SUPLEMENTANDO O CÂNONE E INSCREVENDO AS MARGENS: ANGELA CARTER E OS CONTOS DE BLACK VENUS E DE AMERICAN GHOSTS AND OLD WORLD WONDERS

 

Peonia Vianna Guedes
UERJ- Universidade do Estado do Rio de Janeiro
 

RESUMO:

 A leitura revisionista como prática de reapropriação caracteriza a cítica ea prática literária feministas contemporâneas. Em Black Venus (1985) e American Ghosts and Old World Wonders (1993), Angela Carter faz uma releitura de textos canônicos e de personagens emblemáticos de nossa cultura literária e popular, criando ou realçando personagens e vozes ausentes nas narrativas patriarcais.

 PALAVRAS-CHAVE: literatura inglesa contemporânea - conto pós-moderno - literatura revisionista.

 ABSTRACT:

 Contemporary feminist literary criticism and practice are characterized byrevisionist reading and reappropriation of canonical texts. In Black Venus(1985) and American Ghosts and Old World Wonders (1993), Angela Carter rewrites patriarchal texts and gives voice to characters traditionallyabsent from familiar narratives.

 KEY-WORDS: contemporary English literature - postmodern short story -revisionist reading

 

 

 Para a leitora feminista, não existe um enfoque literário inocente ou neutro:
toda interpretação é política. Modos específicos de ler inevitavelmente militam
a favor ou contra o processo de mudança. (Catherine Belsey e Jane Moore, The
Feminist Reader: Essays in Gender and the Politics of Literary Criticism)

Releituras feministas não substituem outras leituras, nem estabelecem o
significado ou valor definitivo dos textos. Como desafiam leituras que
reprimem ou suprimem a mulher, elas devem, também, coexistir e argumentar
com estas outras leituras, e, até mesmo, tomar emprestado alguns de seus
pressupostos. (Jane Miller, Seductions: Studies in Reading and Culture)

 

Uma das premissas da crítica literária feminista, surgida como disciplina acadêmica na década de 70, foi a necessidade de se fazer uma leitura crítica dos textos basilares da cultura ocidental, de se entender as pressuposições que, passadas através destes textos, ajudaram a formar as subjetividades de gênero. Conforme colocava Adrienne Rich em seu conhecido ensaio "When We Dead Awaken: Writing as Re-vision"), precisamos conhecer as narrativas do passado, mas conhecê-las de um modo diferente daquele pelo qual as conhecemos até hoje; não para passar adiante uma tradição, mas para romper seu jugo sobre nós (Rich,1979:p.35). A postura revisionista foi para as mulheres mais do que um capítulo da história cultural, a releitura crítica se constituiu no instrumento por excelência de sua sobrevivência intelectual. A releitura como prática de reapropriação, a noção de postergação do significado, o abandono da lógica binária, o declínio da metafísica da presença e de uma subjetividade única e estável, todos estes elementos caracterizam os novos rumos da prática e da crítica feminista.[1]

Em seu influente estudo das estratégias narrativas de escritoras do século XX, Writing Beyond the Ending: Narrative Strategies of Twentieth-Century Women Writers., Rachel Blau DuPlessis chama nossa atenção para a força ideológica dos scripts culturais. Baseando-se em intelectuais marxistas, como Raymond Williams, DuPlessis critica a falsa neutralidade das convenções literárias e demonstra como a prática narrativa pode ser utilizada para interferir e influenciar a construção psicossexual e sociocultural do feminino (DuPlessis: 1985:p. 2-4). A noção de uma identidade feminina única e estável, definida em oposição a um masculino universal e hegemônico começa, no final da década de 80, a ser repensada diante da constatação de que as diferenças entre as mulheres em termos de nacionalidade, raça, classe social, preferência sexual - entre outras tantas diferenças - superam a diferença singular entre masculino e feminino. A mulher passa, então, a ser pensada como múltipla e contraditória, e o enfoque da crítica feminista se desloca para as diferenças entre e nas mulheres, tese que Teresa de Lauretis propõe em Technologies of Gender: Essays on Theory, Film, and Fiction.[2]

Ainda nos anos 80, os trabalhos da crítica canadense Linda Hutcheon nos mostram como, no aspecto formal, o avançar sobre as fronteiras de gênero e a apropriação de formas populares aparecem em quase todas as obras contemporâneas significativas. Hutcheon sugere, também, que a arte pós-moderna tem procurado, auto-conscientemente e, na maioria das vezes, parodicamente, reconstruir suas relações com a história que a precedeu, como forma de lidar com o peso opressivo que ela exerce sobre os discursos e experiências contemporâneas, e, muitas vezes, como forma de contestar a interpretação patriarcal e eurocêntrica dessa história. Hutcheon argumenta que o texto pós-moderno problematiza todas as formas literárias anteriores, o prazer do texto sendo o de transgredir, confrontar, descentralizar ou, ainda mais radicalmente, dissolver as fronteiras genéricas tradicionais; ao fazê-lo, os textos pós-modernos abrem o cânone tradicional a formas culturais marginalizadas. Há também que considerar a preocupação do pós-moderno com a noção de marginalidade, com o estado que Hutcheon chama de ex-centricidade, com as vozes provenientes da história não-oficial. Ao atribuir valor ao que o centro denomina de margem ou de Outro, o pós-moderno desafia forças hegemônicas e pretensões de centralidade e universalidade. Em seu recente livro, Irony's Edge:The Theory and and Politics of Irony, Hutcheon argumenta que nos textos pós-modernos o uso da ironia como um discurso duplo ou dividido possibilita a subversão a partir do interior do próprio discurso. A ironia torna-se, no texto pós-moderno, uma estratégia retórica que permite ao autor trabalhar com os discursos existentes e contestá-los a um só tempo. Hutcheon criou o termo metaficções historiográficas, para caracterizar os textos que nos lembram ser a história e a ficção gêneros porosos e identificáveis como construções textuais. Este tipo de obra reinscreve o passado dentro da narrativa ficcional, com a finalidade de abri-lo ao presente e impedi-lo de tornar-se conclusivo e final. A oposição ficção/história, original/paródia não é totalmente desfeita, mas ampliada de forma problematizada.

As características e estratégias mencionadas acima, marcam os contos de duas antologias de Carter, publicadas em diferentes períodos, mas com muitos elementos em comum entre eles: Black Venus (Carter, 1985) e American Ghosts and Old World Wonders (Carter,1993) Os oito contos que foram reunidos em Black Venus haviam sido publicados separadamente em revistas e jornais entre 1977 e 1982, e talvez por este motivo não apresentem a mesma estrutura orgânica que caracteriza The Bloody Chamber, de 1974(Carter,1979). Entretanto, estas narrativas demonstram que o projeto de desmistificação das estruturas e narrativas patriarcais, no qual Carter havia se engajado na década de 70, não havia ainda chegado ao fim. Na verdade, com uma marcante preocupação em apagar as fronteiras entre história e ficção, entre o real e o imaginado, entre a história oficial e a das vozes que não chegamos a ouvir, entre os diversos gêneros literários, Carter faz uma releitura de textos canônicos e de personagens emblemáticos de nossa cultura literária e popular. Nesta coleção, Carter parece estar maliciosamente interessada em suplementar o cânone, escrevendo nas margens das narrativas familiares, fazendo ressuscitar - através da imaginação e da invenção - personagens e vozes ausentes nos textos canônicos. Ela insere episódios apócrifos nas biografias de Charles Baudelaire e de Edgar Allan Poe; cria cenários opressivos e repressivos para explicar os impulsos assassinos de Lizzie Borden; compõe uma versão da Moll Flandres de Defoe, vivendo entre os índios americanos; escreve um pré-script para Midsummer Night's Dream, de Shakespeare; reescreve Peter and the Wolf de um ponto de vista psicanalítico; cria um conto popular através do uso do pastiche, e um conto extremamente lírico, com elementos fantásticos
.
"Black Venus", o conto que dá o título à coleção, mostra como Carter trabalha de uma maneira subversiva a questão do Outro na narrativa. O conto focaliza e dá voz a Jeanne Duval, a amante negra de Charles Baudelaire, e a musa inspiradora de seu ciclo de poemas, "Black Venus", parte de Fleurs du Mal.[
3] Neste conto, Jeanne Duval é o sujeito da narrativa de Carter, como foi o objeto dos poemas de Baudelaire. O conto mistura uma série de meditações e especulações, com fragmentos de dados biográficos, e, até mesmo, com um verbete de dicionário sobre aves. Como figura histórica, Jeanne Duval é sempre definida em relação à Baudelaire e em subordinação quase total a ele. Carter tenta reverter estas prioridades, colocando Jeanne como centro do conto e sujeito de sua história. Baudelaire, por outro lado, é colocado como objeto, visto com irônico desdém por Jeanne:

o Paizinho não prestava atenção à música que sua sereia cantava; fixava o olhos negros, vivos e brilhantes, sobre a pele enfeitada da mulher, como se fosse um tolo, verdadeiramente extasiado (Carter, 1985.p.12).

Jeanne é descrita nas primeiras páginas do conto como uma tabula rasa (9), como se só existisse e fosse definida em relação a seu amante, sendo, portanto, menos que nada, uma negação de existência e identidade próprias:

Ela demonstrou um enfado sarcástico durante a dansa sensual inventada pelo Paizinho, observando de um jeito entediado mas fascinado, os elaborados reflexos no teto de seus muitos cordões de contas de vidro que ele lhe havia dado. Ela parecia uma fonte de luz, mas era uma ilusão, brilhava somente porque , ao se extinguir, o fogo iluminava as jóias de fantasia que ele lhe havia dado. Embora o olhar dele a tornasse luminosa, a sombra dele a fazia mais negra do que ela era de fato, a sombra dele poderia eclipsá-la por completo (Carter, 1985.p.12).

Para enfatizar ainda mais a falta de uma nome de família, de uma origem, existência e identidades próprias, a espoliação de uma língua e de uma cultura originais, o texto coloca:

Ao que parece, ninguém sabe em que ano Jeanne Duval nasceu ... . Além de Duval, ela também usava os sobrenomes de Prosper e Lemer, como se isso não tivesse nenhuma importância. O seu lugar de origem é um problema; os livros sugerem as ilhas Maurício no Oceano Índico ou São Domingos, no Caribe, faça sua escolha entre dois lados diferentes do mundo (seu país de origem é menos importante do que seria se ela fosse um vinho). ... Privada dos portões de bronze de Benin, dos seios de ferro das amazonas da corte do rei do Daomé, da sabedoria esotérica da grande Universidade de Timbuctu; ... Ela havia sido privada da história, era unicamente filha da colônia ... Era como se sua língua tivesse sido cortada e houvessem costurado uma outra, que não se ajustava bem (Carter, 1985.p.16-18)

. Jeanne Duval oferece uma visão extrema da mulher como Outro, como um ser desconhecido, amedrontador e, ao mesmo tempo, fascinante; uma musa, um fetiche, uma fantasia erótica que se oferece como espetáculo, e não uma mulher real:

A deusa do seu coração, o ideal do poeta, estava esplendidamente deitada na cama, num quarto sombriamente forrado de papel vermelho e preto; ele gostava que ela se tornasse um espetáculo, que oferecesse uma festa suntuosa para os olhos dele, que eram sempre mais gulosos que a barriga. (Carter, 1985.p.18).

Durante todo o conto, as vozes de Jeanne e de Baudelaire se confrontam, os discursos se chocam, e podem ser lidos como o lugar para a construção discursiva do gênero. A linguagem de Baudelaire representa o erotismo masculino, a linguagem poética do desejo sublimado do homem pela mulher, que funciona como musa e objeto de fantasia erótica, romântica e decadente. A linguagem de Jeanne, por outro lado, representa a visão objetiva da realidade, de sua posição como mulher negra, financeiramente dependente, um membro da sociedade colonial. O melhor exemplo deste contraste de práticas discursivas pode ser visto quando Baudelaire, romanticamente, evoca as belezas da vida numa ilha tropical: sua visão é a de um paraíso terrestre, onde papagaios rutilantes se balançam em árvores lustrosas, onde eles vão viver juntos e felizes, numa casa de sapé, com uma varanda coberta por uma trepadeira em flor (Carter, 1985.p10). Jeanne, que experimentou a realidade da vida numa destas ilhas, expressa uma visão inteiramente diferente:

A praia de um amarelo ofuscante ... o céu de um azul implacável ... Moscas por toda a parte. Para comer, só bananas verdes, inhame e espetos de carne de cabra borrachenta para mastigar (Carter, 1985.p.10)

. Linda Hutcheon, em The Politics of Modernism, argumenta que o texto de Carter

tenta codificar e, depois, recodificar o `território colonizado' do corpo feminino; ele é codificado como uma fantasia erótica masculina e, depois, recodificado em termos da experiência feminina (Hutcheon, 1989.p.146).

Estendendo sua análise à questão dos discursos, Hutcheon afirma que:

O texto é um complexo entrelaçamento dos discursos do desejo e da política, do erótico e do analítico, do masculino e do feminino (Hutcheon, 1989.p.146).

Carter vai mais adiante no seu processo de suplementar o cânone e os textos tradicionais, trazendo para o centro a figura e a voz da mulher que habitava as margens da narrativa, ao acrescentar um final imaginário e irônico à história de Jeanne Duval: após a morte de Baudelaire, totalmente destruído pela sífilis, Jeanne vende manuscritos e roupas do poeta, e com esse dinheiro volta para sua ilha natal, abre um bem-sucedido bordel, vira uma respeitada Mme. Duval, e continua, até a sua morte, a distribuir entre os mais privilegiados da administração colonial, a um preço razoável, a verdadeira, autêntica e genuína sífilis baudeleriana (Carter, 1985.p.23). Neste conto, como em vários outros, Carter mostra como o erótico pode ser usado para explorar o papel de nossos discursos culturais e sociais na construção do gênero, na representação do desejo e dos conflitos inerentes à identidade sexual.
Outro aspecto interessante deste conto é a mistura de paródia, tradução e reconstrução que Carter faz dos poemas de Baudelaire - e de outros textos dos poetas impressionistas franceses, como, por exemplo, de Verlaine - na criação da atmosfera outonal do seu conto. O tom nostálgico e melancólico de Fleurs du Mal é recriado nos primeiros parágrafos do texto de uma maneira extremamente poética:

Tristes; como são tristes aquelas tardes de fim de outono, com seus tons róseos e violáceos meio esfumaçados; são de uma tristeza de cortar o coração. O sol se despede do céu em meio a camadas sinuosas de nuvens de um brilho pomposo, a angústia penetra a cidade, uma sensação de amargo pesar, uma ansiedade pelo ano novo que se aproxima, é o tempo dos desejos impotentes, a estação do desconsolo (Carter, 1985.p.9).

Nesta recriação da atmosfera impressionista que caracteriza a linguagem poética de Baudelaire, Carter presta, de certa forma, um tributo ao maior poeta da alienação (Carter, 1985.p.18) mas faz em seu conto, também, uma crítica ao discurso colonialista, fetichista e fantasioso de Baudelaire, que condena Jeanne Duval à posição de um fetiche ambulante, selvagem, obsceno, aterrador (Carter, 1985.p.20). A crítica de Carter ao discurso de Baudelaire pode ser vista, também, como uma crítica mais ampla ao discurso do imaginário ocidental colonialista, que fez - e ainda faz - do colonizado, e, principalmente, da mulher negra, um ser exótico, associado à sexualidade promíscua e depravada, em muitas representações artísticas e pseudo-científicas do século XIX.

O conto seguinte, "The Kiss", é bastante condensado, uma fábula desenvolvida em apenas três páginas de extrema beleza e de rara sensualidade. As primeiras linhas descrevem, em imagens duras e concretas, as agruras dos invernos e verões nas planícies da Ásia Central. As linhas seguintes descrevem, em linguagem de extremo lirismo, onde predominam perfumes e cores, o mês de abril nesta região. Somos informados, então, de que estamos numa cidade autenticamente fabulosa (Carter, 1985.p.27), a legendária Samarkanda, onde, em uma tumba de jade, jaz Tamburlaine, o flagelo da Ásia. O conto, usando de forma irônica fatos do presente, diz que A Revolução prometeu às camponesas Uzbek, roupas de seda e, pelo menos esta promessa foi cumprida (Carter, 1985.p.27). O conto brinca todo o tempo com o real e o imaginário, o histórico e o lendário, quando descreve as mulheres vestidas em túnicas de seda de cores brilhantes, que cintilam e ofuscam como uma ilusão ótica e que caminham resolutamente como se não vivessem numa cidade imaginária (Carter, 1985.p.27). Como para enfatizar este jogo entre o real e o ilusório, o texto diz que as mulheres e seus maridos existem, em seu cintilante e inocente exotismo, em contradição concreta com a história (Carter, 1985.p. 28). A mulher que vende lírios no mercado

não parece saber que habita o tempo. Ou parece que ela espera que Scherazade perceba que uma aurora final já chegou e que, concluído o último conto, faça silêncio (Carter, 1985.p.28).

O conto de Carter, uma Scherazade pós-moderna, começa então a narrar um passado que se confunde com o presente, sem linhas de demarcação claras, onde um cabrito belisca o jasmim selvagem que se espalha pelas ruínas da mesquita construida pela bela esposa de Tamburlaine.

O ponto central do conto é que Tamburlaine - há muito ausente, lutando em guerras locais - está prestes a retornar e sua mulher deseja surpreendê-lo com a mesquita inteiramente pronta. Para finalizar um arco ainda incompleto, ela manda chamar um arquiteto e pede que ele termine o trabalho. O arquiteto promete fazê-lo, desde que a esposa de Tamburlaine lhe dê um beijo, um único beijo (Carter, 1985.p.28). Descrita como virtuosa e esperta, a mulher vai ao mercado, compra uma cesta de ovos, tinge-os de cores diferentes, e faz o arquiteto prová-los para demonstrar que, apesar de aparentemente diferentes, todos os ovos têm o mesmo sabor e que o arquiteto pode ter, em vez dela, qualquer escrava e que a experiência será semelhante. O arquiteto propõe um outro teste: traz três recipientes cheios de um líquido transparente, parecendo água. A mulher de Tamburlaine bebe dos dois primeiros recipientes e eles realmente contêm água; quando ela experimenta o terceiro, tosse e cospe, pois o recipiente contem vodca e não água. Diz o arquiteto então:

A vodca e a água parecem iguais mas têm um sabor inteiramente diferente. O mesmo acontece com o amor (Carter, 1985.p.29).

A mulher de Tamburlaine beija o arquiteto, e ele retorna às obras e acaba a mesquita no dia em que Tamburlaine entra em Samarkanda, com seus exércitos e bandeiras, e com suas jaulas cheias de reis aprisionados (Carter, 1985.p.29). Quando Tamburlaine procura sua mulher, esta se afasta e se nega a ele porque, nenhuma mulher voltará ao harém depois de ter provado vodca (Carter, 1985.p.28). Depois de espancada por sua recusa e rebeldia, a mulher revela ter beijado o arquiteto e Tamburlaine envia seus homens para matá-lo. Ao chegarem à mesquita, o arquiteto, de pé em cima do último arco completado, quando os vê chegar, cria asas, e voa para a Pérsia (Carter, 1985.p.29). O conto termina com uma volta ao presente e uma especulação: se fosse viva, a mulher de Tamburlaine faria hoje o que todas as outras mulheres fazem em Samarkanda, faria tranças nos cabelos e compraria legumes na feira para o jantar do marido. Em seguida, o conto faz uma outra especulação a respeito da mulher de Tamburlaine e estabelece uma ligação com a cena presente: Depois que fugiu dele, talvez ela tenha aberto um negócio no mercado. Talvez tenha passado a vender lírios lá (Carter, 1985.p.29). O conto, uma fábula sobre o desejo, a força da experiência sexual como elemento gerador da coragem para o confronto com a autoridade e violência patriarcais, é relatado com as estratégias da narrativa oral, com poderosas imagens evocativas, que baseiam o seu apelo nos sentidos visual e olfativo. O elemento mágico, presente nas asas que brotam no arquiteto, a circularidade do tempo, a própria moral da história são elementos presentes em muitas narrativas deste gênero. Mas neste conto, abre-se a possibilidade da mulher de Tamburlaine não ter sido morta por sua transgressão, de poder reconstruir sua vida, e de saber que quem prova da vodca não volta ao harém, ou seja, quem experimenta a liberdade, a aventura, e o amor não retorna à uma vida de submissão à autoridade do tirano. Nesta breve fábula, Carter reescreve o destino habitual das mulheres nas fábulas tradicionais de maneira extremamente lírica, evocando a violência da sociedade patriarcal de Samarkanda através da imagem das tulipas que desabrocham em flores como grandes bolhas de sangue (Carter, 1985.p.28).

No conto seguinte, "Our Lady of the Massacre", Carter parodia The Fortunes and Misfortunes of the Famous Moll Flanders, obra de de Daniel Defoe, publicada em 1722. Na introdução a uma das mais recentes edições de Moll Flanders, a crítica feminista-psicanalítica Juliet Mitchell argumenta que um dos intuitos de Defoe ao escrever esta obra foi mostrar sua preocupação com o mudança do papel da mulher no capitalismo burguês (Defoe, 1984.p12). Se aceitarmos esta argumentação de Mitchell, veremos, então, que o conto de Carter demonstra, de forma bem mais explícita, como o papel da mulher é definido pela sociedade em que ela vive. A protagonista do conto não tem um nome próprio, melhor dizendo, ela se recusa a se nomear ou a ser nomeada no texto por seu nome verdadeiro,

Meu nome não tem a menor importância pois usei vários nomes no Velho Mundo, os quais não quero mencionar agora; tive, também, meu nome entre os selvagens, sobre o qual não quero falar; e, agora, tenho outro nome neste lugar; portanto, meu nome não tem nada a ver com minha vida ou minha natureza (Carter, 1985.p.33; itálicos no texto original).

Para sobreviver aos infortúnios que a vida de mulher pobre e orfã no século XVII coloca no seu caminho, a protagonista do conto é obrigada a mudar continuamente de personalidade, alterando repetida e habilmente sua própria história e seu nome, à medida que o destino a leva de Lancashire a Londres, depois às colônias do Novo Mundo, à vida numa tribo de índios e, finalmente, a uma vila de devotos protestantes. Neste périplo, a personagem e narradora muda, também, seus papéis sociais: de criança orfã ela passa a criada para todo tipo de trabalho, a prostituta, a ladra, a criminosa exilada para a Virgínia, a esposa de um guerreiro indígena, a pecadora arrependida e, finalmente, a Nossa Senhora do Massacre. Entendendo que sua sobrevivência depende de sua capacidade de adaptar-se às demandas da sociedade onde se encontra, a protagonista do conto rapidamente se adequa às circunstâncias de suas diversas experiências. Quando levada à presença do ministro protestante, ela finge ter sido capturada pelos índios, quando na realidade havia procurado a vida entre eles por sua própria vontade:

... o Ministro, que me diz para dar graças a Deus por eu ter sido salva das mãos dos selvagens e me manda pedir Seu perdão por ter me afastado de Seu caminho. Seguindo seu conselho, caí de joelhos, pois vi que o arrependimento é de praxe por estas bandas, e quanto mais demonstrasse arrependimento melhor seria para mim. (Carter, 1985.p.47).

Indagada quanto a seu nome, ela diz chamar-se Mary - nome de sua antiga patroa em Lancashire -, e acaba sendo conhecida na vila como a Nossa Senhora do Massacre, em referência à matança da tribo dos índios entre os quais vivia. Enfatizando ironicamente a circularidade de sua história, a protagonista diz:

Eu esfregava o chão da casa do Ministro, preparava as refeições, lavava a roupa e, por mais que o Ministro jurasse que tinham vindo a este lugar para construir a Cidade de Deus no Novo Mundo, eu era a mesma criada para todo tipo de trabalho que tinha sido em Lancashire e não havia lugar para uma prostituta entre a Comunidade dos Santos, se eu tivesse vontade de voltar à minha velha profissão. Mas eu não podia nem queria isto; os índios tinham acabado com esta possibilidade, quando me marcaram para todo o sempre como uma boa mulher (Carter, 1985.p.48; itálicos no texto original).

Diferentemente da Moll Flandres de Defoe, que passa o resto da sua vida em prosperidade e penitência por seus erros no passado, o final do conto de Carter deixa o destino de sua protagonista em aberto pois, pela primeira vez ela se recusa, de maneira ainda tímida e furtiva, a aceitar o destino que a sociedade local tenta lhe impor: ela consente que batizem o filho que teve com o guerreiro indígena, aceitando o nome cristão que lhe é dado, mas diz que, quando sozinha com ele, não vou chamá-lo pelo nome que o Ministro lhe deu, e vou continuar a falar com ele na língua indígena (Carter, 1985.p. 47); ela se recusa, também, a desposar o homem escolhido para ela e, desta forma, marca sua rebeldia em relação à comunidade em que vive. Parodiando uma obra clássica da literatura, Carter inscreve novos elementos na história de sua protagonista, explora e denuncia a necessidade da vivência de papéis, e problematiza o papel da mulher na sociedade ainda mais ironicamente do que o texto original de Defoe.

Em "The Cabinet of Edgar Allan Poe", Carter recria, de maneira fictícia e com elementos góticos e grotescos, muito ao gosto do autor, a infância de Poe, a fim de descobrir a mãe escondida no armário, mãe repetidamente negada e reprimida pelo personagem/autor, mas que persistentemente retorna nos pesadelos, fobias e obra de Edgar Allan Poe. Para Carter, os fatos mais importantes da infância de Poe estão ligados ao fato de sua mãe e seu pai terem sido atores - Há uma história de dramaticidade em sua família (Carter, 1985.p.51) - e de ambos terem morrido antes de Poe completar três anos. Clare Hanson, em "Each Other: Images of Otherness in the Short Fiction of Doris Lessing", argumenta que a sensibilidade e a sexualidade de Poe foram marcadas pelo fato de ele ter sido exposto em tenra idade a dois lados irreconciliáveis da feminilidade (Hanson, 1988.p.80); por um lado, observando sua mãe construindo seus belos papéis femininos ( e, algumas vezes, masculinos) no palco, através de perucas, maquiagem e roupas de época, despertando aplausos da platéia e admiração em Poe; por outro lado, testemunhando os fatos biológicos da vida da mulher, vendo o sofrimento da mãe durante o nascimento de sua irmã mais nova - que ele e o irmão presenciam -, de seu esforço para amamentar a criança, e da devastação causada pela tuberculose que a levou à morte, fatos que criaram em Poe indizível horror ao lado concreto da feminilidade
.
O conto de Carter utiliza elementos biográficos para recriar estes anos da vida de Poe, mas sua imaginação preenche as lacunas da história do autor, detendo-se muito especialmente na figura materna como fonte da angústia e melancolia que marcaram a vida e a obra de Poe, e que definiram sua relação conflituada com as mulheres. A mulher real para Poe torna-se infinitamente desejada e, ao mesmo tempo, infinitamente assustadora, funcionando como um símbolo do desejo, sempre em mutação e fora do seu alcance. Referindo-se à face da mãe, maquiando-se diante do espelho para entrar em cena, Poe recorda-se,

As velas transformavam em altar profano o espelho no qual sua face fugidia ondulava como se fosse um peixe mágico. Se você pudesse segurar esta imagem, ela transformaria seus sonhos em realidade, mas Mamãe escapava através de todas as redes nas quais o desejo tentava capturá-la (Carter, 1985.p.80).

Lembrando-se do nascimento da irmã, Poe diz que as mulheres

possuem dentro delas um grito, uma coisa que precisa ser extraída ... mas esta é uma lembrança muito difusa e só reaparece nas vagas formas de um terror não-mencionável, quando se apresenta a possibilidade de um contato carnal (Carter, 1985.p.80).

Da complicada patologia da vida emocional e sexual de Poe, um fato é sempre presente nas biografias sobre o autor: o medo do feminino, particularmente do corpo feminino. Em Powers of Horror: An Essay on Abjection, Julia Kristeva tem um argumento sobre a abjeção que é particularmente aplicável aos sentimentos de Poe, representados em sua obra. Para Kristeva, o momento de abjeção é aquele no qual a criança (ainda não constituída como sujeito) começa o seu movimento de separação da mãe. Se este processo não for completado ou for prejudicado de alguma forma, a criança ficará presa a esta abjeção, impedida de fazer a separação da mãe. Neste caso a criança/adulto deslocará esta abjeção/rejeição primária para outras figuras, que inspirarão medo ou repulsa, recriando assim o sentimento original de abjeção. Além disso, para Kristeva, a abjeção é marcada pela ambigüidade, pois o sujeito se sente, ao mesmo tempo, atraído e repelido por seu objeto de desejo (Kristeva, 1982. p.9). Kristeva argumenta que, a imagem máxima da abjeção é o cadáver (Kristeva, 1982. p4), argumento que assume uma especial relevância na consideração da vida e obra de Poe. Em "The Cabinet of Edgar Allan Poe", Carter descreve Virginia Clemm, a noiva-criança de Poe, da seguinte maneira,

Sua pele era branca como o mármore e seu nome era - pode acreditar! - `Virgínia', um nome que tinha tudo a ver com sua melancolia de expatriado e também com a situação dela, pois a noiva-criança permaneceria virgem até sua morte. ... ela não tinha sempre parecido com um cadáver ambulante? Mas um cadáver bonito, tão bonito! (Carter, 1985.p.59).

Neste conto, que pode ser considerado um meta-texto, uma reflexão sobre um dos autores de maior influência na obra de Carter, o gótico e o grotesco, estilos usados magistralmente por Poe, são utilizados na discussão/representação da sexualidade e da construção de uma identidade sexual, não apenas de Edgar Allan Poe mas de todos nós.

Em "Overture and Incidental Music for A Midsummer Night's Dream", Carter presta um irreverente tributo a Shakespeare, escrevendo um tipo de pré-script para a famosa peça shakespereana. Carter nos faz sentir como se a peça original tivesse um subtexto que teria sido suprimido na versão final, e nos oferece uma visão mais rude e sexualizada do mundo das fadas, elfos e duendes. O conto centra-se no mundo e nos seres sobrenaturais dos bosques, onde reinam Oberon, Titânia e sua corte. No conto de Carter não há seres humanos, com exceção de um dourado e exibicionista ser hermafrodita, que abre a história de uma maneira bastante informal, dizendo: Me chamem de o Herm Dourado Carter, 1985.p. 65), e que se descreve como,

Eu sou Herm, abreviatura de hermaphrodite verus, um testículo, um ovário, metade de cada orgão, mas todo completo e mais, muito mais, que a soma de minhas partes (Carter, 1985.p.66).

É este ser hermafrodita que desencadeia toda a confusão na corte de Oberon e Titânia, pois todos o desejam, inclusive o grotesco Puck. Na peça de Shakespeare, o pomo da discórdia entre Oberon e Titânia é um adorável menino, roubado de um rei indiano, que serve de membro da comitiva de Titânia, despertando o ciúme e o ódio de Oberon, que quer o menino para si. Desinformação. A versão patriarcal (Carter, 1985.p.66), diz Herm, na versão de Carter.
O que fica sexualmente implícito na peça de Shakespeare, é abertamente explicitado no conto de Carter. A presença de Herm desestrutura o reino mágico dos bosques, pois todos querem o dourado ser hermafrodita para satisfação de seus propósitos sexuais. Herm, entretanto, como verdadeiro objeto do desejo, não se deixa seduzir ou capturar por nenhuma das artimanhas destinadas a prendê-lo: Desconheço o que seja o conceito de desejo (Carter, 1985.p.75). Finalmente, todos os seres mágicos reconhecem a impossibilidade de seduzirem Herm e este volta a ter paz, dormindo embalado pelo canto das fadas dos bosques, um pouco desafinado, pois todas parecem ter um resfriado. O conto de Carter termina onde a peça de Shakespeare tem seu início: A orquestra põe de lado seus instumentos. A cortina se abre. A peça começa (Carter, 1985.p.76).

Além de tornar bem mais explícito o lado sexual do confronto entre Oberon e Titânia e de fazer de Puck um verdadeiro sátiro, Carter brinca com os personagens de A Midsummer Night's Dream, sugerindo que a tradição teatral transformou seres enormes e grosseiros -

Seu próprio nome, Titânia, mostra que ela descende da raça dos gigantescos Titãs ... (Carter, 1985.p.72); Oberon, senhor da noite e do silêncio, ... sua longa cabeleira nunca viu uma tesoura ... sua face sem um fio de cabelo, exceto pelas grossas sobrancelhas que se juntam no meio da testa. (Carter, 1985.p.75)

- em delicadas e diminutas criaturas, e que os bosques que habitavam eram bem mais complexos e desagradáveis - chuva, chuva, chuva, chuva (Carter, 1985.p.65) - do que a cena teatral shakespereana nos deixa entrever. Carter parece querer dizer que este é o lado real da fantasia, e seu conto, embebido e encharcado (literalmente!) em chuva e esperma, não nos deixa esquecer de que ele, como a peça shakespereana, são produtos construídos e marcados por seu tempo e sua ideologia, principalmente pelas questões derivadas da sexualidade.

Em "Peter and the Wolf", Carter reescreve não somente o conto popularizado por Prokofiev como nos oferece um relato de base psicanalítica do processo de formação e socialização do indivíduo. No conto de Carter, uma jovem da aldeia casa-se com um lenhador das montanhas. Durante um rigoroso inverno, lobos invadem a cabana, matam e devoram o lenhador, deixam intato o cadáver da jovem mãe, que aparentemente havia morrido de parto, e levam com eles o bebê. A família da mulher morta leva seu corpo para enterrá-lo na aldeia, e ninguém tem notícias do bebê desaparecido. Anos mais tarde, Peter, um jovem da mesma família e que seria primo da criança desaparecida, ao fazer sete anos sobe às montanhas com seu pai para levar o rebanho de cabras a novos pastos. Lá, nos altos rochedos, ele vê pela primeira vez aquilo que ele tinha sido ensinado a temer sobre todas as coisas (Carter, 1985.p.79), um bando de lobos. A curiosidade o faz examinar os lobos cuidadosamente e, para sua surpresa, um dos lobos era um prodígio, um lobo sem pelos, andando de quatro como os outros faziam, mas totalmente destituído de pelos, a não ser os que lhe cresciam em volta da cabeça Carter, 1985.p. 80).

A história contada por Peter não merece crédito entre os outros pastores, e seu próprio pai lhe dá uns cascudos e o manda de volta para casa. A única pessoa que acredita em Peter é a velha avó - Havia uma garotinha com os lobos, vovó, ... uma garotinha mais ou menos da minha idade, pelo tamanho que tinha (Carter, 1985.p.80) -, que pede a ele que a leve ao local onde viu o bando de lobos. Na manhã seguinte Peter e a avó sobem até onde os pastores se encontram e convencem o grupo a procurar as pegadas dos lobos. Logo eles descobrem a matilha e aprisionam a garota-lobo, matando a mãe-loba que tenta protegê-la. Levada para a casa da família, a garota é desamarrada e reage violentamente, era como se tivessem deixado um demônio à solta (Carter, 1985.p.82). Os membros da família fogem para o celeiro, mas Peter e a avó correm para a porta para trancá-la e impedir a fuga da garota. Sozinha na grande sala/cozinha, sempre de quatro, ela derruba e quebra tudo que encontra em seu caminho, investigando com suas narinas todos os cheiros novos para ela: O tempo todo ela rosnava, grunhia e emitia sinais de pânico; ... várias vezes ela evacuava involuntariamente, até que a sala/cozinha começou a cheirar como uma privada (Carter, 1985.p.82). Depois, parecendo ter desanimado da luta, a garota começa a uivar e, finalmente, seus uivos são respondidos pela matilha, que desce a montanha, arrebenta a porta da casa, e resgata a garota-lobo, que fuge com os lobos para as altas montanhas. A narrativa de Carter acompanha até este ponto o conto divulgado por Prokofiev, mas a partir daí faz uma análise psicanalítica, que não existe na versão inicial.

Embora a estadia da garota-lobo entre os membros da familia tenha sido extremamente breve, ela marca de forma indelével seu primo Peter. A crença do menino na ordem tradicional das coisas, nas normas estabelecidas pela família e sociedade em que vive, nas regras da igreja que freqüenta, fica profundamente abalada por este encontro com o Outro, com a mais completa alteridade, uma diferença que ele, aos sete anos, profundamente assustado, codifica em termos da diferença de sexo:

O coração de Peter deu um pulo, um salto, e ele teve a sensação de estar caindo; não tinha consciência de seu próprio medo porque não podia tirar os olhos da pequena fenda que mostrava o sexo da garota-lobo, perfeitamente visível para ele por ela estar sentada acocorada. ... A pequena fenda exercia um absoluto fascínio sobre ele. ... Ele teria dado tudo para voltar no tempo, para ter dado um grito quando viu os lobos, para nunca tê-la visto (Carter, 1985.p.83-84).

Peter decide estudar e levar uma vida piedosa e penitente, mas sua experiência com a garota-lobo atormenta seus sonhos. Mais tarde, aos quatorze anos, Peter é convencido pelo padre local a tentar a vida num seminário e a se ordenar padre. Com a concordância da família, ele parte para o seminário mas,

Apesar de sua sofreguidão para se jogar no mundo branco de penitência e devoção que o aguardava, ele se sentia ansioso e pertubado por razões que nem mesmo conseguia entender (Carter, 1985.p.85).

Numa madrugada fria, Peter desce ao rio para beber água e lavar o rosto e, subitamente, vê a garota-lobo na outra margem do rio, desta vez, já adolescente, coberta por pelos nas pernas, braços e barriga e envolta em uma longa cabeleira. Sua natureza selvagem é afirmada quando ela não consegue reconhecer-se no reflexo produzido nas águas do rio:

Ela nunca poderia saber que o reflexo abaixo dela no rio era de sua própria figura. Ela não sabia que tinha uma face; ela nunca tinha sabido que tinha uma face e, por este motivo, sua própria face era o espelho de uma espécie de consciência diferente da nossa, da mesma forma que sua nudez, sem inocência ou exibicionismo, era a mesma de Adão e Eva antes da Queda. Ela era cabeluda como a Madalena no deserto, mas arrependimento não fazia parte de sua consciência. ... Ela sacudiu a pelagem molhada e os dois filhotes colaram as bocas nas tetas pendentes da mãe (Carter, 1985.p.86).

Peter chora de emoção e tenta atravessar o rio para se juntar à garota-lobo e seus filhotes mas eles se afastam rapidamente. A cena mostra que a ameaça que a garota-lobo oferece não é, estrita ou primordialmente, de ordem sexual. Ela representa um desafio à ordem do humano, quando consegue passar inteiramente para a ordem do animal, possuindo uma espécie de consciência diferente da nossa, como diz o texto. Teóricos como Freud e Lacan diriam que o sujeito não adquire uma identidade ou um lugar na linguagem até que seja capaz de se diferenciar dos outros. No conto de Carter, entretanto, é o supostamente socializado observador que se sente ameaçado, reconhecendo-se exilado, não podendo partilhar da maravilhosa e particular graciosidade (Carter, 1985.p.86) de sua prima e de seus filhotes. Peter desiste de entrar para o seminário, reconhecendo que O que ele faria no seminário agora? Porque agora ele sabia que não havia nada a temer. Experimentara a vertigem da liberdade (Carter, 1985.p.86). Num final aberto, típico das narrativas de Carter, Peter escolhe o caminho da cidade e caminha desajeitadamente, rumo a uma outra história (Carter, 1985.p.87). Liberto das amarras da narrativa tradicional, Peter é agora sujeito de sua própria história, podendo escolher livremente seu destino.

"The Kitchen Child" é um conto curto e hilariante, que, nas palavras de Lorna Sage em Angela Carter, parodia um conto popular de autor desconhecido, em forma de pastiche (Sage, 1964.p.45). O narrador, um bem-humorado bastardo, se orgulha de ter sido concebido, enquanto um suflê se erguia no forno. Um suflê de lagosta, muito refinado, vinte e cinco minutos em forno de temperatura média (Carter, 1985.p.91). Sua mãe, cozinheira renomada e de amplas proporções, não chega nem a identificar o par de mãos que agarrou sua cintura ... Só Deus sabe aonde ele conseguiu chegar mas o efeito causado foi ela misturar todos os outros ingredientes nas claras em neve, jogar o suflê no forno e bater a porta (Carter, 1985.p.92). Mais tarde, quando o filho a interroga sobre a identidade do pai, ela responde despreocupadamente: Nunca pensei em perguntar. Eu estava preocupada era com o fato de ter batido a porta do forno e feito o suflê murchar (Carter, 1985.p.92). Conhecido como a criança da cozinha, o narrador chega à conclusão que a cozinha é praticamente seu progenitor, Concebido sobre a mesa da cozinha, nascido no chão da cozinha (Carter, 1985.p.92), aprendendo a ler em livros de receitas, A para aspargo, B para bife, C para cenoura ... (Carter, 1985.p.95), ele acaba se tornando um grande chef. Mas a questão de sua paternidade fica em suspenso pois, dos hóspedes presentes na casa dos patrões no fim de semana em que foi concebido, só o valet de um duque francês parece ter a possibilidade de ser seu pai. Os anos se passam e, numa outra temporada de caça, o duque retorna com seus criados à casa onde trabalham o nosso narrador e sua mãe. Como nenhum dos criados do duque parece corresponder ao jovem impetuoso que seduziu sua mãe, o narrador vai procurar o próprio duque e conta toda a história da sedução da mãe e de seu nascimento. O duque se oferece para repetir a cena e fica absolutamente deslumbrado pelo comportamento intempestivo da cozinheira, que não hesita em acertar sua cabeça com uma colher de pau, para evitar um desastre culinário. O duque revela ser o verdadeiro pai do narrador, que entretanto prefere manter sua ilegitimidade e dedicar-se à sua profissão. A mãe parte com o duque para a França e ele assume a cozinha, a qual considera sua herança natural. Revertendo todas as expextativas do conto tradicional, o protagonista/narrador abre mão do nome e da fortuna de um nobre para ser dono de seu próprio destino, chegar a ser o mais famoso chef da Inglaterra. Numa espécie de anti-moral, Carter parece afirmar que a escolha pela ilegitimidade deve ser considerada como sábia,[
4] pois permite ao narrador exercer sua verdadeira vocação, coisa que não poderia fazer como filho de um rico e aristocrático duque francês.

"The Fall River Axe Murders" é um dos contos mais conhecidos desta coleção. Ele reescreve a história da assassina americana Lizzie Borden, que matou o pai e a madrasta com inúmeros golpes de machado. O conto é habilmente construído e focaliza a manhã que antecedeu o assassinato do Sr. e Sra. Borden. O assassinato em si não é descrito no conto, já que Carter parte do princípio que todos sabem do sangrento acontecimento, e prefere revelar o que a tradicional versão da história mantem escondido. Carter prefacia o conto com uma canção popular que diz: Lizzie Borden com um machado / Deu quarenta machadadas em seu pai / Quando viu o que tinha feito / Deu quarenta e uma em sua mãe (Carter, 1985.p.100). Com este início, o leitor fica ciente de duas coisas: da violência cometida e do status quase folclórico de Lizzie Borden. O conto de Carter caracteriza-se por construir uma atmosfera de grande claustrofobia fisica e psíquica - todos os cômodos da casa sem corredores dos Borden são cheios de portas e todas as portas são trancadas,

Uma casa cheia de portas trancadas que se abrem apenas para outros cômodos com outras portas trancadas, pois, no andar de cima e no de baixo, todos os cômodos levam uns aos outros, como num labirinto de pesadelo (Carter, 1985.p.107).

O conto de Carter apresenta também um estudo psicanalítico dos efeitos do tédio e da repressão sobre Lizzie Borden. Carter traça as origens da frustração de Lizzie a duas fontes consideráveis. A primeira está ligada à severidade, miserabilidade e idiossincrasias do Velho Borden, que controla a vida da família com mão de ferro,

À noite, para poupar querosene, ele se senta em plena escuridão. Rega as pereiras com sua própria urina; não desperdice, não passe necessidade, ... Lamenta o desperdício de bom estrume orgânico que some no vaso sanitário. Gostaria de cobrar das baratas o aluguel da cozinha (Carter, 1985.p.111).

A segunda está relacionada à cultura repressiva da Nova Inglaterra no século XIX; como mulheres solteiras e membros da classe média local, Lizzie e sua irmã Emma estão condenadas a uma forma extremamente limitada de existência: todos os seus dias começam e terminam da mesma maneira, com o vestir de roupas consideradas apropriadas para as tarefas domésticas e para os trabalhos de caridade, com os quais as jovens locais passam o tempo,

'Jovens' é, naturalmente um termo cortês. Emma tem bem mais que quarenta anos e Lizzie está nos trinta, mas nenhuma das duas casou, e, portanto, vivem na casa do pai, onde permanecem em um estado de infância prolongada e fictícia (Carter, 1985.p.108).

Lizzie é dada a transes sonambulísticos, a sentimentos paranóicos, a violentos pesadelos, que são do conhecimento da família e dos amigos. Embora Lizzie seja a filha querida do Velho Borden, ele não hesita em matar os pombos de estimação de sua filha com o machado que será usado em seu próprio assassinato. Abby, a madrasta, gostaria de comer uma torta recheada com os pombos, mas a criada se recusa a fazer isto com os pombos de Lizzie. Quando a jovem chega em casa e vê a confusão de penas e sangue não derrama uma lágrima mas começa a planejar o assassinato do Velho Borden e de Abby. Ela experimenta o peso do machado e tenta sem sucesso comprar ácido prússico para envenenar toda a família. Na manhã do assassinato do pai e da madrasta, toda a cidade de Fall River se sente afetada pelo calor inclemente do verão:

Quente, quente, quente .... já bem cedo pela manhã, antes do apito da fábrica, mesmo a esta hora, tudo parece tremular e palpitar sob o ataque de um sol esbranquiçado e feroz, alto no ar totalmente parado (Carter, 1985.p.103).

Nesta mesma manhã, Lizzie coloca todas as camadas de roupa exigidas pelos padrões de decência da Nova Inglaterra. Menstruada, ela sente-se enjoada, a barriga parece apertada por um torno, mas, mesmo assim, se obriga a passar todos os seus lenços, até chegar a hora em que desce ao depósito de lenha para pegar o machado com o qual cometerá os assassinatos. Emma está fora, visitando amigos em New Bedford, e escapará de ser morta. Carter não descreve em seu conto, como já foi mencionado, o assassinato do Velho Borden e de Abby. A ação do conto, que se move livremente entre presente, passado e futuro, termina com o som do despertador da empregada:

O dia deles, o dia fatal dos Bordens, tremula à beira do seu início. Lá fora, no alto, no ar que já queima, olhe! O anjo da morte se aninha numa árvore próxima ao telhado (Carter, 1985.p.121).

O conto não justifica a ação violenta de Lizzie Borden, mas consegue situar os assassinatos num contexto de pressão e repressão que faz com que o ato de Lizzie não pareça o resultado de um momento de insanidade - como foi amplamente alegado na época -, mas a vingança premeditada de uma criatura forçada pela família e pela sociedade a reprimir sua individualidade e seus desejos e a ter que se conformar com as normas e padrões impostos pelo sistema.
Os nove contos reunidos em American Ghosts and Old World Wonders foram escritos por Angela Carter entre 1987 e 1992, e o livro foi publicado postumamente. Originalmente, a coleção organizada por Carter continha apenas sete contos mas dois outros ("Gun for the Devil"e "The Ghost Ships") foram incluidos no livro por decisão da sua agente e dos editores. Não comentarei os contos em sua ordem de colocação no livro porque já incluí um estudo do conto de fadas "Ashputtle or The Mother's Ghost" em outro ensaio, pois se encaixava melhor na leitura feita de outros contos de fadas, os da coleção The Bloody Chamber and Other Stories.

"Lizzie's Tigers" retoma a história de Lizzie Borden, descrevendo um momento da infância de Lizzie, quando ela, aos quatro anos, vai ao circo e fica fascinada pelo tigre. Carter consegue estabelecer um vínculo entre Lizzie, o tigre, e a gata Ginger, quando o domador para impressionar o público diz:

O tigre é a verdadeira encarnação da fúria e da sede por sangue; em um único minuto , ele pode se transformar de uma peludo e dócil animal em trezentas libras, sim, trezentas LIBRAS de fúria assassina. O tigre é a revolta do gato. Oh, Miss Ginger, Miss Ginger Cuddles, que sentada no portão miou censurando Lizzie; quem poderia imaginar que você pudesse abrigar tanto ressentimento! (Carter, 1993.p.16).

Nestas frases, Carter já anuncia o tema desenvolvido em "The River Fall Axe Murders": a pequena Lizzie Borden, aqui associada à gatinha Ginger, que acumula ressentimentos, se transformará, no futuro, e em outra história, em um tigre, um animal de fúria assassina.

A tese defendida por Carter de que não há, na verdade, histórias totalmente novas a serem contadas e que a revisão dos velhos textos nos dá a possibilidade de novas visões, fica ainda mais explicíta em dois contos que têm como cenário o Velho Oeste americano. Este cenário, entretanto, é apenas um outro lugar onde se travam os antigos dramas do Velho Mundo. Em "John Ford's 'Tis a Pity She's a Whore", Carter mistura citações da peça do dramaturgo jacobita John Ford, publicada em 1633, com o roteiro imaginário de um filme de faroeste do diretor americano do mesmo nome, peça e filme contando a mesma história de amor incestuoso de diferentes formas. A nota no final do texto comenta com grande ironia que, na peça original, Giovanni corta o coração de Annabella e o exibe no palco; no filme de John Ford, diz a nota, seria muito difícil representar esta cena em celulóide, embora ela fosse muito parecida com as atrocidades rituais cometidas pelos índios que habitavam aquele mesmo lugar (Carter, 1993.p.44). Ainda demonstrando que não há nada novo no mundo da literatura, Carter trabalha o tema faustiano em "Gun for the Devil", um drama que se desenrola em uma cidade da fronteira mexicana, onde o pianista Johnny tenta reviver a velha lenda acerca do homem que faz um pacto com o diabo para obter uma bala que não deixe de atingir seu alvo (Carter, 1993.p.49). No final, o diabo é representado por um velho índio, que diz a Johnny: Estava esperando por você. Temos negócios a concluir (Carter, 1993.p.65).

Em "The Merchant of Shadows", Carter faz um comentário revisionista de um de seus próprios livros, The Passion of New Eve. O narrador do conto é um estudante de cinema, fazendo pós-graduação nos Estados Unidos, prestes a ter suas ilusões e visão do mundo radicalmente abaladas. O assunto de sua pesquisa é o trabalho de um diretor de Hollywood da década de 30, Heinrich Manheim. Como Manheim já havia falecido, o narrador é convidado a entrevistar sua viúva para obter material para a tese. A viúva do diretor havia sido uma atriz de grande prestígio, a Estrela das Estrelas, apelidada pela revista Time de o Espírito do Cinema (Carter, 1993.p.69). Em pouco tempo, o narrador descobre que Manheim está vivo e, com a ajuda de cirurgia plástica e maquiagem, passa por sua mulher. A pseudo-viúva, por sua vez, mais parece um madeireiro fora de forma, sempre vestida de camisa xadrez, jeans e calçando botas, com o cabelo curto e cinza escapando do lenço amarrado em volta da cabeça (Carter, 1993.p.75). As questões referentes à relação entre ilusão e realidade, fantasia e fato, e os problemas de viver numa cultura de simulação, de constante masquerade, de sexualidades alternativas, presentes em The Passion of New Eve, são retomadas no conto mas - talvez devido aos 17 anos de intervalo entre as duas narrativas - são resolvidas de uma maneira menos trágica.
"The Ghost Ships", que tem como subtítulo "A Christmas Story", conta a história mágica de como três navios, silenciosos como navios fantasmas (Carter, 1993.p.91), entram no porto de Boston na manhã do Dia de Natal trazendo todos os ingredientes da antiga celebração do Natal, que os austeros membros da cidade se recusam a aceitar por considerá-los elementos pagãos. Todos os três navios e suas cargas são rejeitados e afundam no onívoro ventre do oceano (Carter, 1993.p.94). Num gesto de revolta, o Dono da Folia, que vinha no terceiro navio, e comandava os mascarados e dançarinos que Cotton Mather tanto detestava (Carter, 1993.p.94), apanha um pudim de Natal - rejeitado pelo próprio oceano por ser considerado muito indigesto -, decorado com o abominável azevinho e recheado com ameixas e várias frutas, e lança o pudim em direção a Boston. Ao acordarem, todas as crianças da cidade encontram, com assombrada e secreta alegria (Carter, 1993.p.97), em seus chinelos, pedaços de frutas embebidads em conhaque, que bem poderiam, como diz o texto, Ter vindo de um pudim de Natal (Carter, 1993.p.97). Nesta história mágica de Natal, Carter mostra que o espírito alegre e festivo do Natal - como, também, do carnaval, pois os dois se misturam no conto - não pode ser inteiramente reprimido, nem pelas severas normas dos líderes religiosos da puritana Boston. Carter mostra como as tradições cristãs derivam de antigas práticas pagãs:

O Dono da Folia, o príncipe palhaço do Velho Natal ... Ele era uma verdadeira relíquia, tão velho quanto o festival que existia no meio do inverno, antes do Natal ter sido pensado. Muito mais velho. Seus descendentes vivem, durante o ano todo, nos circos. Ele é alegria, anarquia e terror. O Papai Noel é seu filho bastardo, que ele deserdou por não considerá-lo suficientemente obsceno (Carter, 1993.p.95).

Ironicamente, o narrador comenta que tudo que ocorria durante a Saturnália romana,

teria sido considerado ilegal pela Comunidade de Massachusetts, na época dos navios fantasmas, e, quem sabe, tavez ainda hoje (Carter, 1993.p.96).

Este conto mostra a inter-relação das diversas tradições culturais e religiosas e como, nem por decreto (o estatuto de 1659, que proíbe a celebração do Natal em Boston, serve de epígrafe ao conto) pode-se impedir a contaminação/influência exercida pelas antigas práticas culturais e literárias - representadas aqui pelos elementos da tradição do Velho Mundo - sobre a nova sociedade que se pretende formar/construir no Novo Mundo.
"In Pantoland" é uma mistura de conto e ensaio sobre cultura popular, que se propõe a fazer uma análise da tradição da pantomima na Inglaterra. O conto lembra alguns aspectos de Wise Children em sua exploração da teatralidade. Carter define a Pantolândia como um lugar de ilusão e transformação (Carter, 1993.p.99), onde tudo é excessivo e o gênero é variável (Carter, 1993.p.100). Na Pantolândia, os significados ocultos - ou, melhor dizendo, as naturezas ocultas - dos personagens da pantomima são revelados. Mas, como diz o texto:

As coisas não mudam só porque uma garota veste um par de calças ou um jovem põe um vestido, você sabe. Os patrões voltam a ser patrões quando a Saturnália chega ao fim; depois de uma verdadeira folga das questões de gênero, Volta-se à velha rotina ... Além disso, tudo isto aconteceu há muito tempo atrás, com certeza. Tudo aconteceu antes da televisão (Carter, 1993.p.109).

"Alice in Prague or The Curious Room" brinca parodicamente com a Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll, e conta a história da famosa coleção de tesouros do Arquiduque Rudolph, que mantém um leão no quarto como uma espécie de cão/gato-de- guarda, e tenta adquirir todo tipo de preciosidades, criando um proto-museu, a sala das curiosidades, como ele a chama (Carter, 1993.p.127). A sala serve de abrigo a personagens exóticos, como o misterioso alquimista Dr. Dee - para quem o invisível é apenas outro território inexplorado, um bravo mundo novo (Carter, 1993.p.123) - e seu assistente Ned Kelly, o Homem da Máscara de Ferro. Nesta sala das curiosidades aparece uma minúscula Alice, que abriu uma porta no espelho de sua casa, e veio aterrissar no proto-museu do Arquiduque Rudolph. Ao comer um morango ela cresce até atingir o teto, ao beber do elixir vitae ela volta a seu tamanho normal e começa a propor questões ao Dr. Dee e a Ned Kelly, que não encontram respostas para as perguntas da criança. Todo o conto é desenvolvido como uma grande peça de nonsense, estratégia usada por Lewis Carroll e lembrada no final do conto: Alice foi criada por um mestre da lógica e portanto vem do mundo do absurdo - o oposto do bom senso.(Carter, 1993.p.139). Nada faz muito sentido no conto de Carter nem no mundo da narrativa, onde um corvo insiste em grasnar, sem causar qualquer surpresa, O Pobre Tom está com frio, uma das falas de Edgar em King Lear, de Shakespeare. O bom senso e nossa bagagem literária esperariam que o corvo grasnasse Nunca mais, por associação óbvia com o poema de Poe. Mas tudo no conto é o reverso das expectativas, e o principio do absurdo reina incontestável.

"Impressions: The Wrightsman Magdalene" é um ensaio sobre um quadro do pintor George de la Tour, que retrata Maria Madalena como uma penitente da cintura para cima mas a veste com uma saia vermelha, cor da paixão, da cintura para baixo, que é sempre a parte mais problemática (Carter, 1993.p.141). O ensaio discute as várias representações da Madalena, como a de Donatello, que representa a Madalena como ressecada pelo sol do deserto, machucada pelo vento e chuvas, anoréxica, sem dentes, um corpo inteiramente aniquilado pela alma (Carter, 1993.p.143). O texto faz tambem uma interessante e irônica comparação entre Maria Madalena e Maria, a mãe de Jesus: Uma é o oposto da outra. Uma é virgem e mãe; a:outra não é virgem e não tem filhos (Carter, 1993.p.142). Maria Madalena torna-se a protagonista do conto: sua conversão, seu ato de enxugar com os cabelos os pés de Jesus, seu trabalho de parto, sua meditação à luz da vela, todos os detalhes de sua vida e de sua representação iconográfica juntam-se para tornar real a pessoa por trás da prostituta/santa.

Nos contos de Black Venus e de American Ghosts and Old World Wonders, Angela Carter não esconde suas influências literárias, sua admiração por autores e tradições do passado. Ela as expõe abertamente, as desconstrói, as sabota, as reconstrói de uma nova forma, de um outro ângulo. Ela toma textos que conhecemos, fragmenta-os, rearruma-os, faz novas combinações, e os transforma em algo novo e profundamente original. Salman Rushdie, em sua "Introdução" a Burning Your Boats: The Collected Stories, diz que Angela Carter :

abre uma velha história para nós como quem abre um ovo e descobre, lá dentro, a nova história, a história-do-agora, que nós todos desejamos escutar (Rushdie, 1995.p.XIV).

Creio que Rushdie resume nesta imagem o processo de releitura como prática de reapropriação que caracteriza os textos de Angela Carter nestas duas coleções de contos.

NOTAS
1. Entre as várias obras que traçam a história da crítica feminista nos anos 70 e 80, considero particularmente importantes os livros de Toril Moi (Sexual/Textual Politics. London: Routledge, 1990) e de Rosemary Tong (Feminist Thought: A Comprehensive Introduction. Boulder: Westview, 1989). Para aspectos específicos da crítica feminista desta época e da década de 90, consultar Catherine Belsey and Jane Moore (The Feminist Reader: Essays in Gender and the Politics of Literary Criticism (New York: Blackwell, 1989), Judith Butler (Gender Trouble: Feminism and the Subversion of Identity. New York: Routledge, 1990), Jane Miller (Seductions: Studies in Reading and Culture. London: Virago 1990) e Chris Weedon (Feminism, Theory and the Politics of Difference. New York: Blackwell, 1999).
2. Teresa de Lauretis faz, basicamente, crítica cinematográfica, mas as teses desenvolvidas neste livro podem e têm sido utilizadas numa leitura crítica da obra de Carter pois teorizam as estratégias desenvolvidas por Carter nas investigações e representações da autora sobre as relações existentes entre feminilidade e desejo, relações estas que recebem particular atenção em Black Venus. Como propõe de Lauretis, O esforço e desafio que temos que enfrentar agora é o de recriar uma nova visão: construir outros objetos e sujeitos de visão, formular as condições de representabilidade de um outro sujeito social (135).
3. O texto de Carter reproduz, em tradução para o inglês, algumas linhas do poema Sed Non Satiata, que faz parte do ciclo de poemas escritos por Baudelaire sobre Jeanne Duval. No final do texto, Carter identifica alguns destes poemas e percebemos que, de alguma forma, eles também foram incorporados ao texto de Black Venus em forma de descrições e digressões dos personagens.
4. A questão da ilegitimidade, tratada de modo irônico e casual neste conto, será retomada de maneira bem mais explícita em outro livro de Carter, Wise Children (London: Chatto & Windus, 1991), e também será relacionada com a liberdade experimentada pelas gêmeas Nora e Dora Chance, protagonistas do romance.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 Carter, Angela. The Bloody Chamber and Other Stories (London: Quartet Books, 1979)
- Black Venus. London: Chatto & Windus, 198
- American Ghosts and Old World Wonders. London: Chatto & Windus, 1993.

Defoe, Daniel, The Fortunes and Misfortunes of the Famous Moll Flanders, Harmondsworth: Penguin, 1984, Int. by Juliet Mitchell.

DuPlessis, Rachel Blau Writing Beyond the Ending: Narrative Strategies of Twentieth-Century Women Writers. Bloomington: Indiana UP, 1985.

Hanson, Clare. "Each Other: Images of Otherness in the Short Fiction of Doris Lessing, " in Rhys, Jean and Carter, Angela. Journal of the Short Story in English 10, 1988

Hutcheon, Linda. The Politics of Modernism. New York: Routledge, 1989.
- Irony's Edge:The Theory and and Politics of Irony .New York: Routledge, 1995

Kristeva, Julia. Powers of Horror: An Essay on Abjection .Trans. Leon Roudiez. New York: Columbia UP, 1982.

Lauretis, Teresa de. Technologies of Gender: Essays on Theory, Film, and Fiction. Bloomington: Indiana UP, 1987)

Rich, Adrienne. "When We Dead Awaken: Writing as Re-vision" in Lies, Secrets, and Silence: Selected Prose 1966-1978. New York: Norton, 1979.

Rushdie, Salman (org.). "Introduction" in Burning Your Boats: The Collected Stories. New York: Henry Holt: 1995.

Sage, Lorna. Angela Carter. Plymouth: Northcote House, 1964.


Peonia Viana Guedes é professora titular de literaturas de língua inglesa do Instituto de Letras da UERJ, onde exerce o cargo de Coordenadora Geral da Pós-Graduação stricto e lato sensu em Letras; pesquisadora das questões de gênero e etnia nas literaturas contemporâneas; publicou o livro Em Busca da Identidade Feminina: os Romances de Margaret Drabble (Rio: Sette Letras, 1997) e inúmeros artigos em revistas especializadas.


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