodge, citado por Bradbury? (1994:379). Um romance luxuosamente impresso das fronteiras lingüísticas, de uma Inglaterra tensa, híbrida e internacionalizada? A produção literária e artística deste final de século situa-se com um supermercado estético que inclui o tradicional, o estilo inovador, o minimalismo e o excesso, a nostalgia e a profecia? Homi Babba afirma que as nações como as narrativas, perdem suas origens nos mitos do tempo e apenas na memória percebem com totalidade os seus horizontes. Sem dúvida, a escolha do poema do irlândes J. B. Yeats, "The Second Coming", (1920-1921) como epígrafe e fecho de cada volume da trilogia de Bantock, torna-se força simbólica crucial: Turning and turning in... the cerimony of inocence (Guffin and Sabine); The best lacks all connection... hardly are these words out when...; a vast image... troubles my sight, (sabine's Notebook) And what rougth beast... slouches to be born. (The Goldem Mean). Parece que a repetição quase fantasmagórica do poema questiona as fronteiras fragmentadas e ambivalentes do nosso mundo contemporâneo, fissurado entre o passado, a irracionalidade do presente e as interrogações deste final de século. Bantock mistura conexões e desconexões entre o ocidente e o oriente, e entre os valores abstratos e concretos da nossa civilização. O poeta Yeats questiona a dissolução da civilização do seu tempo, o final do ciclo da história e a aproximação de um outro ciclo que desliza para um futuro sem limites.
A viagem pelo passado reforça a idéia de que todas as épocas se entrelaçam e estão ligadas ao presente, de certa forma, restaurando o dinamismo das imagens, sugeridas como a Whirl wind of force and emotion. A imagem como vortex, na definição de Pound. O tema da viagem como solução e movimento, e retorno, aos labirintos de múltiplas entradas e saídas; abertura e demolição de fronteiras, vitória sobre espaços restritos; busca subjetiva no processo de criação. Para Griffin/Sabine, nada é simples, tudo é mistério; tudo que é impossível fica possível, forja sonhos, paixão, desejo. Sabine/Griffin, o corpo e a alma acordada e adormecida; a mulher o homem a vida e a morte; em misteriosa transformação. Os dois carregam símbolos de ressurreição e transposição de emoções eternizadas, mergulho no abismo - na Esfinge que governa as palavras retendo-as na garganta
Referências Bibliográficas:
BRADBURY, Malcolm. The Modern British Novel. London: Pengeen, 1993.
CONNOR, Steven. Theory and Cultural Value. Oxford: Blackwell, 1992.
HUTCHEON, Linda. The Canadian Postmodern: a study of contemporary English-Canadian fiction. Toronto: Oxford University Press, 1988.
_______________. The Politics of Postmodernism. London: Routledge. 1989.
_______________. A Theory of Parody: the teachings of twenties-century art forms. London: Routledge, 1985.
JAMESON, Frederic. "Mapeando o Pós-Moderno", In Hollanda, Heloísa Buarque de. Pós-modernismo e políitica. Rio de Janeiro: Rocco, 1991.
Nélia Bastos é Professora de literatura inglesa e literatura canadense contemporânea da Universidade Federal Fluminense (UFF).Diretora do Instituto de Letras da UFF. Pesquisa a narrativa contemporânea de língua inglesa, com destaque na ficção canadense escrita por mulheres.
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